Em vários pontos do país,
iniciativas de comunicação comunitária investem na capacitação cidadã
de jovens, buscam soluções de sustentabilidade e, cada vez mais, se
articulam em redes
Leandro Quintanilha
O slogan da TV Globo, “A gente se vê por aqui”, brinca com um duplo
sentido: a emissora seria um ponto de encontro entre o público e os
realizadores, ao mesmo tempo em que funcionaria como um espaço em que o
telespectador se vê representado. Mas não é assim. Para o geógrafo e
educador Jailson de Souza e Silva, consultor da Unicef e coordenador
geral do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, a grande mídia
reproduz uma imagem fragmentada e preconceituosa das populações de
baixa renda. “É o paradigma da ausência, em que as pessoas são
retratadas pelo que lhes falta – escola, segurança, alimento…”
Desprovidas do que são, viram personagens do que não têm. Contra essa
corrente estão os jornais, revistas, programas de tevê e de rádio
comunitários: uma das principais finalidades desses veículos é
contribuir para a construção de uma “identidade positiva” de seu
público.
Atividades de comunicação da Rede Mocoronga
Além de oferecer um novo olhar ao público, a realização dessas
reportagens, vídeos, programas de rádio dá aos participantes do
processo uma nova visão sobre a própria mídia: mais crítica, mais
exigente e, na medida que as comunidades criam seus próprios meios de
expressão, desmistificadora: todo mundo pode produzir e veicular
informação. “Criar essa rede popular de produção e distribuição de
mídias é uma forma de atingir uma melhor distribuição de
representações, visibilidade e poder”, explicam os inventores das
MimoSas, Máquinas de Intervenção Urbana e Correção Informacional,
compostas de gravadores de som, câmeras de vídeo, celulares,
transmissores de rádio, computadores, e onde qualquer um pode fazer sua
produção, que depois vai para a internet. As MimoSas são construídas em
oficinas de MetaReciclagem, dentro de carrinhos de feira, latões de
lixo e o que houver disponível.
O In’formar fez cursos de
capacitação em tecnologia
Não há, no Brasil, Ibope ou similar que mensure a comunicação
comunitária nacional. Por isso, é impossível determinar o tamanho e o
alcance dessas manifestações de expressão local. Mesmo porque muitas
funcionam informalmente – e, no caso das rádios comunitárias, sob o
risco de serem fechadas, porque a grande maioria transmite sem outorga
ou descumpre, em algum ponto, a legislação criada para regular sua
atuação (saiba mais). Percebe-se, no entanto, que essa
articulação vem crescendo, inclusive com o funcionamento de escolas de
comunicação popular em vários estados. Uma amostra da diversidade,
quantidade e qualidade da produção comunitária foi dada em novembro do
ano passado, quando seis entidades ligadas à defesa dos direitos
humanos entraram como uma ação civil contra o conteúdo do programa do
apresentador João Kléber, na RedeTV!, e conseguiram exibir, no horário
que ele ocupava, 30 programas com uma hora de duração, sob o título
“Direito de Resposta”, ao longo de seis semanas. Nessa programação
foram incluídas produções comunitárias. “Recebemos material de OnGs e
associações do país inteiro, do Sul ao sertão de Pernambuco”, diz
Márcio Kameoka, integrante do coletivo Intervozes. Foram mais de 300
produções enviadas, depois de uma divulgação feita apenas com troca de
e-mails e, claro, no boca-a-boca.
ARede entrou em contato com dez dessas iniciativas, a fim de
compreender melhor essa tendência e esboçar um retrato diferente do que
a grande mídia costuma fazer delas. Um retrato, por vezes,
condescendente, em que os produtores quase nunca aparecem como sujeito,
mas como objeto de projetos sociais. “É como se essas iniciativas
fossem um meio de resgatar jovens pobres do caminho ‘natural’ da
criminalidade – quem disse que estão seguindo esse caminho?”, questiona
Jailson. Dessa forma, escola, lazer e comunicação aparecem, pela ótica
da grande mídia, não como meios para o exercício da cidadania, mas como
alternativas de salvação. “É um pressuposto preconceituoso”, diz.
“Imagine se houvesse um programa social para advogados, com o objetivo
de prevenir crimes de colarinho branco”, provoca. “A comunicação é um
direito humano”, afirma o jornalista Paulo Lima, diretor da revista
“Viração”, produzida em rede por adolescentes e jovens de 15 capitais
brasileiras. Para ele, toda comunidade precisa de meios para falar de
si mesma. “É preciso substituir o conceito de público-alvo pelo de
público-participante e criar, inclusive, veículos nos quais o processo
de produção incorpore a comunidade, em vez de ser privilégio de uma
redação”.
Na pauta da Rede Cipó, os
temas da infância e da juventude
A pauta, seleção de assuntos a serem abordados em cada edição de um
produto jornalístico, e o enfoque, a maneira como esse assunto é
tratado, são o grande diferencial da mídia comunitária. Com 180 mil
acessos únicos por mês, o “Viva Favela” é um dos portais mais antigos
dedicados a produzir notícias a partir das comunidades. Foi lançado
pela OnG Viva Rio em 2001, já na internet, e a originalidade de suas
reportagens passou a pautar a grande imprensa. Durante dois anos,
matérias produzidas pelo portal ocuparam toda a página dois do jornal
“O Dia”, aos sábados. “No começo”, diz Tião Santos, coordenador do
portal, “fazíamos mais matérias de cultura, comportamento”. Quando o
jornalista Tim Lopes, do Rio, foi morto (durante a apuração de uma
reportagem no Complexo do Alemão), a equipe percebeu que precisava
começar a tratar também de assuntos complicados. “Quebramos um limite
invisível e começamos a fazer também matérias sobre violência”, diz
ele. O portal fez coberturas especiais de episódios como a chacina
ocorrida em maio de 2005 em Nova Iguaçu e Queimados, ou a atuação do
Caveirão, veículo policial blindado, nas favelas do Rio.
Na revista “Becos e Vielas”, criada pela OnG Papel Jornal há seis anos
no Jardim Ângela, bairro do extremo sul da cidade de São Paulo, figuram
assuntos como o estilo de vida dos motoboys e a possível relação entre
a identidade do indivíduo e o cabelo que ele usa. “Temos total
liberdade editorial”, afirma a repórter comunitária Fernanda Santana.
Temas da vida cotidiana, como os ônibus superlotados do bairro, e
dramas sociais, como a precariedade das unidades da Febem (Fernanda e
uma colega de redação trabalharam como agentes educacionais na unidade
do Tatuapé), também são contemplados.
De público-alvo a público
participante, na Rede
Mocoronga
Também é assim em “O Resoluto”, jornal comunitário mensal feito por
adolescentes, que circula há dois anos na região do distrito de Grajaú,
às margens da represa Billings, em São Paulo. A preocupação ecológica
inerente ao local compartilha espaço com assuntos do universo juvenil
como a arte do grafite. Para Mariana Alves Rosa, de 18 anos, repórter
comunitária da revista “Viração”, uma grande vantagem da mídia
comunitária é a ausência de interesses comerciais na informação. “As
revistas (convencionais) são voltadas para estimular o consumo, porque
são mantidas por anúncios de grandes empresas”, diz. “A referência das
pessoas são os jovens Capricho, alienados. Mas a maioria de nós não tem
R$ 65,00 para comprar batons da MAC.”
ARede apurou que a preocupação com a juventude é o eixo quase todas as
iniciativas de comunicação comunitária procuradas. A Agência Mandacaru,
que mantém duas mídias, um boletim eletrônico e o jornal impresso
“Giramundo”, foi criada e é gerida por jovens baianos entre 18 e 25
anos. O objetivo do trabalho é a democratização dos meios de
comunicação das regiões do Sisal e Vale do Jacuípe.
O projeto Olho Vivo, da OnG Bem TV, prepara adolescentes das
comunidades da Grota, Morro do Preventório e Jurujuba, em Niterói (RJ),
para atuar em comunicação comunitária. “Os principais critérios de
seleção são o interesse e a disponibilidade de tempo”, afirma a
coordenadora de projetos Olívia Bandeira de Melo. As atividades
começaram com uma oficina de fotografia que levou 60 adolescentes do
Morro do Preventório a registrarem, com imagens, a memória e os hábitos
da comunidade. Em 2004, os jovens e adolescentes participantes já
editavam publicações, promoviam campanhas e realizavam exposições, com
financiamento da Petrobras. Além de fotografia, há oficinas de vídeo,
webdesign e comunicação impressa, num total de cinco meses de
capacitação, com três aulas por semana. O principal produto feito pelos
jovens participantes é o “Jornal da Grota”, uma publicação bimestral
com tiragem de 5 mil exemplares.
Em “O Resoluto”, de São Paulo, quase toda a equipe é composta por
adolescentes, exceto o diagramador e o diretor-fundador Frederico
Rizzo. Os jovens, em “capacitação pela prática”, recebem uma bolsa que
varia de R$ 100,00 a R$ 200,00, de acordo com o nível de
responsabilidade. Itens como boas notas na escola e comprometimento com
as metas de produtividade da redação rendem bônus de R$ 50,00. Na Rede
Jovem de Cidadania, criada pela Associação Imagem Comunitária, há
quatro anos, para a produção de mídia comunitária em Belo Horizonte, o
aprendizado também não é separado da produção: as questões técnicas são
desenvolvidas durante o trabalho em matérias ou filmes. O resultado é
exibido aos sábados, pela Rede Minas de TV, em programas de até 30
minutos, com uma reprise durante a semana – a AIC é um dos poucos pólos
de produção comunitária com horário permanente em uma rede
pública.
Formação prévia
Fernanda, repórter do
"Becos e Vielas"
Outras entidades oferecem uma formação sistematizada antes da prática.
É o caso do trabalho feito pela Papel Jornal com a revista “Becos e
Vielas”, de São Paulo. Todo ano, profissionais voluntários ministram
uma capacitação em jornalismo impresso para turmas de 30 jovens, entre
15 e 18 anos. No final, quem se interessar é aproveitado pela redação
da revista. São aulas diárias, com quatro horas de duração, de língua
portuguesa, diagramação, edição de fotos, fotografia e cinema, entre
outras. Um espaço próprio com 15 computadores funciona como sala de
aula e redação.
O projeto In’formar, da entidade pernambucana Porto Digital, realizou,
ao longo de um ano, cursos de capacitação em tecnologia da informação e
comunicação para formação de jovens em situação de vulnerabilidade das
comunidades de baixa renda de Pilar (Recife) e Peixinhos (Olinda).
Foram 1,1 mil horas-aulas de comunicação básica, redação, fotografia,
informática, manutenção de micros, webdesign e inglês, para 160 jovens,
entre 14 e 24 anos. Agora, os jovens ingressam na segunda fase do
projeto: prestar serviços e manter agências de notícias sobre assuntos
de interesse comunitário, com ênfase em noções de organização,
socialização, liderança e desenvolvimento da cidadania, além da
cobertura de eventos.
A formação de jovens e adolescentes e a produção de pautas de interesse
social também são o foco da Cipó – Comunicação Comunitária, de
Salvador, que, há sete anos mantém a Central Cipó de Notícias, fruto de
uma parceria com a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi),
com o objetivo de mobilizar a grande mídia pela defesa dos direitos de
crianças e adolescentes. “Emplacamos pautas como trabalho infantil e
exploração sexual de adolescentes”, ilustra a coordenadora Luciana
Rios. As ações incluem, também, a análise das matérias publicadas nos
jornais de Salvador, e a denúncia de violações do Estatuto da Criança e
do Adolescente, entre outros. Outro trabalho realizado pela Cipó é o
plano de comunicação do Movimento de Intercâmbio Artístico e Cultural
pela Cidadania, que integra cerca de 80 organizações baianas. Turmas de
40 adolescentes são capacitadas todo ano a ler jornais criticamente e
produzir meios alternativos de comunicação. Os jovens desenvolvem
cartazes, panfletos, revistas, sites e vídeos para o projeto, que conta
com o apoio do Instituto Ayrton Senna e da Unicef.
A Rede Viva Rio, que congrega 417 rádios comunitárias fluminenses,
promove capacitações de radiojornalismo, produção e locução, com
duração de três meses. Nos cursos, defende-se que toda rádio tenha um
núcleo de radiojornalismo, para não se limitar a reproduzir o conteúdo
da grande mídia.
Trabalho colaborativo e articulação de redes potencializam o alcance
das inciativas de comunicação comunitária. A AIC de Minas Gerais, por
exemplo, especializou-se em firmar parcerias para produzir conteúdo. É
como se ela fosse a “tevê pública” das organizações que trabalham com
juventude na cidade. “Estamos cada vez mais perto da idéia de acesso
livre”, diz Alexia Melo, da equipe técnica da Rede Jovem Cidadania.
Acesso livre é a possibilidade de qualquer organização produzir
conteúdo para a rede, de forma que a produção não fique apenas na mão
de uma equipe. Na AIC, isso é feito por meio da participação de quem se
interessar – entidades, indivíduos – no Conselho Editorial, que se
reúne mensalmente para decidir a programação. E também na
prestação de serviços para as OnGs com o equipamento da produtora,
gravando eventos, produzindo vídeos e CDs, etc. Neste ano, será
publicada a segunda edição do “Guia de Cultura e Cidadania de BH”, que
mapeia entidades com trabalhos para juventude na cidade. Esse mapa foi,
em grande parte, fruto da produção da agência e da busca de parcerias.
Paulo Lima, da revista "Viração"
A Cipó, de Salvador, também ministra oficinas de capacitação em
comunicação para lideranças juvenis, ligadas à Rede Sou de Atitude, que
congrega grupos de adolescentes e jovens de 20 estados brasileiros,
mais o Distrito Federal. Esses jovens têm a missão de observar e
relatar a realidade da infância e juventude nas suas regiões por meio
de reportagens publicadas na internet. Assumem, ainda, a
responsabilidade de mobilizar outros adolescentes e jovens para a
adesão à rede de monitoramento.
A Rede Mocoronga de Comunicação Popular funciona a partir de uma
central — o escritório da OnG Saúde & Alegria, em Santarém (PA) — e
32 sucursais rurais, compostas pelos grupos de jovens repórteres de
cada localidade. Além de organizar o fluxo dos programas de comunicação
popular entre as comunidades, a central desenvolve atividades de
comunicação institucional, assessoria de imprensa, documentação, edição
de vídeos, cartilhas. Esse material é arquivado em um banco de memória
(biblioteca, radioteca e videoteca). A Mocoronga mantém seis
telecentros rurais no Pará, que cobram por pequenos serviços para
ajudar a manter a rede.
Portal da Rede Viva Rio
A questão da sustentabilidade é uma preocupação entre as iniciativas de
comunicação popular que não contam com apoiadores de peso. Os jovens da
revista “Becos e Vielas”, de São Paulo, montaram um grupo de estudos
para pensar em alternativas – a periodicidade e a tiragem da revista
são incertas pela falta de recursos. O jornal comunitário “O Resoluto”,
também de São Paulo, reserva duas de suas oito páginas para a
publicação de anúncios do comércio local. A Cipó mantém uma frente de
comercial com produtos de mídia, que garante a sustentabilidade de seus
empreendimentos sociais.
Tião Santos, da Rede Viva Rio, que reúne 417 emissora comunitárias,
defende que a legislação que regula as rádios comunitárias seja
alterada para que esses veículos possam veicular anúncios do comércio
local. Para ele, a mudança seria duplamente vantajosa: além de gerar
recursos para a manutenção do veículo, beneficiaria a comunidade, ao
estimular a concorrência entre os comerciantes.
Redação paulista da "Viração".
A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) realizou, em junho, uma
campanha pela sanção presidencial de um projeto de lei complementar
(PLC 79/04), que ampliaria de 11 para 23 as funções legalmente
exercidas por jornalistas profissionais diplomados. Segundo o
presidente da Fenaj, Sérgio Murillo de Andrade, o intuito era apenas o
de formalizar, em lei, atribuições que, na sua opinião, já eram
exclusivas dos jornalistas. “Seria mantido o mesmo nível de restrição
que existe hoje”, diz. Constavam na PLC 79/04 funções como coordenador
de arquivos jornalísticos, assessor de imprensa e comentarista. A PLC
79/04, aprovada pelo Senado, foi vetada pelo presidente Luiz Inácio
Lula da Silva.
Para o geógrafo e educador Jailson Souza e Silva, coordenador geral do
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, esta seria uma medida
“profundamente corporativista”, que fortaleceria o que chama de “lógica
editorial” (expressão de opinião que reflete o posicionamento da
emissora ou de seus dirigentes sobre determinado assunto). “A mídia
comunitária é composta, em geral, por profissionais que não têm acesso
à universidade. Se a PLC fosse aprovada, muitos trabalhadores da
comunicação comunitária seriam prejudicados.”
Sérgio Murillo argumenta que “a legislação já determina a
profissionalização do jornalista em qualquer veículo e meio desde
1969.” Por isso, a rigor, comunicadores comunitários sem diploma já
estariam trabalhando ilegalmente. Mas o presidente da Fenaj afirma que
há “bom senso” na fiscalização. “Não se pode, é claro, manter um mesmo
nível de exigência com uma empresa como a Globo e uma rádio de bairro”,
diz, acrescentando que nunca soube de um veículo comunitário que tenha
sido autuado pela falta de jornalistas profissionais. Em todo caso, o
presidente da Fenaj afirma que jornalistas formados são necessários
inclusive em veículos comunitários. “Não é reserva de mercado –
trata-se de uma questão de respeito ao público”, diz. “Muitas
associações angariam recursos para contratar médicos e advogados. Por
que não investir na qualidade da informação com jornalistas
profissionais?”
www.observatoriodefavelas.org.br — Observatório de Favelas
www.revistaviracao.com.br — Revista Viração
www.becosevielaszs.blogspot.com — Becos e Vielas
jornalcomunitario@uol.com.br — O Resoluto
www.mandacaru.org.br — Agência Mandacaru
www.bemtv.org.br — Bem TV
www.aic.org.br — Associação Imagem Comunitária
www.informar.org.br — In’formar
www.cipo.org.br – Rede Cipó. O site está em mudanças, veja link em www.soudeatitude.org.br
www.redevivafavela.com.br — Rede Viva Rio
www.saudeealegria.org.br — Projeto Saúde e Alegria
http://turbulence.org/Works/mimoSa — Mimosa