É preciso dialogar com a sociedade

O ambiente digital é propício à colaboração e ao compartilhamento. Mesmo assim, a participação orgânica da sociedade nos projetos de inclusão digital, quando existe,é limitada ao espaço dos telecentros.

Patrícia Cornils

ARede nº63 Outubro de 2010 – AO CONTRÁRIO do que se poderia esperar, ainda é pequena a participação da sociedade nos projetos de inclusão digital, sejam eles telecentros, cidades digitais ou redes públicas. Os projetos não preveem uma participação orgânica, a não ser na gestão dos telecentros, e são concebidos sem ouvir os diversos interesses envolvidos. A participação cidadã e o controle social, práticas já consolidadas em políticas públicas mais tradicionais como saúde e educação, ou mesmo em mais recentes, como políticas para a juventude, praticamente não existem no segmento de inclusão digital.

Um exemplo, válido para praticamente todos os demais, é o Navegapará, programa de inclusão digital do Pará. “Há conselhos gestores nos telecentros, mas não existe um conselho gestor do programa”, diz João Weyl, secretário-adjunto da Secretaria de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia (Sedect), responsável pelo Navegapará. Por que isso acontece? Para Weyl, porque “não há uma cultura de controle social na comunicação. Não é só na banda larga. Isso diz respeito também às demais mídias”.

Márcia Schuller, secretária de Tecnologia da Informação e Inclusão Digital de Novo Hamburgo (RS), pondera que programas relacionados com a sociedade da informação e dirigidos aos cidadãos são uma novidade política, e é por isso que ainda não incorporaram essa cultura. As primeiras iniciativas de inclusão digital, no entanto, desde o início dos anos 2000 trabalham com o conceito de que a apropriação, pela comunidade, é fundamental para a sustentabilidade e a continuidade dos projetos. Mas isso não foi incorporado a sua gestão em alto nível.

“A sociedade tem que cutucar e participar. Porque, quando os governos mudarem, como se garante que o programa será mantido?”, pergunta Weyl. No Pará, informa ele, os vários projetos de inclusão digital estão se articulando por meio da Universidade Federal do Pará, que será o polo regional de formação do programa Telecentros.BR. “Estamos conversando para descobrir como, a partir disso, constituir um fórum estadual de inclusão digital”. Em Novo Hamburgo, conta Márcia, a prefeitura sentiu falta de um diálogo mais estruturado com a sociedade no momento da definição dos locais onde serão implantados os 16 novos telecentros do município, em dois lotes de oito e em parceria com o Telecentros.BR. “O primeiro deles vai justamente para São João do Deserto, comunidade que, no processo de orçamento participativo, reivindicou um telecentro”, conta ela. Os demais foram definidos de acordo com critérios da secretaria.

A ausência de participação formal é surpreendente, porque o digital é um espaço privilegiado para mudar a política, ao tornar possíveis formas não-hierarquizadas de participação. Ele traz, dentro de si, ferramentas que facilitam e estimulam a interação e a colaboração. Isso foi demonstrado pelas consultas públicas sobre o Marco Legal da Internet no Brasil (que recebeu 1.168 contribuições em seu site e incorporou inclusive debates realizados pelos meios de comunicação). A consulta pública da Lei de Direitos Autorais recebeu 8.431.

DIREITO À INFORMAÇÃO
A experiência de cidade digital do Piraí Digital, no interior do Rio de Janeiro, foi uma das 11 expostas na oficina “Novos Paradigmas de Produção e Consumo”, realizada em agosto pelo Instituto Pólis. A iniciativa pretende verificar como experiências de diversos setores podem fazer parte de uma plataforma de políticas públicas desenvolvida sob novos paradigmas.

No caso de Piraí, explica Luís Eduardo Tavares, pesquisador do Pólis, a principal contribuição para políticas futuras é a de um modelo de gestão apoiado na informação. E na comunicação como um direito que precisa ser universalizado, e não acessível para alguns setores. “Essa âncora do direito à informação é interessante”, explica Luís, porque a questão digital favorece a transparência e a participação. “Com a informatização da gestão pública, os canais de interação são ampliados e, querendo ou não, isso abre mais contato com a população.” Não se realiza todo o potencial do digital sem um aumento de transparência e a abertura de novos canais de participação, diz Luis.

O acesso a novas ferramentas e seu uso não vão, por si só, democratizar a gestão pública, porque o grau de abertura e participação depende sempre de uma decisão política. E porque, mesmo nos programas de inclusão digital, que em tese visam estimular maior protagonismo da sociedade, a apropriação dos espaços públicos e da tecnologia não ocorre de maneira linear. Às vezes, nos telecentros, os conflitos entre os gestores e a administração e entre os gestores e a comunidade fazem com que esses espaços, em tese públicos, sejam enxergados pela comunidade como uma intervenção do Estado ou como um meio de fazer política partidária. É o que mostra a dissertação de mestrado de Bernadete Barbosa “Inclusão Sociodigital no contexto das políticas públicas: um estudo de caso nos CDCs do estado da Bahia”.

Bernadete percebeu, estudando oito Centros Digitais de Cidadania (CDCs), que as políticas definidas pelo programa não conseguem se realizar dentro dos telecentros. Tanto pelas expectativas diferentes do Estado e das organizações mantenedoras em relação ao projeto quanto porque as comunidades não foram escutadas, não foram convidadas a participar da elaboração e da operacionalização do programa. Os Núcleos de Gestão Colaborativa (Nugecs), concebidos no projeto como a instância de participação da comunidade e o instrumento para fortalecer as propostas sociais e atividades, além de receber as demandas da comunidade, não raro são compostos por representantes da instituição mantenedora do telecentro. E essas instiuições têm sua própria maneira de trabalhar, que pode ou não estar de acordo com a linha do projeto e com os interesses da comunidade.

CONFLITOS DE INTERESSE
Os conflitos de interesse são constantes e não somente na Bahia. No telecentro do Paranavegar, na Ilha do Mel, no Paraná, o comitê gestor convocou toda a comunidade porque queria, ao contrário dos gestores públicos do projeto, cobrar o acesso realizado por turistas – os “estrangeiros”, no entender da comunidade – ou impedi-los de frequentar o telecentro. A visão do Estado, no entanto, era de que o acesso propocionado pelo telecentro é um serviço público e, portanto, o direito de uso é de todos, sem discriminação.

É no espaço desses conflitos que se constroi a política, concluiu Bernadete, em seu estudo. E é por isso que a política precisa, para se efetivar, de espaços de escuta dos vários interesses envolvidos. O professor Lindomar Wessler Boneti, do Programa de Pós Graduação em Educação da PUC/Paraná, uma das referências teóricas de Bernadete, explica que a política se dá em uma dinâmica de conflitos de interesse, desde o momento em que começa a ser pensada até sua realização. E deveria implicar um processo de discussão entre esses interesses. No âmbito local, as particularidades de cada comunidade devem ser levadas em conta, porque, ao final, é o atendimento a essas particularidades que vai atrair a participação das pessoas. “Quando ignora determinado espaço público, a comunidade também está reagindo à política, porque ela não despertou seu interesse”, comenta Boneti.

Arrozal, maior distrito de Pirai depois da sede do município, recebeu um telecentro em 2004. Logo a comunidade percebeu que a estrutura colocada pela prefeitura era boa, mas que os horários atendimento deixavam a desejar. “Criamos uma comissão e fomos até a prefeitura. Capacitamos voluntários em software livre e noções básicas de internet e passamos a atender a população aos sábados e horários noturnos”, diz Miguel Barbosa de Freitas, dirigente da associação de moradores de Arrozal e coordenador das ações .org do Piraí Digital. “Hoje podemos manter o telecentro em funcionamento, mesmo que a prefeitura tire seu funcionário de lá”. A associação assumiu o telecentro “de corpo e alma”. “Aos funcionários da prefeitura que reclamavam, dizíamos apenas para ir reclamar com o prefeito”, conta Miguel.

Além de valorizar a participação da comunidade, o poder público precisa facilitar essa participação. O acordo do telecentro de Arrozal com a prefeitura foi informal. “Se houvessem exigido que a associação formasse algo como um Oscip na época, nada teria acontecido”, diz. Para a comunidade, observa, é preciso comunicar as coisas em uma linguagem que mostre que aquela estrutura é realmente dela.

SEM MODELOS PRONTOS
Não existem modelos prontos, mas há experiências interessantes em muitos lugares. O modelo de governança do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) é uma referência para outros países não apenas porque os representantes da sociedade civil (11, de um total de 21 participantes) são eleitos, explica Demi Getsckho, um de seus integrantes. É a composição que diferencia o modelo brasileiro dos demais, porque a maioria dos participantes não é indicada pelo governo. “Isso é bacana porque não é razoável que um setor controle a internet, o ideal é o conjunto”, diz ele. Além disso, acrescenta, na maneira de funcionar do CGI.br, raramente se toma decisões pelo voto. “As questões são discutidas, amadurecidas, até se chegar a um consenso. Quando sai uma decisão, está todo mundo junto”.

Isso quer dizer que o Estado só pode implantar programas de inclusão digital a partir de demandas da sociedade? “Não, o Estado também precisa tomar iniciativas, criar os problemas”, explica Beatriz Tibiriça, do Coletivo Digital. Sem experiências como as que o Brasil já realizou nesse segmento, sequer a discussão sobre participação seria possível, observa ela.

Mesmo na formação dos monitores dos telecentros, para atuarem como agentes de inclusão digital e mediadores do espaço com a comunidade, é preciso dar passos mais largos. Um monitor do telecentro só pode virar agente de inclusão digital quando participa dos processos de gestão do espaço, observa Dalton Martins, um dos articuladores do polo nacional da rede de formação do programa Telecentros.BR. E isso vale em todos os níveis dos projetos, “na sua direção, nas comunidades, em conselhos gestores”, acrescenta ele. “Se existe uma dimensão de discussão e uma instância de tomada de decisão, aquele espaço tem possibilidade de se apresentar. Do contrário, os espaços (de inclusão digital) vão sempre cair na dimensão do acesso ou das oficinas, o monitor apenas vai reproduzir as ações do programa. Os desejos e crenças das pessoas que vão ali, ou que poderiam ir, serão barrados pelas fronteiras dos procedimentos burocráticos”, constata.

Para Martins, os governos implantam políticas dessa forma, em vez de formar pessoas para pensar na autonomia dos espaços: “Quando se pensa em autonomia, é apenas da perspectiva financeira. Não se considera as possibilidades de ação de governança eletrônica, webcidadania, etc.”. Além disso, observa ele, os governos não dão conta de fazer gestão de seus programas de forma participativa, não têm dados atualizados e confiáveis sobre o desempenho dos projetos, ou lidam somente com dados mais fáceis de coletar. E a circulação de informação é fundamental para o aprimoramento desses projetos. “A rede acaba onde há escassez de informação. A rede morre onde pára a conversa”, avalia.

A necessidade de gerar dados mais confiáveis para avaliar o desempenho dos programas e rever sua forma de atuação faz parte de vários projetos em andamento. Bernadete vai implementar, em parceria com o Programa de Inclusão Sóciodigital da Bahia, um telecentro no qual tentará dar resposta às questões levantadas por seu estudo. “E então vamos avaliar se, assim, conseguimos uma resposta efetiva”. O Gesac, programa do Ministério das Comunicações, criou um projeto de formação de monitores que vai funcionar, também, como uma pesquisa de uso e funcionamento desses espaços. Além de formar 738 monitores, o projeto tem por finalidade avaliar cada passo – desde a escolha das pessoas, a definição do conteúdo, o funcionamento dos conselhos gestores, o aprendizado dos participantes – e deixar os dados dessa avaliação abertos, à disposição de outros projetos.

“Inclusão digital é um tiro curto, de cinco anos”, constata Elias Nagib David, coordenador do projeto. Ele se refere à expansão da banda larga e ao barateamento de equipamentos e serviços de tecnologia da informação, que por si só vai abrir a mais brasileiros as portas para o uso das TICs. “O foco do governo vai ter que ser a formação: como levar o conhecimento para as pessoas fazerem bom uso da rede”, prevê Elias.

Quem pode indicar quais os recursos necessários para uma boa formação são, de novo, as pessoas que trabalham com as comunidades, onde esse trabalho é ativo. “São os representantes locais que dão vida aos espaços, que sabem o que fazer com eles e são os que seguram as pontas quando o governo deixa de apoiar os projetos”, diz Dennie Fabrizio, do Projeto Puraqué, que coordena a Casa Brasil e faz parte do Ponto de Cultura Digital do Oeste do Amazonas.