A sociedade espera a sua vez

Quando se trata de serviços públicos na web, os primeiros da fila são os próprios governos. Precisamos começar a desenvolver serviços que dêem acesso aos direitos dos cidadãos. Áurea Lopes

ARede nº57 abril/2010 – Haja paciência. Os cidadãos – mesmo os que já têm o privilégio de ser incluídos digitalmente; dos outros, nem se fala! – ainda vão demorar um bom tempo para se ver livres dos bancos de espera em órgãos públicos, como aconteceu com a população de Gentofte, na Dinamarca. Os habitantes dessa cidade já podem usar a internet para fazer um autoatendimento integral (sem precisar sair de casa) em todos os serviços públicos do município (Veja a reportagem na página 14). Bem, mas isso é na Dinamarca…

Aqui no Brasil, desde que brotaram os primeiros casos espontâneos de e-gov, em 2.000, houve alguns avanços importantes, como o sistema da Previdência, que dispõe de uma respeitável gama de webserviços, tanto para o assegurado quanto para o empregador. Porém, na grande maioria dos portais públicos das três esferas do poder – municipal, estadual e federal –, o mais comum é encontrarmos informações, cadastros para preenchimento e formulários para impressão. Uma espécie de pré-atendimento, para agilizar o expediente no balcão (Veja a página 16).

No e-gov completo – em que toda a transação é realizada online –, a evolução se deu a favor dos credores: foram criados muitos sistemas para facilitar pagamentos de taxas, tributos, obrigações. Exemplo clássico: a entrega do Imposto de Renda pela internet, que mais uma vez, este ano, é um fenômeno de indiscutível sucesso. Mas que também é uma boa mostra de como o cidadão usa bem a tecnologia para cumprir os seus deveres. A via contrária, em que o contribuinte usa a rede para ter acesso a seus direitos de cidadão, ainda carece de pavimentação.

Na prática, funciona assim: você pode usar a internet para pagar o IPTU. Mas, se por engano fizer o pagamento em duplicidade, precisa ir pessoalmente à subprefeitura da sua região reaver seu dinheiro. Foi o que aconteceu com a estudante paulistana Isabela Gomes, que seguiu essa orientação, recebida por telefone – no site, não conseguiu encontrar informação a respeito de como proceder nesse caso de duplo pagamento. Diante do guichê de recepção, Isabela esperou a funcionária da prefeitura consultar “o sistema” e ouviu a conclusão: “O seu dinheiro ou ainda não chegou aqui; ou já chegou, e já saiu”. O que fazer, então? A resposta pareceu uma piada: ir – pessoalmente – à Secretaria de Finanças e ver o que diz o sistema de lá.

Faltam políticas
Estórias absurdas como essa, que ilustram as burocracias públicas país afora, acontecem, na opinião do pesquisador Aires José Rover, da Universidade Federal de Santa Catarina, porque “os governos só implementam aquilo que lhes interessa”. Aires integra o Observatório: Democracia Digital e Governo Eletrônico, projeto de pesquisas de e-gov focadas nas áreas de TV digital, poder judiciário, segurança pública, educação digital e fazenda pública (http://observatoriodoegov.blogspot.com). E alerta para a ausência de políticas públicas no setor. “Hoje, nós dependemos da cultura interna de cada governo. Quem é mais aberto, ousa mais. Mas o que vemos, em geral, é que as chefias não têm interesse em implementar webserviços eficazes, que expõem os processos com transparência. Esses trabalhadores não estão preparados para fiscalização, cobrança. Só as políticas públicas podem mudar esse cenário”, argumenta ele.

Tiago José Tavares Ávila, servidor público em Alagoas, que fez do e-gov seu tema de conclusão do curso MBA em Gerência de Projetos, concorda: “Governo eletrônico é operação totalmente na internet. Se começa na web mas tem que ser finalizado no órgão público, é um serviço semipresencial. E, nos casos de e-gov efetivo que conhecemos, o maior beneficiário é sempre o governo. Os serviços mais encontrados são os ligados a arrecadação”. Em sua opinião, não existe uma política federativa de governo eletrônico voltada para o cidadão.

“Para que as coisas aconteçam, tem que ser prioridade de governo”. Quem engrossa o coro é Patrícia Pessi, consultora em e-gov, e ex-diretora do departamento de governo eletrônico do Ministério do Planejamento. Ela conta que, até 2005, o governo federal e estados como Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo desenvolveram muitas ações de governo eletrônico. Depois disso, não surgiram novos serviços diretos para o cidadão. “Temos pouca coisa em serviços diretos de Saúde e de Educação. Mas as estruturas internas dos sistemas estão sendo reformuladas. Porque também é fundamental qualificar o back office. A tecnologia precisa modificar os processos. E quando isso aflorar, o desafio será construir uma interface com o usuário final”, ressalta a especialista.

Rogério Santanna, responsável pela Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento, confirma: “Não existe sistema novo sendo desenvolvido que não seja assentado na web”. Segundo ele, integração dos sistemas é a chave da próxima etapa. “Veja, o Bolsa Família, está integrado ao sistema de Educação. E nós podemos fazer isso com competência pois fomos o primeiro país na América Latina a lançar padrões de interoperabilidade”, ressalta o secretário.

O que ainda é altamente deficitário, na avaliação do professor Rover, é a interação: “O cidadão precisa poder intervir nas decisões, colocar suas necessidades e receber respostas”. O problema, analisa Ávila, é que os maiores beneficiários dos serviços públicos eletrônicos, aqueles que poderiam ir ao telecentro para marcar uma consulta médica no posto de saúde, ou realizar a matrícula do filho na escola pública, são pessoas de baixa renda, que não têm poder de articulação para reivindicar esse direito, previsto na Constituição. Ávila se refere ao artigo 175 da Constituição Federal, que exige qualidade na prestação de serviços públicos.

Soluções à mão
Um dos entraves à integração dos sistemas – o que permitiria a criação de um webserviço integral – é, sem dúvida, a questão do parque tecnológico. Temos um enorme manancial de dados distribuídos por sistemas que não se intercomunicam. As tecnologias de muitos órgãos públicos são antigas e heterogêneas. O que dá aos gestores argumentos para não avançar.

No entanto, é preciso lembrar que existem soluções simples e gratuitas, disponíveis na rede, que podem ser usadas – até colaborativamente – para construir sistemas eficazes. O professor Aires cita como referência o projeto E-lixo, parceria entre o Instituto Sérgio Motta e a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. A partir do Google Maps, são mapeados os pontos de coleta de lixo eletrônico na cidade de São Paulo. Para localizar o posto mais próximo, o usuário coloca o seu CEP e o tipo de material que deseja descartar. O sistema permite ainda o cadastramento de estabelecimentos interessados em se tornar pontos de coleta.

Para Tiago Ávila, os governos devem se inspirar nos modelos de comunicação simplificados das redes sociais: “As redes sociais têm contribuições importantes para o ambiente público”. Patrícia enumera outras facilidades disponíveis: “Os software livres, que estão aí, para usar. No Portal do Software Livre há diversos programas de uso gratuito. Tem também o uso de computadores em grid, o intercâmbio de soluções, o desenvolvimento colaborativo”.

Inclusão digital
Para além das dificuldades tecnológicas, talvez o maior desafio seja político. Não existe e-gov se não existir inclusão digital. De um lado, o maior beneficiário dessa modalidade de comunicação com o governo é exatamente aquele cidadão que não tem apoio de uma estrutura administrativa – não tem secretária, não pode chegar atrasado no trabalho para ficar na fila do SUS, não tem conta bancária para débito automático. É o trabalhador que pode resolver assuntos essenciais em sua vida profissional e pessoal durante o horário de almoço, em um telecentro ou em uma lan house.
De outro lado, ganha o poder público que tem interesse efetivo na democratização da gestão. Patrícia recorda um caso de e-gov exemplar nesse sentido. Em 2006, em Belo Horizonte (MG), os munícipes escolheram, em votação pela internet, as obras que consideraram prioritárias no Orçamento Participativo da cidade. “A votação foi realizada em diversos pontos de acesso públicos e a participação foi impressionante, milhões de pessoas votaram”, conta ela. Por isso, os especialistas são unânimes em concluir: a sociedade civil precisa de novos e mais completos serviços de e-gov. E que cheguem junto com a banda larga.

Brasileiro usa pouco

De acordo com uma pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e comunicação no Brasil, em 2009, considerando a área urbana, 30% dos brasileiros que acessaram a internet utilizaram serviços de e-gov. No ano anteriro, esse índice foi de 25%. Na área rural, somente 10% da população utilizou serviços de governo eletrônico, no período. O levantamento, realizado pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), foi conduzido pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (Cetic.br), também concluiu que, entre 2005 e 2009, o uso do governo eletrônico mais que dobrou.

Entre os que não usam e-gov, mais da metade (56%) disseram preferir o contato pessoal. Outros 12% acham complicado usar a internet para se comunicar com a administração pública; 9% declararam que os serviços dos quais necessitavam não estavam disponíveis na Internet; e, para 8%, é difícil encontrar os serviços nos sites de órgãos públicos.

E-GOV PELO MUNDO
A Organização das Nações Unidas (ONU) faz avaliações anuais sobre a situação de governo eletrônico nos 191 Estados-membros. Disponível no e-Government Readiness Index (Índice sobre a Legibilidade do e-gov), a pesquisa considera dois critérios principais: a legibilidade dos sites e a amplitude da participação da sociedade por meios eletrônicos. Em 2008, os dez primeiros entre os 50 melhores
e-gov da ONU eram dos seguintes países: Suécia, Dinamarca, Noruega, Estados Unidos, Holanda, Coréia do Sul, Canadá, Austrália, França e Reino Unido. No final do ranking, alguns países da América do Sul: México (37ª posição), Argentina (39ª), Chile (40ª). O Brasil ocupa a 45ª posição, mas já esteve na 33ª, em 2005.

Nos países desenvolvidos, governo e governança eletrônicos são políticas de Estado com metas definidas e respectivos prazos. No Velho Continente, caminha-se para uma política pan-europeia. A última declaração aprovada na Conferência Interministerial de e-Gov, por todos os países-membros, em novembro de 2009, em Malmö (Suécia), fixou prioridades até 2015, sujeitas a revisão anual, com o objetivo de transformar o bloco em uma economia baseada no conhecimento. Na declaração, os ministros concordam que os serviços têm de melhorar, e os gastos envolvidos diminuir, o que é possível pelo estímulo a uma cultura comum de colaboração e da melhoria das condições de suas administrações.

Durante a Conferência de Malmö, houve a entrega do Prêmio Europeu eGov 2009. Na categoria “Empoderamento do Cidadão” venceu um sistema chamado Genvej, desenvolvido em Gentofte Kommune, um município próximo de Copenhague (Dinamarca). O Genvej permite autoatendimento online e consulta a dados pessoais de todos os serviços públicos, 24 horas por dia, pelo site www.gentofte.dk. Para isso, o sistema é integrado a órgãos regionais e nacionais, além de parceiros privados. Os usuários podem realizar operações nas áreas de Educação, de Saúde e até solicitar passaportes.

No Reino Unido, entre as iniciativas mais recentes, em 2008, foi adotada política de software de código aberto, para reduzir os custos dos contribuintes. Em novembro, a UK Border Agency lançou um serviço móvel para migrantes sem condições de deslocamento para fornecer seus dados a fim de obter carteira de identidade. E, desde janeiro de 2010, há um único ponto de acesso aos serviços, com mais de 1,1 mil bases de dados do governo central disponíveis para reuso gratuito. (Anamárcia Vainsencher)