Um computador por aluno. Quando?
Onde? Como?

Programa de laptops para estudantes acontece nas pontas, espontaneamente. Mas educadores temem enfraquecimento da inciativa enquanto política pública de Educação. Patrícia Cornils

ARede nº 74, outubro de 2011 – “Um barco sem rumo”. “Um programa sem pai nem mãe”. “Dispersão de ações e falta de valorização dos resultados”. A avaliação de interlocutores envolvidos na implantação do Um Computador por Aluno (UCA) sobre a atual situação do programa destoa dos relatos, na internet, de professores que, pouco a pouco, descobrem maneiras de usar os “uquinhas”, apelido que os laptops educacionais receberam, nas escolas.

Destoa, também, das centenas de fotos publicadas nos blogs criados para relatar essas experiências, em que crianças posam com seus computadores ou fazem tarefas nas máquinas. Os relatos e as fotografias são felizes. As avaliações sobre o que aconteceu com o programa, na transição do governo Lula para o governo Dilma, nem tanto. E ambas as faces desse programa de inclusão educacional e digital são verdadeiras.

O projeto piloto do UCA, de entrega de 150 mil computadores a alunos e professores de 300 escolas de todos os estados, foi lançado publicamente pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva em sua cidade natal, Caetés (PE), dia 23 de julho de 2010. Repercutiu em todo o país e realizou parte do que se propôs. De lá para cá, de acordo com o Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE), distribuiu 110 mil computadores em 320 escolas. Ou, de acordo com a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC), 147,5 mil computadores, para 179 municípios.

O UCA, no entanto, não foi concebido somente como um projeto de aquisição e distribuição de equipamentos. Consiste em um conjunto de iniciativas que incluem desde a implantação de infraestrutura, a formação dos professores, até uma detalhada avaliação – tanto da implantação quanto do uso dos computadores nas salas de aula. Desenhada de modo a acompanhar todas as etapas – característica incomum para uma política pública e muito elogiada por especialistas –, essa avaliação serviria para recolher subsídios e indicadores para correção de rumos, possibilidade que todo projeto piloto deve incorporar. No entanto, hoje não há informações sistematizadas sobre quantos uquinhas estão em uso, quantos ainda estão nas caixas à espera de técnicos para serem ligados, ou de redes a serem instaladas, quantos quebraram, quantos foram roubados. Principalmente, não se sabe como os professores estão usando as máquinas no cotidiano da sala de aula. E a avaliação não passou da fase de diagnóstico.

A fase piloto vai até dezembro, com o encerramento do processo de formação dos professores nos municípios. A terceira fase já está em andamento, a que se chama ProUCA. Trata-se de uma nova etapa de difusão do programa, não mais por meio de doações do governo federal, mas pela aquisição dos laptops por prefeituras ou governos de estado, com impostos zero e preços de R$ 344 (regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste) e R$ 376 (regiões Nordeste e Sul), definidos em pregão concluído em dezembro pelo MEC.

Os números dessas aquisições também variam. A Positivo, empresa que venceu o pregão, prevê entregar 200 mil uquinhas este ano. O FNDE informa que municípios já compraram 300 mil unidades, com recursos próprios. E o BNDES, que tem disponíveis R$ 100 milhões, este ano, para financiar as aquisições de estados e municípios, informa que 35 municípios recorreram à linha de crédito para captar recursos que chegam a R$ 34,5 milhões (cerca de 92 mil laptops). Outros municípios manifestaram interesse ao BNDES, mas ainda não formalizaram seus processos. Se seguirem em frente, as aquisições podem chegar aos R$ 100 milhões. Mesmo entre os 35 que formalizaram seu interesse, apenas a prefeitura de Itabira (MG) havia efetivado, no início de outubro, a aquisição de 3 mil laptops. As demais esperam autorização da Secretaria do Tesouro Nacional.

“Água fria”
A regulamentação do Recompe, que permite a aquisição das máquinas do UCA com imposto zero, foi concluída apenas em julho, seis meses depois do pregão – que formalmente tem validade de um ano, até dezembro e que, por conta desta demora, vai acabar valendo, na prática, por seis meses.  Provavelmente não serão adquiridos os 600 mil computadores previstos na Ata de Registros de Preços. Mesmo que fossem, o número não chegaria nem perto de melhorar a péssima situação do Brasil em relação à presença de computadores nas escolas. O país é o último em uma lista de 38 países avaliados em relação ao número de computadores por alunos em um estudo divulgado em junho pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). De acordo com o levantamento, no Brasil, as escolas têm um computador para cada cinco alunos, taxa considerada como insuficiente. Na média dos países ricos, as escolas têm um computador para cada dois alunos. Na Austrália, o sistema de educação garante um computador por aluno. Estamos também na terceira pior colocação no ranking de inclusão digital realizado pelo estudo, à frente apenas de Tunísia e Indonésia.

Tudo indica que, apesar dos esforços e investimentos do setor público, vamos demorar muito para chegar onde está o primeiro país do ranking, a Austrália, onde há 1,03 aluno por computador. Quando as aquisições de uquinhas começaram a tomar ritmo, no meio deste ano, o MEC e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação anunciaram a intenção de adquirir 
tablets para as escolas – isso levou as secretarias de educação a adiar a compra dos laptops educacionais, na perspectiva de investir em um dispositivo “mais moderno”. “Jogaram água fria no programa”, constata Fábio Tagnin, diretor de expansão de Mercado da Intel no Brasil.

Uquinhas e tablets têm características distintas, observa Tagnin. Mesmo com configuração menos parruda que os netbooks comerciais, os uquinhas são mais apropriados do que os 
tablets para “produzir conteúdos”. Os tablets foram concebidos principalmente para o “acesso a conteúdos” digitais. Já o XO, antecessor dos uquinhas, “foi o primeiros computador pessoal, em cem anos de história da computação, desenvolvido para as escolas”, afirma a professora Léa Fagundes, do Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ela faz essa distinção porque é uma entusiasta do uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC) na educação: “As TICs são as primeiras tecnologias criadas para ampliar nossa capacidade cognitiva [de construir conhecimento], não nossas capacidades motoras”. Criadas, também, para o exercício dessa capacidade em interação, em rede. “A imersão na cultura digital vai revolucionar a escola”, diz a especialista. Porque permite a cada pessoa realizar sua própria experiência, fundamental para adquirir conhecimento, que não tem a ver somente com o acesso a conteúdos, mas com a experimentação. Além disso, diz ela, a cultura digital “ativa o significado da solidariedade e da cooperação”.

Léa Fagundes trabalha há 60 anos para mudar a educação, de um método de repasse de informações, em um meio de formar pessoas autônomas, solidárias. O LEC está ligado a uma das 27 universidades brasileiras envolvidas no processo de formação de professores para o UCA.

Ainda longe de revolucionar a educação brasileira, o programa gerou – e gera – experiências valiosas, descritas nos blogs e em relatórios das instituições contratadas para implantá-lo. Essas informações ainda não foram devidamente compiladas, divulgadas ou incorporadas pelo Ministério da Educação em seus próximos passos, no que se refere a entregar tecnologias da informação e da comunicação a professores e alunos. “Os indicadores da avaliação das universidades [contratadas para fazer esses diagnósticos, ou para formar os professores] serão divulgados em dezembro, quando terminar a primeira etapa da avaliação”, informa o FNDE. Serão divulgados pelo Simec, o sistema de gestão do MEC, disponível no site do ministério. 
Ao mesmo tempo, o MEC já realizou, em agosto, uma audiência pública para discutir a especificação dos equipamentos a serem comprados em novos editais. Que devem ser lançados, de acordo com fornecedores, junto com editais para as aquisições dos tablets e de novos computadores para o Proinfo e Proinfo Rural, até o final do ano.

As pedras do caminho
“O UCA não tem um desenvolvimento uniforme, mesmo em um único estado, como no caso do Pará, em função de diferença nas variáveis envolvidas em cada município, em cada escola”, afirma o professor Hamilton Oliveira, da Universidade do Pará, uma das instituições responsáveis pela formação. Essa contribuição milionária de todos os erros – e acertos – da realidade de cada sala de aula ainda não foi apropriada pelo governo.

Os percalços, na implantação do projeto piloto, foram grandes. A formação dos professores, prevista para ser realizada em 180 horas, distribuídas por 12 meses, continua, de acordo com as dificuldades de cada escola, e deverá ser concluída até o final deste ano. Mas, entre outubro de 2010 e agosto de 2011, o Ministério da Educação não se reuniu com representantes das nove instituições de ensino superior que integram o núcleo de formação. O pagamento das bolsas para os pesquisadores responsáveis pelo acompanhamento da formação nas escolas foi suspenso no final do ano passado e retomado entre abril e maio. Os recursos para viagens das equipes de formação foram cancelados. “O programa prevê treinamentos presenciais e à distância. Como fazer presencial sem recursos para deslocamento dos formadores? E como fazer a distância sem internet funcionando ou sem que os professores tenham cultura de uso do computador?”, pergunta um dos envolvidos.

Hamilton faz uma avaliação positiva do programa, apesar dos pesares. Ele acredita que a chegada dos uquinhas gerou uma série de problemas e dificuldades que precisaram de pronto enfrentamento e busca de solução. “Se eu tivesse esperado resposta para minhas dúvidas antes de colocar os equipamentos no ar, estaria esperando até hoje”, constata  Márcia Schuller, secretária de Tecnologia da Informação e Inclusão Digital de Novo Hamburgo (RS). A cidade recebeu, no final de 2010, 555 equipamentos de uma fase anterior do programa, batizada de pré-piloto. Por que toda essa dificuldade de comunicação? Porque o UCA, criado dentro do Gabinete da Presidência da República e depois abrigado, dentro do MEC, pela Secretaria de Educação à Distância (Seed), ficou à deriva com a extinção da secretaria, em janeiro de 2011.

Com o fim da Seed, o UCA foi assumido, em parte, pela Secretaria de Educação Básica (no que diz respeito ao uso pedagógico dos computadores) e, em parte, pelo FNDE (responsável pela aquisição das máquinas e sua implantação). Essa transição levou tempo, e ainda não foi completada: na busca de informações sobre o programa, recebe-se do FNDE a orientação de procurar dados no Portal do UCA, onde ainda consta, como responsável pelo projeto, a extinta Seed. Sérgio Gotti, diretor de Formulação de Conteúdos Educacionais da Secretaria de Educação Básica, foi nomeado apenas em maio. E a primeira reunião do MEC com as universidades participantes do UCA aconteceu em agosto.

Ainda assim, a mudança é encarada com otimismo pelas universidades. “A Secretaria de Educação Básica está determinada a criar maior sintonia entre os programas Proinfo, UCA, Portal do Professor, livros didáticos e discutindo internamente como fazer isso”, constata Roseli de Deus Lopes, integrante da equipe de coordenação nacional do UCA e professora do Laboratório de Sistemas Integráveis da Universidade de São Paulo. “Essa discussão tem de ser feita com especialistas em educação, com apoio das pessoas que saibam como a tecnologia vai mudar. Porque muda rápido”, afirma ela. Gotti, da Secretaria de Educação Básica, antecipa que o modelo de formação dos professores será repensado: “Paralelamente a outras formações, é impossível não falar em tablets nem em celular. Temos de formar o professor para o uso de tecnologias, não somente para o UCA. Vamos criar um modelo de uso de mídias, juntar tudo e fazer formação para a cultura digital”.

Nas escolas e comunidades onde foi implantado, o UCA foi, em geral, bem-recebido, principalmente pelas crianças. Os relatos são de diminuição das faltas, maior interesse pelas aulas, maior interação entre alunos e professores. Em Caetés, há a Praça da Internet, onde alunos fora de seu período de aula usam seus computadores para conversar, jogar, participar de redes sociais. As crianças entendem. As crianças querem aprender. No estado do Rio Grande do Sul, nas cidades que fazem divisa com o Uruguai, a secretaria estadual de educação começou a receber relatos de um “desejo migratório” das crianças brasileiras para escolas do outro lado da fronteira. Querem estudar no país vizinho porque o Uruguai distribuiu, a partir de 2008, computadores a todos os alunos de sua rede pública.

Cadê a banda larga?
O UCA escancarou as carências de infraestrutura das escolas brasileiras. Na Escola Estadual Rui Barbosa, no centro antigo de Belém, os 533 laptops que chegaram em 2009 ainda não estão nas mãos dos alunos. A escola não conseguiu, até agora, reformar sua rede elétrica para receber o programa – é preciso, por exemplo, ter tomadas para recarregamento das baterias de centenas de computadores. As redes elétricas da maior parte das escolas do projeto piloto foram reformadas, como contrapartida do poder público local para receber o projeto.

Uma etapa além, também ficou claro que ainda estamos longe de ter as condições adequadas de acesso a outra rede: a internet. O UCA prevê conexões de 1Mbps a 2 Mbps para as escolas. Para compartilhamento por centenas de uquinhas. Para se ter uma ideia das capacidades necessárias em projetos desse tipo, o Rio Grande do Sul vai lançar, no próximo ano, seu programa de Um Computador por Aluno, na região de Bagé – fronteira com o Uruguai. E vai começar o piloto com conexões de 10 Mbps por escola.

No Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um dos que participa do piloto, a conexão é de 150 Mbps. “Deveríamos ter pelo menos 4 Mbps por escola, somente para o UCA”, afirma Jeanderson Marostegan, analista de suporte do Projeto Tiradentes Digital e do UCA, em Minas Gerais. De acordo com ele, com a atual capacidade da rede, aplicações que envolvam conteúdos online com vídeo ou som não podem ser usadas. Além disso, o trabalho de formação dos professores, a distância, fica prejudicado. Em Tiradentes, pelo menos há alguma banda larga. Já na cidade de Faro, no Pará, a formação limitou-se ao primeiro dos cinco módulos previstos no programa. E continuava parada, em agosto, porque a conexão do Gesac, que chega à cidade, não funciona.

Não é possível fazer um programa de um computador por aluno sem um Plano Nacional de Banda Larga. “O UCA está se tornando um programa de softwares educacionais e não de cultura de rede, de cultura digital”, critica Nelson Pretto, da Unversidade Federal da Bahia, uma das instituições que participa do projeto piloto. “É um programa um para um, mas não tem conexão nas escolas, não tem como objetivo principal a formação de rede”, lamenta ele. A interação em rede, como observa a professora Léa, é condição básica para o aprendizado na cultura digital.

Computador é a ponta do iceberg
A interação entre entes federados, por sua vez, é fundamental para que qualquer programa em educação seja bem-sucedido. Para continuar, avalia o professor Paulo Gyleno, da Universidade Federal de Pernambuco, o UCA precisa: retomar a coordenação a nível federal; realizar um trabalho permanente de articulação política com as secretarias e com as universidades locais, que conhecem bem as escolas; avaliar a situação do hardware e do software já distribuídos; rever e continuar a formação dos professores; criar bons mecanismos de gestão de tecnologia nas três esferas. É preciso, além disso, dar tempo aos professores para que percebam a diferença de aplicação dos diversos dispositivos e possam escolher o mais adequado.

De acordo com a pesquisa Programas de 
laptops Um a Um na América Latina e no Caribe – Panoramas e Perspectivas, publicada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento este ano, o custo de hardware, software, infraestrutura elétrica/lógica e implantação representa apenas 26% do custo de um projeto de um computador por aluno. Menos que indicar que os governos podem gastar muito mais do que os custos evidentes de dispositivos, a constatação de que esse investimento é apenas o começo dá uma ideia da complexidade desses programas. É fundamental, diz o levantamento, prever os custos recorrentes e necessários de suporte, formação, conexão a banda larga, energia elétrica (61%) e os custos ocultos (13%) de reposição de hardware — por obsolescência, dano ou roubo –; de planejamento; de dar um destino ambientalmente responsável às máquinas depois de seu período de uso.

Para que o país consolide uma política pública de uso educacional das TICs e não uma política de distribuição de equipamentos tecnológicos, ainda há muito a fazer. Por isso, a sensação de fragilidade do UCA, com as mudanças realizadas, é tão preocupante. Educadores concordam, na avaliação das medidas necessárias: as formações precisam continuar, incorporando as descobertas e dificuldades encontradas nas salas de aula; os professores precisam de tempo para se apropriar da tecnologia que lhes é oferecida e de mecanismos de formação de redes para compartilhar experiências; as escolas precisam de tempo para adaptar sua infraestrutura e incorporar os dispositivos digitais em seus planos pedagógicos. Os professores precisam de tempo, fora das aulas, para estudar. Do contrário, seja com uquinhas, tablets ou projetores multimídia, estaremos sempre recomeçando do zero. E mudando muito pouco a realidade da educação.

www.uca.gov.br

{jcomments on}