Recicla-me ou te devoro



Enquanto o país aguarda regulamentação sobre lixo tecnológico, centros governamentais e privados investem na recuperação de equipamentos

Anamárcia Vainsencher


ARede nº41 Outubro de 2008 – O Centro de Reciclagem de Computadores (CRC) de Belo Horizonte foi criado este ano faz parte do programa BH Digital, da prefeitura. Existem outros três CRCs no Brasil.
Avanço tecnológico X preservação ambiental. Esse é um dos maiores enigmas propostos, atualmente, para a humanidade. E, entre as práticas para garantir a sobrevivência do planeta, acabar com os lixões — em especial, os aterros de resíduos tecnológicos e seus perigosos componentes químicos como cádmio, chumbo e mercúrio — é tarefa das mais difíceis. Cessar a movimentação transfronteiras de lixo tecnológico, por exemplo, requer o empenho de atores com interesses nem sempre convergentes. Apesar disso, as iniciativas nessa área multiplicam-se, em ações de governos, organizações da sociedade civil, empreendimentos comerciais de reciclagem e fabricantes de eletroeletrônicos.

Ainda falta muito para que, antes de uma compra, lembremos de conferir a teoria dos quatro erres: repensar, reduzir, reutilizar, reciclar. Poucos resistem ao impulso de consumo e aos apelos da propaganda, enxergando que, de fato, não precisam de um novo equipamento tecnológico. E, quando há necessidade real de troca, nem sempre se dá a destinação adequada para o equipamento descartado, que sob um processo de reciclagem, pode ser transformado em outro bem.

Do individual para o social, o quadro é mais preocupante. O Brasil se orgulha de dispor de 50 milhões de computadores instalados, tanto em residências quanto nas empresas (dados de maio de 2008). Um aumento de mais de 200% em relação ao início da década, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV-EAESP — Escola de Administração de Empresas de São Paulo). Só em 2007, foram vendidos 10,5 milhões de equipamentos. A previsão para 2008 é de crescimento de 28% nas vendas. Até 2012, o parque do país pode chegar a cem milhões de máquinas. Só que essa expansão, prodigiosa, gera um problema ambiental de iguais proporções.

Não há dados oficiais sobre a quantidade de lixo tecnológico produzido no país, diz Danilo Rodrigues César, professor de Robótica, mestrando em Educação e doutorando em Difusão do Conhecimento na Universidade Federal da Bahia. As projeções da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos são assustadoras: naquele país, “no mercado celular movido a moda, 98 milhões de aparelhos fizeram sua última ligação em 2005”. Mais: contabilizados os descartes de 1,5 milhão a 1,9 milhão de computadores, TVs, gravadores, monitores, telefones celulares e outros equipamentos, a produção anual total de lixo eletrônico seria de 50 milhões de toneladas, de acordo com o Programa Ambiental da ONU. Nesse ritmo de consumo, por volta de 2050 seriam necessários 8,5 planetas para absorver o dióxido de carbono produzido pela humanidade; seis planetas para fornecer aço; 3,5 para cimento; outros 3,5 para atender a demanda por borracha.

Segundo a Universidade das Nações Unidas (UNU), o processo de fabricação de um computador comum (24 quilos, em média) emprega ao menos dez vezes o peso da máquina em combustíveis fósseis, além de 1.500 litros de água. Essa relação supera, por exemplo, a dos automóveis, que utilizam, no máximo, duas vezes o seu peso em matéria-prima e insumos. Um único chip de memória RAM consome 1,7 quilos de combustíveis fósseis e substâncias químicas para ser produzido, o que corresponde a cerca de 400 vezes o seu peso.

Aparelhos celulares são outro item importante do lixo eletrônico. Em setembro, a base de terminais em uso no Brasil era de 138,4 milhões, com prognóstico de alcançar algo como 150 milhões até o final deste ano. Aqui, como no Reino Unido, o telefone móvel é trocado a cada 18 meses, apesar de sua vida útil ser de sete anos. Os aparelhos velhos ficam esquecidos em gavetas ou tornam-se lixo perigoso: o cádmio contido em um celular é o bastante para poluir 600 mil litros d’água. Um computador ficaria obsoleto no curtíssimo espaço de dois anos, em função do surgimento de novos aplicativos, que demandariam novos hardwares, num interminável ciclo vicioso. O ciclo de vida é muito maior quando os computadores têm sistemas operacionais livres, cuja evolução não significa a necessidade de troca de máquinas.

Se não fossem essas mudanças, por quatro a cinco anos, em média, a máquina poderia perfeitamente desempenhar suas funções básicas. Do ponto de vista contábil-econômico, a vida útil de um computador é de cinco anos, uma vez que seu valor deveria ser depreciado em 20% ao ano. Aqui, precisa ser contabilizada a obsolescência programada pelos fabricantes. Traduzindo: um bem se tornaria obsoleto ou não-funcional após determinado período de tempo, ou de uso, segundo planejamento da própria indústria. Em seu benefício exclusivo, pois o consumidor se vê obrigado a comprar novamente, e sempre, e mais.

Embora signatário das convenções de Basiléia e Estocolmo (veja o quadro), o Brasil não tem uma política nacional de resíduos sólidos, que vai e vem ao Congresso desde 1997 e, quem sabe, poderá ser aprovada no primeiro semestre de 2009. Se a indústria assim permitir, como indica o posicionamento da Associação da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) — que em setembro foi à Câmara Municipal de São Paulo pedir o adiamento do encaminhamento do projeto de lei 01-454/08, que cria o Programa de Reuso e Reciclagem de Equipamentos Eletrodomésticos, Eletrônicos e Eletroportáteis. O argumento: o PL estaria em discussão na associação.

A maioria (80%) dos 150 jovens que trabalham no CRC de Belo Horizonte
são mulheres.
Arranjos institucionais demoram para ser viabilizados, pondera Cristina Mori, assessora do gabinete da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI), do Ministério do Planejamento. Caso, por exemplo, do programa Computadores para Inclusão (CI), criado para aproveitar máquinas obsoletas do governo, cujo ciclo de troca é de cinco anos. Para esse reaproveitamento, começaram a ser criados Centros de Reciclagem de Computadores (CRCs), que recebem equipamentos doados principalmente por ministérios, estatais e demais órgãos do governo federal. O primeiro centro, em Gama, no Distrito Federal, começou em 2006. Depois, veio o Oxigênio (Guarulhos, SP) e o Cesmar (Porto Alegre, RS). Em 2008, surgiu o de Belo Horizonte e há mais um previsto no Rio de Janeiro.

De 2007 até setembro deste ano, o CI recebeu 21,8 mil computadores, doou 6.327 a 502 iniciativas de inclusão digital no país, entre as quais escolas públicas, telecentros, bibliotecas e outros projetos. O material encaminhado aos CRCs inclui peças e equipamentos apreendidos (como caça-níqueis). O de Gama, reconhece Cristina, recebe um volume maior, por estar no DF, mas é também esse que tem conexão com as regiões Norte e Nordeste para envio de kits (CPU, monitor, teclado), que são transportados pelas Forças Armadas. Os centros, garante ela, extraem o máximo de peças e partes reaproveitáveis. As que não são, vão para os catadores. Os componentes tóxicos são recolhidos por empresas certificadas pelos respectivos órgãos ambientais estaduais de coleta – por exemplo, Átiva ou Suzaquim, em São Paulo. A primeira negocia placas de circuito impresso, fontes e discos rígidos com exportadores de lixo eletrônico credenciados como a Lorene. Tubos de imagem e telas — ricos em tóxico ácido de chumbo e fósforo — são tratados na sua própria planta, após descontaminação pela técnica de corte por banda quente. O vidro limpo é moído e o pó resultante, novamente submetido a processo de vitrificação.

Os maiores doadores ao CI são governamentais. As doações de empresas privadas estão aquém da expectativa — na opinião de Cristina, devido ao medo em relação à segurança de dados ou à destinação de resíduos. Como agravante, o país tem pouca regulamentação e o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) formulado pelo Ministério do Meio Ambiente continua em banho-maria (Veja o quadro).  Outra característica dos centros de reciclagem é a formação de mão-de-obra, atividade relacionada à sua própria atividade-fim. “No Oxigênio, trabalhamos só com computadores e periféricos, que desmontamos, limpamos, testamos. Aí instalamos software livre e encaminhamos”, informa o diretor financeiro da entidade, Francisco Dias Barbosa. Grupos de 70 jovens, de 18 a 29 anos, cursando no mínimo o ensino fundamental, têm aulas teóricas e práticas de hardware e software. Depois da capacitação, a maior parte prefere trabalhar por conta própria na manutenção de máquinas. Para este ano, o CRC Oxigênio deve montar 1,4 mil kits (CPU, monitor, teclado), resultado de recondicionamento de 5 mil máquinas, que devem seguir para 130 entidades. A recepção de equipamentos varia, incluindo lotes inaproveitáveis, o que explica a baixa relação de quatro para um, em média, entre recebidos e remontados. “Isso acontece porque os bens ficam muito tempo parados no serviço público. Mas deve mudar, com a alternativa de desova oferecida pelo Computadores para Inclusão”, observa Barbosa.

O caçula CRC de Belo Horizonte, parte do programa BH Digital, da prefeitura da capital mineira, recebeu 4,7 mil doações até agosto, segundo a coordenadora Silvana Veloso, da Prodabel — a companhia municipal de processamento de dados. Lá, 150 jovens, 80% dos quais meninas, têm 500 horas de cursos. O trabalho é feito em parceria com a ONG Instituto Aliança, que entra com metodologia e conteúdos de desenvolvimento pessoal. A capacitação envolve reparo e manutenção de micros; manutenção e instalação do software livre próprio do BH Digital, o Libertas, já na versão 4.1; noções de rede para aprender sobre cabeamento; multimídia, com noções de internet, rádio e TV. “Nossa meta é chegar a 50% de empregabilidade dos jovens”, afirma Silvana. Parte dessa empregabilidade virá da contratação dos jovens como aprendizes para manter os equipamentos da prefeitura.

Gerido pela ONG Afago e em funcionamento desde janeiro de 2007, o CRC Gama tem entre seus parceiros a Fundação Banco do Brasil, a Cobra Tecnologia, a ONG Programando o Futuro (assessoria técnica e capacitação para monitores de telecentros); o Colégio Marista (auxílio financeiro para bolsas de estudos de alunos). “Formamos 44 jovens por semestre, ao longo de seis meses, quatro dias por semana”, conta a coordenadora Zélia Victorino dos Santos. Conforme a especialidade, contudo, a capacitação varia. O Gama trabalha com impressoras, hubs, notebooks, teclados, mouses, e consegue recuperar 60% do que recebe, segundo Zélia.

Mas outras iniciativas existem, além dos CRCs, lembra o professor de robótica  Rodrigues César, para quem a existência de tanto lixo eletrônico se deve ao intenso mercado consumidor característico do capitalismo e ao ritmo acelerado das inovações tecnológicas, que criam dependência do consumo exacerbado de computadores, celulares e outros dispositivos eletrônicos. Otimista, o professor acredita que  a regulamentação do descarte uma hora sai, a exemplo de resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente sobre pilhas e baterias. “É um caminho longo rumo a uma sociedade sustentável, mas já notamos avanços. Vale lembrar que algumas operadoras de telefonia já trabalham com coleta de aparelhos, acessórios, baterias e chips. Basta o consumidor levá-los a lojas credenciadas, e serão reciclados ou reaproveitados e revendidos”, argumenta Danilo.

Em relação à destinação do lixo, após lembrar que as usinas existentes só trabalham na reciclagem de determinados tipos de resíduos, o professor pondera que, se não é possível aproveitar tudo, uma das alternativas seria “a ressignificação do lixo tecnológico/eletrônico por meio de projetos sociais”. Exemplo não faltam: os laboratórios com materiais reciclados do Cefet-Itabirito (MG); o Projeto Robótica Livre; ou o trabalho da APAE de Salvador, cujas crianças fazem objetos de arte com partes e peças. Duas preocupações de Danilo: a conscientização da população sobre a exportação de lixo eletrônico dos países ricos para os pobres; e a desinformação de várias pessoas que fazem artefatos com esse lixo sobre seus conteúdos perigosos. Uma boa reflexão, ele recomenda, é assistir o filme Wall.E, que conta a história de um robô encarregado de limpar um lugar inabitável devido à imensa quantidade de lixo, no ano de 2700: o planeta Terra.

Lei em disputa

Democracia tem disso. Não basta propor, é preciso negociar. Em especial quando se trata de legislação que, em última análise, responsabiliza o fabricante pela destinação final do que produz. Por isso, o vaivém do Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), formulado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) em 2007, hoje em comissão da Câmara dos Deputados, onde recebe emenda do deputado Arnaldo Jardim.

Um PNRS, argumenta Cristina Mori, assessora do gabinete da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI), do Ministério do Planejamento, seria um guarda-chuva para dar conta de todos os resíduos sólidos, ao envolver todos os atores, com a respectiva atribuição de responsabilidades — incluídas as pós-consumo. “Sem um marco legal, cada lobby age e acabam sendo produzidas regulações específicas, para cadeias específicas”, observa ela.

O substitutivo deve ser apresentado em breve, segundo Zilda Maria Farias Veloso, coordenadora-geral de Gestão em Qualidade Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama). “Não mudaram muito a proposta do MMA. Mas o cerne do substitutivo contém um pouco da proposta anterior, cuja logística implica a concessão de incentivos econômico-financeiros à indústria, que não se mexerá sem isso”, comenta Zilda. Em outras palavras, a sugestão prevê a redução de obrigações das empresas. “A emenda de Jardim abre uma brecha para as empresas”, acrescenta a especialista do Ibama.

Em algumas áreas, a situação é crítica. Anualmente, no país, são comercializadas 8 bilhões de pequenas pilhas, para celulares inclusive, mais de 35% clandestinamente. Diante disso, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) solicitou ao Ministério da Fazenda a redução de impostos incidentes sobre as pilhas recarregáveis. A recomendação foi aceita. “Faltam-nos políticas públicas”, diagnostica Zilda. Por isso, o Conama fica a editar resoluções tópicas, sempre com base no princípio da precaução e do poluidor-pagador. Mas, aponta ela, além da resistência da indústria, é difícil chegar até a população para informá-la. Zilda aponta iniciativas como a do Banco Real que, com recursos próprios, recolhe pilhas e baterias dentro de suas agências.

Limites e responsabilidades

A União Européia (UE) e os Estados Unidos têm adotado medidas cada vez mais estritas em relação ao lixo eletrônico e aos resíduos químicos perigosos envolvidos, com limites ao uso de substâncias danosas, e estímulos à sua substituição, manipulação e descarte. O Brasil, embora signatário de convenções internacionais como Estocolmo e Basiléia, não tem uma política nacional de resíduos sólidos, cujo projeto de lei vai e vem, desde a sua apresentação nos anos 1990. Questões emergenciais como as relacionadas a baterias, por exemplo, são normatizadas por resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Algumas regras vigentes na UE:

REACH – Registration Evaluation and Autorisation of CHemicals Legislation (Avaliação de Registro e Autorização da Legislação sobre Produtos Químicos) — Em vigor desde 2007, exige o registro, durante 11 anos, de cerca de 30 mil substâncias químicas hoje utilizadas. Objetivo: tornar mais abrangentes informações sobre a periculosidade de tais substâncias, identificar medidas adequadas que evitem os riscos da manipulação e garantir sua adoção. O ônus dessas determinações cabe à indústria química.

O REACH aplica-se a substâncias que causem câncer; esterilidade em mulheres e homens; mutações genéticas ou defeitos de nascimento. E àquelas que se acumulam no organismo e no ambiente. Sua implementação, que vai até 2022, também permitirá rápido banimento total ou parcial de substâncias nas quais sejam identificados riscos inaceitáveis.

RoHS – Restriction of Hazardous Substances Directive (Diretrizes sobre Restrições a Substâncias Perigosas) — Em vigor desde 2006, refere-se a substâncias contidas em equipamentos elétricos e eletrônicos. Devem ser adotadas e virar lei em cada Estado-membro da UE. As RoHS estão estreitamente relacionadas às Diretrizes sobre Lixo Elétrico e Eletrônico do bloco (Waste Electrical and Electronic Equipment Directive – WEEE), que dispõem sobre coleta, reciclagem e recuperação desses bens, mais uma iniciativa legislativa tomada para resolver o problema das enormes quantidades de lixo eletrônico tóxico. São conhecidas como a resolução relativa a produtos livres de chumbo, mas restringem o uso de seis substâncias: chumbo, mercúrio, cádmio, cromo hexavalente (Cr6+), polibromato bifenil (PBB) e éter difenil polibromato (PBDE).

As baterias são um capítulo à parte, com regras próprias na UE. As regras foram revisadas e ampliadas em 2003, para explicitar melhores práticas de proteção do ambiente contra os efeitos negativos do lixo e estabelecer um programa mais ambicioso de reciclagem — até 2016, aumentará gradualmente em 45% o número de locais de coleta de responsabilidade da indústria. Tais normas estabelecem, ainda, limites para o conteúdo de elementos como mercúrio e cádmio nas baterias, exceção às de uso médico, casos de emergência e ferramentas elétricas portáteis. A legislação não define limites quantitativos de chumbo, ácido de chumbo, níquel e níquel-cádmio nas baterias, mas menciona a necessidade de restringir o seu uso e de reciclar até 75% dos produtos que contenham tais substâncias.

As RoHS são aplicáveis aos seguintes itens: equipamentos domésticos de pequeno e grande portes; de tecnologia da informação; de telecomunicações (exceto de infra-estrutura, em alguns países); de consumo; de iluminação — inclusive lâmpadas elétricas; ferramentas elétricas e eletrônicas; brinquedos, equipamentos de lazer e esportivos; dispositivos médicos (ainda isentos); instrumentos de monitoração e controle (ainda isentos); dispensadores automáticos. A responsabilidade por esses bens é da companhia que os coloca no mercado. As normas RoHS valem para bens produzidos na Europa ou importados.