Investidas mundiais tentam restringir a liberdade na internet e impedir o compartilhamento de conteúdos.
Patrícia Cornils
ARede nº 49 julho/2009 – A internet, livre e sem fronteiras, está sob ameaça. De um lado, ativistas lutam para garantir a liberdade de criação e de expressão na rede mundial. De outro, projetos de lei e decisões governamentais tentam restringir e criminalizar seu uso. A guerrilha pelo controle da internet está explodindo em várias partes do mundo. No Brasil, uma das batalhas é travada em torno do Projeto Azeredo, apelidado de AI-5 Digital. Em nome do combate a crimes cibernéticos, o projeto propõe que os provedores passem a vigiar internautas e denunciar suspeitos de atividades ilegais, misturando crimes como roubo de senhas para fazer fraudes bancárias com práticas sociais como o download de músicas e filmes. Na França, a Lei Hadopi (conhecida como “Baixou-três-vezes-está-fora”) determina que internautas suspeitos de baixar conteúdo sem pagar por direitos autorais sejam desconectados. Os argumentos são complexos, mas a disputa principal é muito clara: está em curso, em todo o planeta, uma tentativa de regular a internet em defesa da indústria audiovisual, duramente atingida pelo crescimento do número de internautas e pelo uso massivo das redes de compartilhamento P2P (em especial as que usam o sistema Bit Torrent), como o Pirate Bay, blogs, redes sociais como o Orkut ou sites como o YouTube.
Enquanto a indústria cultural e de entretenimento sustenta a necessidade de controle sobre quem baixa o quê, porque quer proteger direitos autorais que lhe rendem lucros, ativistas e especialistas alertam que tal controle pode travar o motor da revolução digital, representado pela liberdade sem precedentes de produção e troca de conhecimento em rede. No Brasil, o campo do próximo embate já está anunciado. Será a tentativa das empresas de radiodifusão tradicional, representadas pela Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert), de fazer valer, na internet, as leis que vigoram no setor de comunicação social.
O problema dessas tentativas de regulação é que, ao criar controles para proteger determinados interesses ou para, como pretende a Lei Azeredo, combater os crimes cibernéticos, as determinações atingem direitos civis conquistados: os direitos à privacidade, ao anonimato, à liberdade de comunicação e expressão. Por que isso acontece? Porque, na internet, a liberdade de digitalizar, publicar, acessar e copiar conteúdos não é um detalhe. A rede provocou uma mudança radical no funcionamento da sociedade, por conta da capacidade de intercâmbio direto e da livre produção e acesso a conteúdos e conhecimento. Como descreveu o economista e Prêmio Nobel Paul Krugman, em um artigo para o New York Times, “bit por bit, tudo o que pode ser digital será digitalizado, tornando a propriedade intelectual ainda mais fácil de se copiar e ainda mais difícil de vender por um valor maior do que o preço nominal. E nós vamos ter de encontrar modelos de negócio e econômicos que levem essa realidade em conta”.
Por causa da evolução tecnológica, criou-se a possibilidade de produzir e reproduzir músicas, filmes e livros infinitamente, a um preço próximo de zero. A cadeia intermediária entre os criadores e seus espectadores, ouvintes ou leitores deixou de ser imprescindível. Essa cadeia, composta por estúdios, editoras, rádios e televisões, movimenta bilhões. Como ainda não descobriu um jeito de obter receitas equivalentes com seus negócios na internet, tenta inutilmente reprimir a troca de conteúdos na rede.
Não que esse dinheiro esteja deixando de circular. Está, somente, mudando de mãos. Existe uma relação entre a queda na aquisição de CDs e o aumento na compra de players MP-3. O compartilhamento de arquivos, por meio das redes P2P, reduziu o preço pago pelos consumidores para ter acesso à música. Ao mesmo tempo, as vendas de aparelhos iPod, por exemplo, explodiram. No caso dos filmes, a Associação Internacional da Indústria de Merchandising (LIMA, na sigla em inglês) estima que Hollywood recebe US$ 16 bilhões por ano em vendas de produtos licenciados, um número maior do que a soma das entradas para os filmes. Os dois dados constam do estudo File-Sharing and Copyright (Compartilhamento de Arquivos e Copyright), realizado na Harvard Business School pelos pesquisadores Felix Oberholzer-Gee e Koleman Strumpf. Mesmo no Brasil – onde cerca de 3 milhões de pessoas fazem, por ano, 1,7 bilhão de downloads ilegais de música, sem contar as postagens de arquivos em blogs e no Orkut, usado por 35 milhões de internautas brasileiros, o equivalente a três vezes a população do estado do Rio de Janeiro –, a venda de discos cresceu 6,4% em 2008; e a venda de música por canais digitais, como os celulares, subiu 89%. Ou seja, parte da receita pela venda de músicas agora é dividida com as operadoras de telefonia móvel. Os dados são do capítulo “Brazil” do Relatório Especial 301, feito pela International Intellectual Property Alliance (IIPA, ou Aliança Internacional da Propriedade Intelectual, que representa a indústria americana baseada em propriedade intelectual) em parceria com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos.
No caso das empresas brasileiras de radiodifusão, o crescimento da audiência na internet significa maior disputa pelas verbas de publicidade. Em 2008, pela primeira vez, vendeu-se mais computadores (12 milhões) do que televisores (10,8 milhões) no país. “A internet tem 62 milhões de usuários no Brasil. Ou você muda seu conceito de internet, ou você muda seu conceito de mídia de massa”, diz uma coletânea de dados sobre a internet brasileira distribuída pelo portal UOL, como informe publicitário, para convencer os anunciantes a investir em publicidade online. “Com o investimento de R$ 30 milhões no primeiro quadrimestre de 2009, você é o segundo anunciante da internet brasileira. Com o mesmo dinheiro na tevê, você é o 63º. Apareça mais com o mesmo dinheiro: anuncie na internet”, convida a publicidade, em que o UOL claramente pretende disputar verbas com o maior veículo de anúncios do Brasil: a televisão. Essa disputa está gerando uma reação dos veículos tradicionais de mídia, que buscam meios de se defender do aumento do poder de novos concorrentes. E pode mudar a divisão do mercado de comunicação, hoje dominado por grupos nacionais.
O adversário eleito pelas empresas de radio e tevê, no Brasil, são as operadoras de telecomunicações e seus portais. É nessas empresas que a Abert mira quando aponta a necessidade de criar novas regras para a internet. Evandro Guimarães, consultor da Abert e diretor de Relações Institucionais das Organizações Globo, tem feito inúmeras declarações sobre isso: “Uma empresa que se organiza para usar a banda larga e de repente começa a oferecer gratuitamente conteúdo jornalístico e esportivo, subsidiado pela publicidade, para o público em geral, é uma empresa de comunicação social”, disse ele, durante o congresso da Abert, em maio. “Alguém que faz TV pela Internet faz radiodifusão, mas por outra plataforma. Pode essa operação empresarial estar funcionando sem as demanda da Constituição? A simples facilidade tecnológica derroga a Constituição? Ou o país quer ordem e progresso?”, indagou, em audiência da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, dia 7 de junho, onde se discutiu o estatuto da Conferência Nacional de Telecomunicações. Quando se refere à Constituição, a Abert pretende que as disposições sobre a comunicação social, estabelecidas nos artigos 221 e 222, passem a valer também para empresas que difundirem conteúdo audiovisual na internet. O alvo principal é o Grupo Telefônica e seu portal Terra, que hospeda a TV Terra.
Se o embate entre esses grupos econômicos for resolvido pela criação de leis, em vez de se limitar à disputa de modelos de negócio, a internet brasileira poderá sair muito prejudicada. Isso porque a demanda da Abert é que sejam aplicadas à internet leis feitas para regular a atividade de meios de comunicação tradicionais. A internet não é uma tevê, nem uma rádio. Não se trata de um produtor que faz seu conteúdo e transmite para muitos receptores. É um espaço onde todos os participantes podem ser, ao mesmo tempo, produtores e espectadores, leitores, ouvintes. Para transmitir sinais de tevê e de rádio são necessárias frequências, e há um limite de sinais que podem ser transmitidos em cada faixa. Por isso, as frequências são consideradas um bem escasso e sua concessão e exploração são reguladas. Para subir e baixar conteúdo da internet, basta uma conexão em banda larga. Em serviços prestados por meio de um bem público e escasso – as frequências – há obrigações relacionadas a esse caráter público. Formar redes nacionais para transmitir programas eleitorais, veicular a hora do Brasil, ter os pedidos de concessão analisados pelo Congresso. Valorizar a produção nacional.
A proposta pública da Abert é acabar com o que eles chamam de “assimetria na prestação de serviços”: igualar as obrigações para divulgar audiovisual na internet ou por meios tradicionais. Ou eliminá-las para todos. Nesse sentido, a associação coloca na mesa de negociação coisas que não lhe pertencem: a liberdade de atuação na internet versus os compromissos estabelecidos pelo Estado para veículos de comunicação social.
“Querem transferir para a nova economia da informação, que tem outra mecânica, o modelo da velha economia industrial”, explica o sociólogo Sergio Amadeu da Silveira, especialista em cibercultura. “Na internet, o código é a lei”, diz Amadeu. “O código é a lei” é o nome de um livro do professor Lawrence Lessig, um dos fundadores do Creative Commons e um dos maiores defensores da internet livre. O que faz com que a rede seja livre é sua arquitetura aberta, seus protocolos e padrões – esse conjunto é o que se chama, aqui, de código. Ele garante, também, a segurança da rede, sem que seja necessário criar novos mecanismos de vigilância, explica Amadeu. “O protocolo TCP/IP garante a comunicação distribuída mas, ao mesmo tempo, permite a identificação do rastro digital deixado pelo internauta. Por isso, não é verdade que a internet seja uma selva em que ninguém sabe o que pode ocorrer. Para esconder um IP na rede é preciso usar proxy anônimo, “embaralhadores” e tecnologias muito distantes dos cidadãos comuns. Para Amadeu, a internet precisa ser regida por “leis sem vigilantismo”, ou seja, que garantam a liberdade e a segurança das pessoas sem ferir demais direitos, inclusive o de navegar pela rede sem ser vigiado. O que isso tem a ver com as propostas da Abert? Ou com o Projeto Azeredo? Para verificar o que as pessoas transmitem e recebem na rede é preciso auditar o tráfego. É como se os Correios abrissem todos os pacotes que transportam, para ver se não há conteúdo ilegal.
O debate sobre a internet precisa deixar claras as disputas que envolve, e as consequências de leis que restrinjam a liberdade na rede, alerta Luiz Moncau, pesquisador de direito constitucional na PUC-RJ. Como a guerra está apenas começando, e envolve muitas frentes – a disputa de empresas de comunicação pelo mercado tem influência, por exemplo, no total de frequências reservadas para os serviços de comunicação social, serviço móvel celular e banda larga –, um bom mapa para se guiar nesse campo minado são os princípios para governança e uso da internet no Brasil, aprovados pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br) (veja a página XX). De acordo com Carlos Afonso, participante do comitê gestor, o decálogo é importante porque foi produzido depois de um longo debate, em uma entidade que tem uma representação pluralista. Do CGI.br participam governo, associações empresariais, entidades civis e associações acadêmicas, entre as quais nem sempre é fácil obter consenso. “É uma vitória e é nossa referência para qualquer iniciativa ou projeto que o CG venha a realizar ou apoiar, e também para podermos opinar no debate sobre propostas de regulação da internet”. É uma vitória, também, porque o debate consagrou princípios que os ativistas pela liberdade internet defendem: liberdade, privacidade, direitos humanos, governança democrática e colaborativa, universalidade, diversidade, inovação, neutralidade da rede.
www.iipa.com/rbc/2009/2009SPEC301BRAZIL.pdf – IIPA, Relatório Special 301 (em inglês)
www.hbs.edu/research/pdf/09-132.pdf – Estudo sobre compartilhamento de arquivos (em inglês)
Proxy
Servidor que atende a requisições repassando os dados do cliente para a frente. Um usuário conecta-se a um servidor proxy, requisitando algum serviço, como um arquivo, conexão, website, ou outro recurso disponível em outro servidor.
Rede P2P
Do inglês peer-to-peer (par-a-par), entre pares, é uma arquitetura de sistemas distribuídos caracterizada pela descentralização das funções na rede, onde cada nó realiza tanto funções de servidor quanto de cliente.
Bit Torrent
Sistema de download de arquivos P2P que garante a colaboração. Quando um usuário procura por um arquivo, baixa “pedaços” do arquivo de outros usuários até que fique completo.
Direitos Autorais
Quando se referem a conteúdo ilegal, as leis em debate quase sempre estão falando da proteção ao direito autoral, ou ao copyright. “Sites como YouTube, Facebook e blogs são realmente fascinantes e, hoje, indispensáveis. Mas é preciso encontrar uma maneira de proteger o copyright, sob pena de degradar a qualidade do que se produz”, argumenta Ali Kamel, diretor executivo de jornalismo da TV Globo, em artigo publicado no jornal O Globo, em 30 de junho. Ele diz, em resumo: enquanto jornais e revistas pagam um custo alto para publicar notícias produzidas pelo New York Times, ou pelo El País, blogs e sites colocam essas mesmas notícias na rede, tão logo são divulgadas, sem pagar nada. A revolução digital criou um “instrumento de pirataria em massa”, acredita Kamel. Para ele, é preciso encontrar uma maneira de restringir o acesso e a reprodução de informação, em nome da proteção de direitos autorais.
Não há certeza de que uma maior proteção aos direitos autorais beneficiaria a sociedade. Nos últimos 200 anos, o regime de copyright, na maior parte dos países, evoluiu em uma direção única: legisladores reforçaram sistematicamente as proteções legais de autores e produtores, aumentando os preços para o público e desencorajando a compra de livros, discos, filmes. O compartilhamento de arquivos, nesse contexto, é uma experiência única, que enfraqueceu a proteção do copyright. Ao que tudo indica, beneficiou a sociedade, porque não desestimulou a criação de novas obras e, ao mesmo tempo, aumentou sua circulação – ao contrário do que argumentam os defensores de regras mais rígidas. Essa é a conclusão do estudo File-Sharing and Copyright. O objetivo original das leis de copyright foi encorajar a inovação e a criação de novos trabalhos. “Em outras palavras, para promover o bem estar público”, explicam eles. Este bem estar é especialmente promovido pelo compartilhamento na medida em que ele aumenta produção e a circulação de bens culturais, sem desencorajar a criação de novos trabalhos, mostram os autores. Números do estudo mostram que, entre 2000 e 2007, o lançamento de novos livros cresceu 66%. A produção anual de filmes cresceu 30% desde 2003. E a indústria em que, se presume, deu-se o maior impacto do compartilhamento de arquivos — a de música — mais que dobrou o lançamento anual de álbuns desde 2000.
Princípios da internet
O CGI.br estabeleceu, em abril, princípios para a governança e o uso da internet no Brasil.
1.Liberdade, privacidade e direitos humanos
O uso da internet deve guiar-se pelos princípios de liberdade de expressão, de privacidade do indivíduo e de respeito aos direitos humanos, reconhecendo-os como fundamentais para a preservação de uma sociedade justa e democrática.
2. Governança democrática e colaborativa
A governança da internet deve ser exercida de forma transparente, multilateral e democrática, com a participação dos vários setores da sociedade, preservando e estimulando o seu caráter de criação coletiva.
3. Universalidade
O acesso à internet deve ser universal, para que ela seja um meio para o desenvolvimento social e humano, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória em benefício de todos.
4. Diversidade
A diversidade cultural deve ser respeitada e preservada e sua expressão deve ser estimulada, sem a imposição de crenças, costumes ou valores.
5. Inovação
A governança da internet deve promover a contínua evolução e ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso.
6. Neutralidade da rede
Filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento.
7.Inimputabilidade da rede
O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos.
8. Funcionalidade, segurança e estabilidade
A estabilidade, a segurança e a funcionalidade globais da rede devem ser preservadas de forma ativa através de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e estímulo ao uso das boas práticas.
9. Padronização e interoperabilidade
A internet deve basear-se em padrões abertos que permitam a interoperabilidade e a participação de todos em seu desenvolvimento.
10. Ambiente legal e regulatório
O ambiente legal e regulatório deve preservar a dinâmica da internet como espaço de colaboração.