Capa – Como abrir a caixa-preta do poder

Entidades da sociedade civil usam a internet para atuar em rede e controlar os gastos dos governos. A web oferece informação sobre os orçamento públicos, além de cursos e cartilhas para conseguir entendê-los.


Entidades da sociedade civil usam a internet para atuar em rede e
controlar os gastos dos governos. A web oferece informação sobre os
orçamento públicos, além de cursos e cartilhas para conseguir
entendê-los.
   Heitor Augusto e Verônica Couto


Mobilização em Conceição do
Coité (BA)

Imagine uma cidade muito pobre, com uma economia baseada na pequena
agricultura de subsistência, onde o único posto de saúde estivesse sem
telhado, e os alunos da sua única escola tivessem que sentar no chão,
por falta de cadeiras. E que o prefeito desse lugar decidisse gastar
todo o dinheiro que a cidade arrecada ou que lhe é repassado de outras
esferas para asfaltar e enfeitar de orquídeas a rua onde ele mora. O
que poderiam fazer os moradores desse município fictício? Ter um ataque
de raiva. Sim. Mas também poderiam acionar a Câmara Municipal para
impedir que a proposta fosse em frente, apresentar emendas com
sugestões mais inteligentes para o uso do dinheiro, ou, no limite,
buscar o Ministério Público, para denunciar o governo municipal.

Em várias cidades do Brasil, entidades da sociedade civil estão
aprendendo a ler e a entender os orçamentos municipais, estaduais e o
federal, de modo a poderem intervir e influenciar na decisão sobre os
gastos públicos — ou seja, participar da formulação das políticas
públicas. Seus representantes, vinculados a sindicatos, associações,
grupos religiosos, movimentos culturais, articulam-se em rede com
organizações não-governamentais que já acumulam, há algum tempo,
experiência na análise orçamentária. E que, na sua maioria, oferecem
capacitações gratuitas – presenciais ou a distância —, assessoria
técnica e estratégica, além de guias e manuais para baixar da web.

Um grande passo para o controle social dos gastos governamentais foi
dado, nos últimos anos, com a publicação na internet de dados
orçamentários, análises e cartilhas para compreendê-los. De acordo com
o diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
(Ibase), João Sucupira, encontra-se um volume razoável de informação na
rede, especialmente sobre o governo federal, os governos estaduais, as
capitais ou grandes municípios. Falta, contudo, na sua opinião, uma
ação mais abrangente de formação da sociedade para apropriar-se desse
conhecimento. “Há um descompasso entre o que já existe de informação na
internet sobre orçamento, e a capacidade de a sociedade digerir esses
dados e atuar politicamente”, diz Sucupira. Ele acredita que os
telecentros, ao lado das rádios comunitárias, são um espaço importante
para expandir essa massa crítica. Por exemplo, com a introdução do tema
nas capacitações dos educadores e implementadores sociais.


A manifestação é um
dos instrumentos para
vencer o "coronelismo"
ARede ouviu ONGs que atuam nessa área, além de relatos sobre 
experiências municipais de intervenção direta nos orçamentos, reunindo
indicações de sites e fontes para subsidiar o fomento do exercício do
controle social online, ou em rede. “Num país da dimensão do nosso, se
não houver controle social, é muito difícil fazer a fiscalização. E a
internet é a única forma de dar transparência para um número massivo de
pessoas”, diz o secretário-executivo da Controladoria Geral da União,
Luiz Navarro.

O maior volume e detalhamento de informações na web refere-se ao
orçamento do governo federal, incluindo-se aí, contudo, os repasses
para estados e municípios. As principais bases de dados sobre a União
estão em portais como o Siafi-Sistema Integrado de Administração
Financeira do Governo Federal, mantido pelo Tesouro Nacional; o Siga
Brasil, do Senado; e o Portal da Transparência, da Controladoria Geral
da União (CGU). Pode-se consultar, ainda, os portais do Tribunal de
Contas da União (TCU) e dos estados, o Interlegis-Comunidade Virtual do
Poder Legislativo, também do Senado Federal, e os sites das ONGs (veja
as páginas 16 e 17).

“Com o que já existem na internet, dá para acompanhar bem a União”,
avalia Eliana Magalhães Graça, assessora de política fiscal e
orçamentária do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), entidade
com sede em Brasília, que faz a secretaria executiva do Fórum Brasil do
Orçamento (FBO), uma articulação de 50 ONGs. Mas, “apesar de haver um
aparato legal que obriga o fornecimento dessas informações em todos os
níveis de governo, as prefeituras raramente emitem relatórios de
execução fiscal; a cultura não é a da transparência”, critica André
Araripe, técnico de orçamento do Centro de Cultura Luís Freire (CCLF),
de Pernambuco. “Temos uma tradição clientelista; o coronel manda”,
insiste Ana Karina Menezes Lima, técnica da equipe de políticas
públicas do Movimento de Organização Comunitária (MOC), da Bahia, que
integra a Articulação em Políticas Públicas (APP) – cujo encontro deste
ano reuniu 40 ONGs baianas.


Em Surubim (PE), o passo-a-passo
da transparência orçamentaria

Ambos participam na capacitação de gestores, conselheiros, ativistas, e
na organização de redes e fóruns que, acreditam eles, podem mudar a
forma de os poderes públicos locais se relacionarem com a sociedade. O
MOC dá capacitação a conselheiros municipais. E o CCLF trabalha na
formação técnica e na assessoria aos Fóruns Municipais de Orçamento
Público – nove já estabelecidos em Pernambuco —, que agregam cerca de
180 entidades ou 500 pessoas. “Este ano, em Mirandiba, no sertão, o
prefeito, pela primeira vez, antecipou-se aos fóruns para vir colher
opiniões”, destaca André.

Esse mudança de postura tem a ver com a liberação e a compreensão dos
dados, mas, principalmente, com a capacidade de mobilização em torno
deles. Uma experiência que se expandiu de maneira  espantosa foi a
que deu origem à Amarribo Amigos Associados de Ribeirão Bonito, cidade
a 270 km de São Paulo. Os embates entre a entidade e o executivo
municipal, iniciados em 99, resultaram, em 2001, na cassação do
prefeito por desvio de verbas e superfaturamento. A Amarribo se tornou
uma multiplicadora de ações de controle social, e tem associadas a ela,
atualmente, 120 outras ONGs, de 13 estados brasileiros. Toda essa rede
foi construída pela internet. A primeira reunião presencial dos seus
integrantes acontece este mês, entre os dias 7 e 9, no I Encontro de
Cidadania e Controle Social na Administração Pública, lá mesmo, em
Ribeirão Bonito.

A Amarribo fornece às entidades interessadas um Kit ONG, formado por
cerca de 40 arquivos com ferramentas de controle. Desde os passos
básicos para se formar uma organização, até, num estágio mais avançado,
instruções de como fiscalizar e trabalhar com processos de corrupção.
Em 2003, a associação lançou o livro “O Combate à Corrupção nas
Prefeituras do Brasil”, disponível no seu site. “As entidades pegam a
nossa experiência e replicam. E nosso contato sempre foi pela internet.
Até o livro ser lançado, registramos 1,6 mil acessos no site, depois,
chegamos a 22 mil”, conta Lizete Verillo, voluntária na diretoria de
combate à corrupção da associação.


No Nordeste, a população conseguiu
frear desmandos do poder público

A partir da Amarribo e em parceria com ela, criou-se o projeto Adote um
Município (A1M), com site do mesmo nome. Surgiu no final de 2004, no
âmbito da União dos Auditores Fiscais de Controle Externo (Auditar),
para dar assessoria técnica à sociedade civil no combate à corrupção.
Hoje, é pilotado pelo Instituto de Fiscalização e Controle (IFC), que
faz caravanas periódicas para sensibilização das comunidades – cerca de
20 realizadas até agora, a última a Paraisópolis (MG) — , e auxilia na
criação de ONGs (tem 42 associadas). O IFC produz, ainda, material de
apoio, como um gibi sobre orçamento público a ser publicado online, em
breve.

Já são 40 cidades adotadas. O funcionamento do A1M pressupõe um cidadão
voluntário — qualquer pessoa disposta a mobilizar um grupo para
fiscalizar o governo local e animar a participação popular; um padrinho
— um profissional voluntário da área de administração ou fiscal
(servidores do TCU, da CGU, do Supremo Tribunal de Justiça, etc.); e a
equipe do A1M, com oito colaboradores mais ativos. Juntos, a intenção é
obter e analisar documentos, pressionar pelo acesso a informações,
definir estratégias de ação política ou jurídica. A página do Adote um
Município na internet também serve para pôr em contato as entidades e
noticiar o que acontece nas caravanas. De acordo com o presidente do
IFC, Henrique Ziller, o instituto apresentou ao escritório da ONU no
Brasil projeto de um curso online para integrantes do terceiro setor,
cobrindo, entre outros temas, orçamento público. E aguarda a sua
aprovação.

Aprender a ler

Contar com a assessoria de especialistas é importante, porque, se
conseguir chegar aos dados muitas vezes requer luta renhida, lê-los e
decifrá-los também não é trivial. Razão por que várias entidades estão
desenvolvendo, online ou presencialmente, cursos, capacitações,
treinamentos, oficinas ou outras atividades batizadas ao gosto do
freguês, mas que, concretamente, têm o propósito de permitir às pessoas
interessadas entender os dados orçamentários e saber o que fazer com
eles.

“Esse conteúdo pode e deve estar nas capacitações do monitores dos
telecentros, assim como nas programações das rádios comunitárias”,
defende Sucupira, do Ibase. A entidade oferece um curso de educação a
distância sobre controle de orçamento, e também um CD com o programa de
rádio “Nas Ondas do Orçamento”, produzido com a ONG carioca Criar
Brasil. O curso sobre orçamento pode ser feito na internet, com
monitoria de técnicos. Segundo Leonardo Mello, coordenador do Ibase, o
primeiro módulo trata de conceitos básicos, e o segundo avança nos
detalhes da peça orçamentária. “A legislação brasileira para orçamento
é federal, e se aplica a todos os níveis. Entendeu o federal, entende o
municipal e o estadual”, garante.


Além de oferecer capacitação, o
Inesc acompanha os desdobramentos
da fiscalização

A CGU, responsável pelo Portal da Transparência, também mantém dois
programas de capacitação. O Olho Vivo no Dinheiro Público, para
conselheiros municipais (de saúde, educação, dos direitos da criança,
etc.), e a Programação de Fortalecimento da Gestão Municipal, destinada
ao quadro de funcionários das prefeituras. O Olho Vivo tem atividades
presenciais — a equipe da CGU vai à cidade — focadas na apresentação do
portal para consulta dos dados, e no acompanhamento do uso dos recursos
públicos. Em geral, duram cerca de uma semana. “Fazemos visitas prévias
para conhecer as forças sociais que podem servir de contraponto à ação
do executivo”, explica Navarro, da CGU. A iniciativa já atendeu 1.394
conselheiros, 1.281 lideranças municipais, 1.330 servidores de
prefeitura e, agora, está sendo avaliada para uma futura formatação a
distância.

O outro programa, para gestores municipais, funciona por sorteio. As
prefeituras se inscrevem, e cinco são sorteadas para receber um curso
de 40 horas sobre licitações, convênios, contabilidade pública, etc. Há
dois meses, noutra iniciativa, a CGU encaminhou às universidades
federais proposta de estabelecer convênios e criar, em todas elas,
Centros de Estudo de Corrupção, a exemplo do que já existe na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Interações para juntar
forças e ampliar a participação popular na formulação e na execução das
políticas, justifica o secretário-executivo.

É preciso mais do que os cursos, concorda Francisco Sadeck, assessor de
política fiscal e orçamentária do Inesc. Por isso, após as
capacitações, a entidade acompanha os seus desdobramentos na
intervenção orçamentária. Um processo que leva dois anos, em média. “Os
cursos dão uma abordagem geral. O que fazer, se eu quero um hospital ou
escola para minha cidade; o que é necessário para construir uma
política pública, como incluí-la nos planos de governo, quais os
documentos necessários, os prazos de encaminhamento, como fazer a
articulação de forças, como controlar. Mas ficamos comprometidos e
vamos ao municípios quantas vezes for preciso.”


A atividade de Conselheiros em
Piripiri (CE)

A capacitação do Inesc trata, no primeiro módulo, da importância do
ciclo orçamentário (leis e prazos); depois, da execução dos gastos e da
LOA (Lei Orçamentária Anual, traduzindo suas siglas, códigos, funções,
etc.); e, finalmente, da ação política — o que pedir, como localizar
processos no Tribunal de Contas, como participar de audiências
públicas. Para quem trabalha com crianças e adolescentes, há mais dois
módulos — como extrair o orçamento criança (em todos os níveis de
governo) e fiscalizá-lo. No site, a cartilha “De Olho no Orçamento
Criança” apresenta uma metodologia desenvolvida numa parceria Inesc,
Abrinq e Unicef.

O Inesc já deu capacitações, entre outros, à Rede de Intervenção de
Política Pública (no Maranhão e na Bahia), ao Cedeca-Centro de Defesa
da Criança e do Adolescente do Ceará, e ao Centro de Cultura Luís
Freire. O CCLF, além de oferecer seus próprios cursos  (módulos de
sensibilização, controle social, Orçamento Participativo,
classificações orçamentárias, instrumentos de controle e aplicações;
orçamento criança), lançou a campanha “Orçamento Público é da sua
conta”, para estimular a mobilização no estado de Pernambuco. O site da
entidade tem o material promocional da campanha (para rádio, vídeo ou
sites, adesivos, bonés, etc.), além de um gibi, explicando o que é e
como se forma um Fórum de Orçamento Público, e um Caderno de Estudos,
com dez questões selecionadas em debates e oficinas.

Na Bahia, a campanha de conscientização se chama “Quem não deve não
teme”, e está sendo tocada, desde 2005, por seis ONGs — 
Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia
(AATR), Cáritas Brasileira, Centro de Assessoria do Assuruá (CAA),
Coordenadoria Ecumênica de Serviço, Espaço de Participação Social
(Espasso), Federação de Órgãos para a Assistência Social. Seu objetivo
é “blindar” os Grupos de Cidadania, outra forma de organização da
comunidade, contra a repressão e a cultura coronelista do estado.
Conseguiram promover caravanas de formação em 118 municípios. Criaram
um portal — o Controle Popular —, onde estão folders, cartazes, spots
de rádio, vídeos, textos, relatos de outras experiências, links para
legislação, e um guia passo-a-passo com orientações para montar um
grupo e começar o trabalho de fiscalização.

Para apoiar a ação social, num contexto em que o poder é
superconcentrado no prefeito e são comuns as represálias, as lideranças
do “Quem não deve não teme” buscaram o Ministério Público, que
recomendou formalmente aos órgãos municipais que facilitassem o acesso
dos grupos de controle, conta Juliana Barros, advogada da AATR e
integrante da comissão organizadora da campanha. “Há um cenário forte
de autoritarismo. Outra coisa importante era o medo da população, pois
aqui a prefeitura é uma grande empregadora: os grupos que desenvolviam
atividades isoladas sentiam-se mais vulneráveis”, analisa ela.

Somar forças é o princípio do Fórum Brasil do Orçamento (FBO), uma
grande frente de interlocução junto ao Congresso Nacional. Segundo
Sucupira, do Ibase, além de coordenar a rede de acompanhamento
orçamentário, o FBO encaminha projetos de lei, emendas, e também
defende bandeiras maiores, de transparência e participação popular.
“Queremos que a sociedade civil tenha mais acesso às informações, entre
outras medidas, com a abertura do Siafi a todos, e também de outras
bases de dados, por exemplo, as que estão no Ministério do
Planejamento”, diz.