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Em tempos reais

Manifestações, protestos, revoltas, jornadas de junho. O país viu a cara da rede e sentiu a força da tecnologia no ativismo político.

Texto Rafael Bravo Bucco | Ilustrações José Américo Gobbo

 

ARede nº 93- setembro/outubro de 2013

Nas telas A convocação para o primeiro protesto contra o aumento das passagens, dia 12 de maio, em São Paulo, aconteceu pela internet. No Facebook, a mensagem “Se a tarifa não baixar, São Paulo vai parar!” teve mais de 2,8 mil compartilhamentos, 479 curtidas e 61 comentários. O Movimento Passe Livre postou respostas às dúvidas, e nos dias seguintes publicou notícias de outras manifestações. Também botou na rede o contrato de renovação da prefeitura com a empresa de transportes que mais recebeu multas e apresentou problemas de prestação de serviços nos anos anteriores.

Nas ruas Na tarde do dia 6 de junho, 5 mil pessoas se juntaram em frente ao Teatro Municipal. A mensagem transmitida pelas redes sociais se materializou em uma grande faixa pendurada no Viaduto do Chá, no centro da cidade.

Nas telas Durante o protesto do dia 6, o perfil do movimento foi atualizado uma só vez, com a informação de que a avenida 23 de Maio havia sido tomada pela população. No dia seguinte, porém, um álbum de fotos mostrou a repressão praticada pela Polícia Militar e convocou novas jornadas de luta.

Nas ruas Cerca de 5 mil pessoas tomaram, de novo, as praças e avenidas.

A timeline das manifestações de junho está repleta de exemplos de como era equivocada a ideia de que existiam dois mundos, virtual e real, dentro e fora da internet. Na alternância entre os ambientes digitais e os espaços públicos, hashtags sobre o que acontecia nas ruas se multiplicavam. A cada minuto, centenas de cidadãos diziam o que estavam pensando, outros tantos subiam imagens dos embates em tempo real, circulavam até informações sobre como colaborar com a “vaquinha” organizada para pagar fiança de manifestantes presos. As redes sociais se tornaram o principal fórum de comunicação e debates. O MPL passou a se valer do Facebook para responder às declarações do prefeito Fernando Haddad e do governador Geraldo Alckmin.

Fenômeno viral, as manifestações de junho se alastraram por todo o país. E obtiveram resultados concretos. Prefeituras reduziram as tarifas de transportes. A presidente Dilma Rousseff recebeu movimentos sociais e convocou governantes para firmar um pacto pela melhora dos serviços públicos. Deputados e senadores aceleraram votações.

Mas o que aconteceu nas ruas em junho podia ser visto online, bem antes disso. O professor Fábio Malini coordena o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo. Ali, cartografa as redes sociais digitais desde 2007. Ao longo desse tempo, percebeu que as redes se transformaram em um novo território da prática política. Desde 2012, observou ele, já era possível imaginar uma erupção de insatisfações, embora não desse para predizer de que forma as manifestações aconteceriam. “Tivemos uma genealogia dos protestos. Pequenas indignações foram se acumulando, como o julgamento do mensalão, a posse de [Marco] Feliciano na Comissão de Direitos Humanos, a situação dos índios Guarani Kaiowá”, diz.

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Até que a internet dominou as ruas, como avalia Sergio Amadeu, sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC: “Não foi carro de som, não foi panfleto. Foram memes no Facebook, conversas no Twitter que juntaram tanta gente. A cultura digital mudou a cara das manifestações, mudou a cara da rua”. Em especial, deu visibilidade a quem não tinha voz. “Fotos e vídeos de pessoas com apenas 200 seguidores tiveram mais de 100 mil visualizações”, observa.

No kit básico de quem ia protestar estava um celular capaz de filmar, fotografar e publicar tudo na internet. Alguns coletivos organizados, como o NINJA (que significa Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), levavam na mochila um notebook ao qual o celular ficava conectado – estratégia para a bateria durar mais e, assim, ficar muito tempo transmitindo ao vivo.

O NINJA foi um dos grupos que inovou no uso da tecnologia e, por isso, chamou tanta atenção da sociedade. Pela cobertura em tempo real, unindo o testemunhal e o protagonismo, de repente o coletivo viu o número de seguidores no Facebook saltar de 2 mil para 170 mil. “Desde 2012, passamos a cobrir coisas pouco cobertas pela mídia tradicional. Nas manifestações, tínhamos um acúmulo prático enorme e 200 pontos preparados para cobrir o que rolava”, explica Rafael Vilela, integrante do coletivo. Todo o conteúdo é divulgado gratuitamente na internet, sob licença livre, inclusive para fins comerciais.

A busca pelo jornalismo de “alta fidelidade e baixa resolução”, nas palavras de Vilela, fez com que mais pessoas também transmitissem os eventos. No Rio de Janeiro, surgiu o #RioNaRua; em Minas Gerais, o #BHNasRuas. Os aplicativos mais usados para a transmissão ao vivo foram Twitcasting, Ustream, Livestream, Bambuser – todos compatíveis com celulares Android e iOS.

Amadeu, da UFABC, acredita que as filmagens atraíram mais gente para a rua. “Aquela cobertura em tempo real feita para além da imprensa, para além dos blogs, pelo protagonista do ato na rua, gerou uma comoção nacional”, diz. Com os protestos, ficou evidente a descrença da população quanto à representatividade política.

Malini concorda. Para ele, a análise das redes sociais digitais, especialmente do Twitter, revela uma forte crítica à representação. “Não é demonização, é crítica para construir uma nova relação política. É um recado muito bem dado para o Estado abrir espaço a maior participação popular”, frisa. Em resposta, o governo federal lançou iniciativas convidando usuários a opinar sobre políticas públicas (ver página 16).

Funções de ativismo
Rodrigo Carreiro, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Democracia Digital (CEADD) da Universidade Federal da Bahia, classificou sete funções da internet nesse momento histórico. A primeira foi a de articulação, tendo o Facebook como grande irradiador. “Para começar, o Face é onde todos estão, desde cidadãos até organizações civis. Depois, a ferramenta permite criar eventos e convocar milhões de pessoas em poucos segundos”, explica.  

Outra função da internet foi o que Carreiro chamou de “alerta e informação”. “Qualquer fonte digital pode divulgar informação, seja uma fonte da mídia tradicional, seja de blog ou de um perfil desconhecido”, diz. Como exemplo, cita o amplo compartilhamento do post de Marcelo Rubens Paiva, colunista do Estadão, com instruções sobre como construir uma máscara de proteção a gás lacrimogênio. E o também supercompartilhado texto sobre o que fazer em caso de exposição ao gás publicado, no blog Terror, por autor desconhecido.

A rede também teve a função de monitoramento. Para além dos imediatos 140 caracteres que se seguiam freneticamente no Twitter, a cada palavra de ordem e a cada detenção, ativistas criaram mapas colaborativos, apontando as localizações das aglomerações e os focos de enfrentamento. Em serviços como o Tumblr – onde é possível publicar fotos, vídeos e textos –, as pessoas abriram páginas para compilar abusos policiais. “As comunidades do Facebook também tiveram esse papel”, acrescenta Carreiro.

Característica forte nas redes, o bom humor comprovou o seu potencial de sedução também na esfera política. A lógica é simples: um internauta menos politizado pode não passar adiante um artigo analítico, mas retuíta ou compartilha uma boa piada. “É preciso levar em consideração os possíveis efeitos de conteúdo lúdico na política. Charges, montagens de fotos, piadas publicados em tumblrs atuam pelo viés do entretenimento e são facilmente compartilhados”, diz.

O hacktivismo, de acordo com o trabalho de Carreiro, foi mais uma função importante nas manifestações. Coletivos derrubaram sites de governo (ver página 10), invadiram perfis da imprensa conservadora e criaram ferramentas para garantir o sinal de internet (ver ao lado). E, na opinião do pesquisador, até quem resistiu aos chamados da rua, praticando o “ativismo de sofá”, teve seu mérito: “Mesmo sem estar presente a pessoa contribui para que aquelas informações ganhem mais visibilidade. As hashtags também são demonstrações de apoio”.

Por fim, o pesquisador destaca o uso da rede para produção da informação, a partir de uma cobertura alternativa dos fatos, feita tanto em vídeo, pelos Ninjas, como a conta-gotas, pelo Twitter. “Por meio das hashtags é possível acompanhar o que está acontecendo ao vivo”, explica. Termos como #vemprarua, #ogiganteacordou, #tarifazero, #passelivre, #occupySP, entre outros, uniram os relatos de quem estava na linha de frente dos prédios públicos ou atrás das fileiras de policiais.

No dia 14 de junho, um dia após a histórica repressão policial na avenida Paulista, Malini publicou no blog do Labic uma análise do burburinho crescente no Twitter. Percebendo a diversidade de hashtags, identificou que novas demandas tomariam as ruas e que o antipartidarismo poderia dar as caras. Para fazer os levantamentos, usou scripts medindo o volume de tuítes por dia, por hora, a quantidade de perfis envolvidos e palavras mais comuns.

Hoje, ainda analisa o que aconteceu na semana de 17 de junho. E enxerga como as ruas espelharam as redes sociais. “Primeiro, o protesto foi múltiplo, com uma pauta difusa. Um segundo elemento foi a forte agitação. Havia muitos tuítes apenas com o #vemprarua, o que é um exemplo de post emocional”, diz. Ao identificar o crescimento de publicações desse tipo, o pesquisador aponta para um ciclo vicioso. “Quanto mais emocional a carga que a rua consegue gerar para a rede, mais a rede fica agitada, e mais gente vai para a rua”, observa.

A comoção (foram 337 mil tuítes com a palavra protesto, em português) da segunda-feira, 17, fez o mundo ficar pequeno. Malini explica: “Você começa a ver um amigo do Pará e outro do Rio Grande do Sul compartilhando as mesmas coisas. Isso cria um efeito de ‘por que não vou me posicionar sobre isso?’”. Na quinta-feira, “foi uma bomba de pessoas na rede”.

 

De lá pra cá, o número de pessoas reunidas em manifestações caiu. A quantidade de protestos, porém, parece não arrefecer. E a internet continua sendo o local onde as demandas e articulações tomam forma. “Os governos, as empresas, as instituições vão ficar atentas ao fato de que a rede é um lugar de produção de política”, opina Malini. Para ele, a vontade de participar das conversações online vai ser cada vez mais relevante para a produção da agenda pública. “A capacidade de pautar, de controlar fontes, não é mais atributo de uma estrutura de mídia. É de uma estrutura nova, nas redes sociais, nos sites independentes”, defende.

Uma estrutura que reflete os elementos que a compõem. A maioria dos manifestantes de junho não chegava aos 25 anos. “Os adolescentes são hábeis usuários da rede. Eles estão em formação política e carregam uma crítica generalizada a políticos. Isso predomina na rede e une todas as tendências ideológicas”, observa Malini.

Entre tantas análises sobre junho, ninguém duvida de que a internet potencializou a mobilização e alterou o equilíbrio de forças políticas. Assim como foi inequívoco o recado a governantes e representantes do povo: os cidadãos estão munidos de novos dispositivos tecnológicos, que permitem o efetivo exercício da democracia. E eles podem, sim, decidir quem segue quem, no mundo virtual e na vida real.

http://bit.ly/159NSzM  |  www.ceadd.com.br
http://saopaulo.mpl.org.br  |  http://bit.ly/174cZo8
www.facebook.com/midiaNINJA  |  www.labic.net

Eles são uma legião.
De todas as ideologias

Guy Fawkes marcou presença nas manifestações de junho. A máscara do soldado inglês – usada pelo personagem principal da história em quadrinhos V de Vingança, criada por Alan Moore na década de 1980 – tornou-se símbolo do ideal de libertação de uma Inglaterra controlada por um governo ditatorial. Na internet, a máscara se transformou na face dos hacktivistas Anonymous.  O grupo ficou conhecido internacionalmente em 2010, quando invadiu sites de empresas financeiras que se recusavam a prestar serviços ao Wikileaks (página que publica documentos secretos). Por se tratar mais de um conceito do que de uma organização, o Anonymous é composto por inúmeros coletivos ao redor do mundo. Embora descentralizados, eles têm um bordão em comum: “Somos uma legião. Não perdoamos. Não esquecemos. Espere por nós”. Os métodos de ação variam: deface (modificação de um site), invasão de contas, derrubada de sites, divulgação de vídeos e imagens nas redes sociais.

No Brasil eles apareceram nas redes defendendo bandeiras variadas. Em junho, invadiram e derrubaram páginas de partidos e órgãos públicos. Pediam a redução do preço das passagens de ônibus, a renúncia de Renan Calheiros, a derrubada das PECs 33 e 37, entre outras coisas.

Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC e integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber), aponta que os protestos de junho mostraram a força do hacktivismo: “Coletivos hacker começaram a ganhar protagonismo. Grupos Anonymous passaram a trabalhar muito a convocação das manifestações de rua”.

No entanto, ressalta, houve choques de ideais em alguns momentos. “Politicamente, existem Anonymous de direita e grupos mais à esquerda. Olhando as mensagens, a gente vê que tem muita confusão sobre política. Essa confusão não é ruim, desde que gere um debate”, alerta Amadeu.

Com a rede na cabeça

Para garantir que as pessoas ficassem conectadas durante as mobilizações, a galera do Tarrafa Hacker Clube, de Florianópolis, criou a Revolta da Antena. A ideia era usar os próprios manifestantes para distribuir sinal de internet. “Pensamos nisso para as pessoas fazerem vários registros pessoais e as mídias independentes usarem o nosso WiFi”, conta João Ricardo Lázaro, um dos idealizadores.

Os hackers acoplaram um roteador a um capacete. Ligaram a uma bateria com energia para fazer o conjunto funcionar por 22h. “Instalamos um software livre [OpenWRT] no roteador, que passou a funcionar como um dispositivo mesh”, explica Ramiro Polla, um dos encarregados da parte técnica.

Em uma arquitetura mesh, os dados são transmitidos de roteador em roteador até encontrarem uma saída para a internet. A proposta da Revolta da Antena era espalhar cinco capacetes pela multidão, oferecendo cobertura para o maior número possível de gente. Quem estivesse em casa, deveria abrir o sinal WiFi, oferecendo, assim, a porta de saída para a rede mundial.

Na teoria, tudo ia muito bem. Mas foi no compartilhamento doméstico que a revolta se deu mal. “Faltou uma base de dados com pontos de rede abertos”, avalia João Ricardo Lázaro.

http://tarrafa.net