Como a dissertação dialoga com as políticas públicas de inclusão digital?
Nelson Pretto – Um dos pontos centrais, e que está presente na experiência das pessoas entrevistadas, das personagens-autores da dissertação, é que telecentros, Pontos de Cultura, escolas têm de se constituir em locais de comunicação e de produção de cultura e de conhecimento. Não podemos reduzir os telecentros a espaços de formação profissional, fechados. Precisamos implantar, nos programas de inclusão digital, um círculo virtuoso de produção de conhecimento e cultura, não um processo de produção de conteúdos a serem “entregues” a telecentros e escolas. Em 1963, o educador baiano Anísio Teixeira escreveu um belo texto sobre a escola do futuro, que para ele estaria mais próxima de uma estação de TV. Atualizando, a escola do futuro está mais próxima a um Ponto de Cultura. Ou um Ponto de Ciência e Tecnologia. Isso porque me parece que falta, ao Ministério da Ciência e Tecnologia, dar possibilidade, à meninada que gosta de inovação, de criar Ciência e Tecnologia para o mundo contemporâneo. A escola ganharia outra dimensão.
Digo duas frases sobre isso, que se tornaram quase dois mantras. Na década de 1980, quando a Rede Nacional de Pesquisa estava sendo implantada, dizíamos: “Não queremos a internet nas escolas, queremos as escolas na internet”. Queríamos conectar as escolas para que produzissem conteúdo. Hoje as escolas estão mais presentes na rede, mas esse mantra ainda vale. O segundo é que não podemos fazer com que os filhos dos mais favorecidos tenham banda larga individual, em seus quartos, para jogar, produzir, assistir, trocar informações, fazer o que bem entenderem, e os filhos das famílias pobres frequentem telecentros onde são obrigados a aprender planilhas e processadores de textos. Isso é de uma crueldade fenomenal. Mesmo que seja em software livre. Mesmo que seja com conteúdos elaborados por universidades. Não é para ensinar instrumentalmente. As pessoas podem aprender a usar editores de texto enquanto fazem roteiros, projetos, textos. A partir de uma perspectiva de produção de conteúdo.
A tecnologia é a ferramenta que possibilita isso, não é?
Pretto – As Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) são fenomenais porque possibilitam, pela dimensão da comunicação, superar a discussão do regional versus o universal. Por isso é importante um Plano Nacional de Banda Larga, para levar conhecimento a todos, não somente aos que podem pagar. Porque, com a apropriação das TICs, posso produzir cultura e conhecimento local sendo absolutamente planetário. Posso realizar o diálogo entre o conhecimento da minha comunidade e o universal. O saber local dialoga com o conhecimento instituído e a partir disso pode ser reconstruído. Precisamos municiar esses espaços com uma infraestrutura de produção, para que a meninada possa produzir e consumir discos, livros, músicas, filmes, notícias. Devem ser espaços vivos, de estímulo à produção e à comunicação. Se eu entupo os telecentros de conteúdos verticalmente elaborados, inibo essa perspectiva. É claro que são fundamentais, por exemplo, as parcerias com universidades para produzir conteúdos diversos, sobre dengue, gravidez na adolescência, física, biologia. Mas a própria comunidade tem de contribuir com essa essa produção.
Como pensar em programas que respeitem e estimulem a condição de protagonistas dessas comunidades?
Pretto – Respeitar a diferença é fundamental. No momento em que trato o jovem como um ser singular, não estamos mais preocupados em adaptá-lo a uma situação hegemônica na sociedade. Estamos preocupados em reafirmar cada vez mais o singular, a diferença. As singularidades não devem ser assimiladas umas pelas outras, a convivência tem que se dar de forma respeitosa. É preciso estabelecer conexões entre esses jovens, que têm cada um sua identidade. Isso vale para a formação política e filosófica e também para as ações de inclusão e educação. As pessoas podem fazer hip hop e fazer música clássica. O importante é tentar estimular o diálogo entre as diferentes linguagens, para que uma cresça com a outra. E é essa a dificuldade de se elaborar uma política pública que não pode ser gestada de maneira centralizada, com procedimentos iguais para o país inteiro. Tem de ser uma política forte o suficiente para abrigar os diferentes, de forma a valorizá-los. Não devemos, nesse processo, pedagogizar excessivamente as tecnologias, nem trazer essa dimensão de transformar o outro no eu. O educador Carlos Rodrigo Brandão, ao escrever sobre educação popular, contou a história de um lavrador chamado Ciço, que ele entrevistou para sua pesquisa. Ele perguntou a Ciço o que é educação. E Ciço respondeu : “É simples. Para seu mundo, é a sua educação, e para nosso mundo, é a sua educação também”. Não pode ser isso.
Por que a diversidade é importante?
Pretto – A multiplicidade faz parte da natureza humana. Isso se vê a partir do momento em que uma criança começa a ficar jovem e se rebelar contra o que está instituído. Essas crianças sofrem – a palavra é sofrer – um processo educacional em que são formatadas para viver em sociedade e pacificar sua rebeldia, se acomodar à lógica do padrão, fortalecida por este mundo neoliberal, em que a economia e o mercado presidem todos os processos. Se vou fazer um produto para o mercado universal, tem de ser sempre igual, para ter preço baixo. Massificar para fazer produtos pode ser interessante do ponto de vista do custo de produção, mas para a cultura é terrível. Como não podemos ter uma sociedade em que todos sejam rebeldes, vou negociar, a partir da educação e dos processos de inclusão digital, essa compreensão do conhecimento, regras e valores tidos como universais. A rebeldia e, ao mesmo tempo, a possibilidade de viver em sociedade. Precisamos trabalhar para que esses programas, e para que a escola, negociem essas diferenças. Por isso, tenho uma dificuldade com a expressão “inclusão”, que significa incluir em algo que já está pronto, que é melhor, e que é o que tem de ser buscado. Usamos o termo inclusão digital porque ficou instituído. Mas qualificar esse termo, saber que não significa incluir no sentido de pegar um menino que está fora desse conjunto de valores e formatá-lo dentro de um determinado universo. O princípio é trazer o diferente para a possibilidade proporcionada pelas TICs de fortalecer sua cultura, sua diferença e os valores de generosidade e de colaboração. Aí se usa incluir entre aspas, porque se trata de fortalecer a dimensão cultural de cada indivíduo, como uno e no coletivo.
Como saber se os programas realizam isso?
Pretto – Avaliar os programas é uma questão difícil, a mesma que se coloca para todas as políticas públicas. Ao definir um sistema de avaliação, os programas fazem uma opção técnica, filosófica e de metodologia sobre educação, sobre política cultural, sobre a política de inclusão que desejam. Se fazem uma avaliação centrada em aspectos quantitativos, isso indica que o programa tem como pressuposto que incluir é atender determinado número de critérios: quanto mais gente o programa atende, quanto mais unidades abre, mais funciona. Não podemos jogar fora os números na avaliação do sistema educacional, dos Pontos de Cultura, dos centros de inclusão digital. É bom saber quem frequenta, quanto tempo fica, o extrato social. Mas essas medidas não podem ser definidoras da avaliação dos programas. Se a gente mede a quantidade de cursos, define que o curso é a forma de funcionar do telecentro, o que importa é a quantidade de cursos oferecidos. Temos de enfatizar que esses dados são elementos para a construção de processos educativos. Não se mede cidadania e protagonismo pelo número de vezes que alguém fez um curso, mas pela qualidade e pelo quê a pessoa faz hoje, em relação ao que fazia antes. Como a pessoa era, o que ela é agora, como está atuando, se envolvendo, tomando iniciativas. (P.C.)