Atualmente,
existem no país cerca de 3 mil pontos públicos de acesso à internet ou
de aprendizado de informática. Cada um deles tem dois ou três
responsáveis – os monitores. Isso significa que entre 6 mil e 9 mil
pessoas se dedicam a orientar cidadãos no uso das tecnologias da
informação e da comunicação. São encarregadas da gestão dos centros, da
recepção e orientação dos usuários e, mais importante, integrar esses
equipamentos às iniciativas comunitárias. Nesta reportagem, a história
de algumas dessas pessoas. Patrícia Cornils *
Selma dos Santos Pereira caminha quase
duas horas por dia, em uma estrada que acompanha um matagal, para
chegar ao ponto do ônibus que a leva ao trabalho. Caminha para
economizar o valor de uma condução. Moradora de Embu Guaçu, na Grande
São Paulo, ela é, há cinco anos, monitora de um telecentro na zona sul
da cidade. Recebe R$ 450,00 por mês pelo trabalho de orientar os
usuários e dar aulas de informática. Seus quatro filhos, de 10 a 18
anos, não têm computador. São crianças como eles que lotam o telecentro
do Jardim Copacabana desde sua inauguração, no ano 2000. Com 34 anos,
Selma gosta de se identificar como Amles Jamaika, nomes que usava na
capoeira e quando fazia dança afro. “Jogando e dançando, aprendi que um
momento de aula pode se tornar um momento de arte, de passar coisas
para seu irmão”, explica. É desses pequenos orgulhos que ela alimenta
sua atividade diária. “Quando comecei, eu não sabia nada de
informática. Hoje sei o suficiente para ensinar uma classe inteira”.
Rodrigo Felha é coordenador do Núcleo de Audiovisual da Central Única
das Favelas (Cufa), na Cidade de Deus, bairro do Rio de Janeiro. Também
há cinco anos começou a trabalhar com vídeo, na gravação do
documentário Falcão, com o músico MV Bill. Militante da Cufa, Rodrigo,
26 anos, se engajou como monitor da Casa Brasil a ser inaugurada na
Cidade de Deus. Sua principal preocupação é atender à demanda que a
inauguração do telecentro, em breve, vai gerar. A Casa Brasil vai
abrigar o único ponto público de acesso à internet em um local com 160
mil moradores. “Não quero perder ninguém; tenho que encontrar uma forma
de manter as pessoas aqui, mesmo quando não houver vaga no telecentro”,
diz ele. A Cufa também oferece, no espaço onde vai funcionar a Casa
Brasil, cursos de basquete, grafite, break e vai abrir aulas de
capoeira. Com a renda fixa de R$ 450,00, seu salário como monitor, vai
poder continuar se dedicando ao audiovisual. Rodrigo promove oficinas
na Cufa, produz filmes e estuda direção de cinema, na escola Darcy
Ribeiro.
Sandro Nunes da Silva, 32 anos, dá oficinas todos os sábados, como
voluntário, na Escola de Informática e Cidadania (EIC) do Comitê para a
Democratização da Informática (CDI) no bairro de Rio Doce, em Olinda,
Pernambuco. Ensina noções básicas de informática e de como se inserir
no mercado de trabalho a jovens de 14 a 18 anos. Formado em História,
estranha o vocabulário dos jovens da comunidade de baixa renda onde
nasceu Chico Science, um dos criadores do movimento mangue beat e deu voz e
referências a toda uma geração de jovens pernambucanos.
Chico cantava "computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro", música de Fred Zero4, do conjunto Mundo Livre SA. Nas aulas,
Sandro discute relações de trabalho e ensina pessoas com parcas
possibilidades de entrar no mercado formal a elaborar seus currículos.
Ele acredita que o contato com a informática, proporcionado por essas
aulas, se tornará um trabalho perdido, se não for realizado de forma
contínua. “A coisa mais importante que faço é mostrar às pessoas que
elas podem se superar, aprender, usar informática. Mas nenhum deles tem
computador em casa, e para dar um conteúdo maior seriam necessários
mais cursos”, afirma.
Selma:" Uma aula é um momento
de passar coisas para seu irmão".Um pouco de tudo
Muitos brasileiros têm uma atividade
semelhante à desses três profissionais. Atualmente, existem no país
entre 2 mil e 3 mil pontos públicos de acesso à internet ou de
aprendizado de informática, no caso das EICs. Cada um deles tem dois ou
três responsáveis. Isso significa que entre 4 mil e 9 mil pessoas,
hoje, dedicam-se a orientar cidadãos no uso de tecnologia. Elas são
encarregadas da gestão dos centros, da recepção e orientação dos
usuários, de dar aulas e, mais importante, integrar esses equipamentos
sociais às iniciativas comunitárias. Por isso, quase sempre são
moradores das comunidades onde funciona o telecentro. “O monitor é a
junção de várias atividades de diversas profissões”, diz Edimilson
Ferreira Nonato, 33 anos, que trabalha no Infocentro Achave, do
programa Acessa São Paulo, localizado em Parelheiros, zona sul da
cidade. “Você acaba sendo pedagogo, psicólogo, um pouco de tudo”.
Edimilson recebe R$ 620,00 mensais, mais vale-refeição e
vale-transporte, com registro em carteira. Trabalha em um infocentro do
Estado mais rico do país. Em outras regiões, o trabalho dos monitores
é, muitas vezes, voluntário. Eles são militantes de associações e
movimentos, e faz parte de sua atividade política a manutenção do
telecentro. “Há locais onde, sem a existência de voluntários, não
haveria telecentros”, diz Cristina Kiomi Mori, do Observatório Nacional
de Inclusão Digital. Em algumas cidades, eles conseguem mostrar às
prefeituras a importância do centro de acesso, de modo que a
administração municipal assume, então, o pagamento da mão-de-obra.
Mas não sem pressão. O telecentro de Altamira, na beira do cais do rio
Xingu (PA), um dos três da Rede da Floresta – Topawa Ka’a, ficou
fechado de 12 de fevereiro a 25 de abril deste ano, até que a
prefeitura cumprisse o compromisso de pagar o salário de R$ 450,00 para
o monitor e R$ 800,00 para o coordenador. “Trabalhamos seis meses com a
promessa de que seríamos contratados, até que decidimos fechar”, diz
Edilberto Freitas da Cruz, 43. Ele ganha menos do que os R$ 800,00
mensais que Marcelo Martins, voluntário na Casa Brasil da Cidade de
Deus, apura todos os meses com seu trabalho de produtor no grupo de
funk Bonde do Tigrão. Marcelo tem orgulho do trabalho de voluntário.
“Somos tão importantes quanto os coordenadores e monitores para a
atividade do telecentro”, afirma.
Quanto maior for a consciência da sociedade de que o acesso à
tecnologia da informação é um direito tão importante quanto educação e
saúde, mais esse exército – profissional ou voluntário – vai crescer.
Ainda devem ser inaugurados milhares de telecentros e escolas
comunitárias de informática no Brasil. Por conta da concentração da
renda, a democratização do acesso terá que ser realizada de forma
coletiva. E por muito tempo. No caso dos telefones fixos, por exemplo,
mesmo com o aumento no número de usuários, depois da privatização, há
somente 40 milhões de linhas em operação no Brasil. Isso significa que
cerca de 60 milhões de brasileiros têm acesso a linhas fixas apenas por
meio de telefones públicos, de acordo com o cálculo de um diretor da
Telemar. E o custo de uma linha, sem internet, é bem menor que o de um
computador. A taxa de instalação de uma linha telefônica, em São Paulo,
é R$ 88,00, e sua assinatura, R$ 38,13. Um computador do programa
Computador para Todos custa R$ 1,4 mil.
Rodrigo (a esq.) e Marcelo:
união na Cidade de Deus.Dificilmente um telecentro se consolida sem um bom monitor. E a
primeira característica procurada em um candidato por entidades como a
Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits), a Comunitas, o
sampa.org, o Coletivo Digital – que capacitam monitores para vários
projetos de inclusão digital – é sua capacidade de se integrar com a
comunidade. Na maior parte dos projetos, os monitores são indicados
pelas entidades nas quais funcionam os telecentros, participam de uma
capacitação e começam a trabalhar. As entidades indicam um número de
pessoas, para capacitação, maior do que o de monitores a serem
contratados. Assim, terão mais gente preparada, para trabalhar como
voluntário ou substituir o monitor.
A segunda característica importante é a capacidade de se comunicar e de
lidar com diferentes tipos de público. Essas, no entanto, são funções
básicas, porque os monitores serão os responsáveis por mobilizar os
recursos da comunidade para sustentar o centro – desde voluntários até
patrocínios de entidades públicas e empresas ou moradores capazes de
dar cursos. Fabiano Leal, 17 anos, faz exatamente isso na Escola de
Futebol Projeto Futuro da Lagartixa.
Na escola de futebol, foi criado, com quatro computadores doados por
empresas, um Espaço Jovem para o acesso e uso da internet pela
comunidade da Lagartixa, na zona norte do Rio de Janeiro. Fabiano,
monitor da Rede Jovem desde o ano passado, capacitou os monitores da
comunidade e agora vai se mudar para lá. “Gosto daqui porque
trabalhamos juntos, trocamos idéias, não há distância entre eu e os
diretores da entidade”, explica. Agora, ele vai atuar também como
mobilizador social e captador de recursos. “Vamos procurar formas e
parcerias para mobilizar a comunidade, fazer cursos para jovens em
outras áreas além de informática e, assim, aumentar as oportunidades e
ampliar a visão de mundo deles”, explica.
Fabiano trabalha como voluntário e também foi assim que Daniela Guedes,
ex-monitora da Rede Jovem, começou a trabalhar com tecnologia. Com a
capacitação realizada pela Comunitas e ao longo do tempo de trabalho
nos telecentros, ela percebeu que sua função estava inserida em um
contexto bem maior do que o de ensinar informática. “Há monitores que
acham que seu trampo é aperta-botão. Liga aí, faz isso, faz aquilo”,
explica ela. “E há os educadores, que percebem que seu trabalho é de
inclusão social e que o digital é somente um pretexto”, conta ela. A
função do educador não é dar ao educando o treino técnico indispensável
para adaptá-lo a uma realidade que não pode ser mudada, diz Paulo
Freire. Ensinar não é transferir conhecimento, é criar possibilidades
para que as pessoas realizem sua própria produção, sua própria
construção.
Como o uso de tecnologias da informação é uma das formas de realizar
essa produção, os monitores são preparados para fazer muito mais que
ensinar informática. Os cursos de capacitação incluem noções de
tecnologia e de gestão dos telecentros – que vai desde o cadastramento
dos usuários até projetos de sustentabilidade. Além disso, eles têm
aulas sobre diversos aspectos da relação entre o uso da tecnologia e a
inclusão social. Alguns exemplos: na capacitação do projeto Casa
Brasil, coordenada pela Rits em parceria com o Coletivo Digital,
discutiram a relação entre o uso de software livre e inclusão digital.
Na Comunitas, os monitores da Rede Jovem abordam questões do gênero e
atendimento a pessoas com necessidades especiais. No sampa.org, fazem
cursos de agentes de rede, ou de cidadania – onde se discute direito à
informação, economia solidária, cooperativismo – para levar informações
que ajudem a comunidade a explorar todo o potencial da rede. Dessa
forma, as pessoas que se capacitam para trabalhar nos telecentros podem
se tornar verdadeiros mediadores, ou seja, transitar conhecimentos
entre diferentes segmentos sociais.
Entre dois mundos
Daiana Maciel, monitora da Estação
Digital da Comunidade Novo Ar, em São Gonçalo (RJ), faz isso na
prática. Graduanda de História na Universidade Federal do Rio de
Janeiro, ela fez curso pré-vestibular comunitário na Novo Ar. Agora,
além de trabalhar como monitora e dar aulas de informática, ela
participa de um projeto no qual universitários que vivem na comunidade
ministram oficinas de cidadania, comunicação e inclusão digital para 20
pessoas de 18 a 20 anos de diferentes níveis de escolaridade, a fim de
compartilhar o conhecimento que têm. Daiana explica que o trabalho como
monitora mudou sua visão de mundo e também mudou a comunidade. “Hoje
sou uma pessoa melhor, porque entendo meu papel social e consigo fazer
isso. E as pessoas da comunidade, tratadas com respeito, também se
sentem mais cidadãs”, resume. Daiana receberá uma bolsa de um salário
mínimo (R$ 300,00) da Fundação Banco do Brasil, por seis meses, como
remuneração pelo seu trabalho. Depois, vai dividir com as outras duas
responsáveis pelo telecentro a receita de R$ 50,00 a R$ 60,00 por dia,
descontado o dinheiro da manutenção do local. “Cobramos R$ 1,00 por
hora, para sustentar o espaço”, diz ela.
Ao aprender a lidar com tecnologia, atender ao público, dar aulas,
elaborar projetos, buscar recursos para o telecentro, incorporar as
iniciativas da comunidade aos espaços públicos, os monitores também
ampliam seu próprio horizonte profissional. Por isso, muitos deles,
depois de trabalhar nos telecentros, decidem fazer faculdade ou se
capacitam para atuar em outros projetos comunitários. Daniela Guedes,
por exemplo, conclui este ano o curso de licenciatura em Computação,
focada na área de inclusão digital. A faculdade é da Fundação Santo
André. “Decidi fazer essa faculdade para aprender mais metodologia.
Estudo inclusão digital, educação a distância, trabalho com públicos
diferenciados, porque toda a minha experiência de instrutora, até
agora, foi com públicos especiais”, explica. Ela trabalhou com jovens
em liberdade assistida, no Centro de Referência da Juventude da
Prefeitura de Santo André, depois com pessoas portadoras de
deficiência. Hoje trabalha para a ONG Associação de Volta para Casa,
desenvolvendo atividades no núcleo de atenção psicossocial da
Secretaria de Saúde do município, na coordenação de saúde mental. E
completa o salário de R$ 700,00 por mês atuando em projetos de redução
de danos para usuários de drogas.
Juarez: compromisso
com a comunidade.Juarez Ramalho Marcelino, 22 anos, monitor do telecentro Santos
Mártires, da Prefeitura de São Paulo, foi testemunha dos primeiros
movimentos pró-inclusão digital que aconteceram em São Paulo, no ano
2000. “Em 2000, a gente discutia muito como os pobres iam encarar a
revolução digital e serem excluídos mais uma vez, porque não tinham
acesso à tecnologia. E as organizaçõs governamentais conseguiram
sensibilizar o poder público para isso”, diz ele. Mesmo quando o
telecentro fechou, por três meses, por falta de verba, antes de ser
assumido pela prefeitura, ele continuou no projeto, por compromisso com
a comunidade.
Pensar o futuro
Hoje, explica Juarez, a visão da
necessidade de inclusão se confirma. “Há concursos públicos que só
aceitam inscrições via internet; e quem não tem acesso está fora”, diz.
Ele concluiu o ensino médio há dois anos, mas ainda não sabe como vai
tocar sua vida profissional. “Eu não me enxergava trabalhando no
telecentro até agora”, afirma. “É uma experiência importante, porque
aprendi a me relacionar com as pessoas e com a informática. A ter o
pessoal da comunidade trabalhando. O tanto de gente que se conhece é da
hora. Mas, de repente, a gente tem que cruzar uma ponte”, ensina. Nem
tudo é questão de só querer. Juarez pretende trabalhar com design
gráfico, mas um curso no Senac custa R$ 700,00 por mês, muito dinheiro
para o seu salário de R$ 450,00. Enquanto não encontra sua saída, ele
trabalha no telecentro, faz teatro, compõe músicas. Comprou um
computador há dois anos e já tem uma faixa “caseira” gravada. Chama-se
Bravo.
* Colaborou Daniela Alves