Com o software livre e a internet, tornou-se possível a produção e
distribuição de bens culturais a baixo custo. Muito mais democrática e
acessível, a cultura livre começa a ganhar corpo, seguindo o caminho
das plataformas abertas.
João Luiz Marcondes e Patrícia Cornils
As grandes obras de ficção científica vislumbraram o avanço tecnológico
como substancialmente opressor ao ser humano. Basta ver o olho feroz do
Big Brother, no livro “1984”, de George Orwel. Ou o computador HAL, de
“2001 — Uma Odisséia no Espaço”, que se volta contra os astronautas. E
também o controle sobre a vida das pessoas no romance “Admirável Mundo
Novo”, de Aldous Huxley. O que se vê hoje, no entanto, é o contrário:
de uma certa forma, a tecnologia deu um golpe no próprio sistema que a
criou e a desenvolveu. “A diferença é que, agora, os ‘manos’ também
estão de olho, não é só o Big Brother”, desafia Cláudio Prado,
coordenador de políticas digitais do Ministério da Cultura. Por
“manos”, entenda-se o povo, o cidadão comum. Com o advento de
ferramentas tecnológicas acessíveis, como o software livre e a
internet, o cidadão comum pôde inverter o sinal e usar a tecnologia
para produzir e distribuir bens culturais a baixíssimo custo (em alguns
casos, próximo de zero) e colocá-los à disposição do grande público. A
diversidade cultural, com isso, só aumenta. E as pessoas ganham acesso
a um universo que não é definido, apenas, pelas escolhas das grandes
redes e gravadoras.
BNegão e os Seletores de Freqüência:
o disco "Enxugando o Gelo" pode ser
baixado da internet, de graça. O resultado do encontro entre a tecnologia e a arte é a democratização
da produção e do acesso à cultura, que está revolucionando até a noção
de propriedade intelectual. Porque os “manos” estão produzindo bens
culturais livres, ou seja, músicas, vídeos e textos licenciados de
forma que outra pessoa possa “capturá-los” e usá-los: desconstrui-los,
misturá-los com outras informações, reconstrui-los e redistribuir.
Isso, claro, desde que o resultado continue livre e que outras pessoas
possam fazer o mesmo. “A música tem que circular, não sou eu quem vai
ficar travando”, decreta Bernardo, o rapper Bnegão, pioneiro entre os
artistas mainstream do Brasil a colocar um disco inteiro, gratuito, na
rede, em novembro de 2003. Essa forma de produção foi batizada de
cultura livre, que circula sem barreiras em seu meio de propagação.
Esse meio é a internet.
Parece coisa de filme, utópica? Sim, parece, mas já existe numa escala
considerável. Em todo o mundo, há mais de 15 milhões de obras livres
licenciadas, de acordo com Ronaldo Lemos, advogado especialista em
direitos autorais e representante da Creative Commons no Brasil. O
próprio governo brasileiro, por meio do Ministério da Cultura (MinC),
faz questão de estimular a prática, com a distribuição de kits
multimídia (ver a composição do kit) para produção de obras artísticas
(vídeo, música, foto) em cem dos 260 Pontos de Cultura espalhados pelo
país. O Ponto de Cultura é um ambiente público, criado pelo MinC, para
abrigar iniciativas de produção cultural.
Ferramentas gratuitas
A gênese do kit multimídia aconteceu na própria web, com pessoas que
estão envolvidas na questão. Por exemplo, no Estúdio Livre, ambiente
colaborativo de suporte à produção desenvolvido pela equipe do Cultura
Digital, integrada por Cláudio Prado. No site, as ferramentas gratuitas
para a produção de arte (áudio, vídeo, gráfico, design, fotografia) são
atualizadas, explicadas e discutidas cotidianamente. Em um colorido,
animado e descontraído bunker localizado na Galeria Olido (centro de
São Paulo), trabalham alguns desses desenvolvedores de softwares e
idéias. Entre computadores e violões, há gente como Cristiano Scabello,
o Cris Cabello, músico, vocalista, que busca a expressão pelo meio
digital.
Em agosto, Cabello esteve no Piauí, para um Encontro de Conhecimentos
Livres, promovido pelos Pontos de Cultura do Nordeste. Durante o
evento, foram instalados 4 telecentros com equipamentos reciclados, e
produzidos cinco vídeos e muitas músicas, em oficinas culturais. Essa
produção está à disposição de quem quiser, no Estúdio Livre. “Música é
elemento de transformação, de comunicação entre as pessoas, nada mais
justo que seja livre”, defende Cris. Ele e outros colegas do Cultura
Digital fazem consultoria para o MinC na instalação dos equipamentos
eletrônicos nos Pontos de Cultura. Além disso, participam do
desenvolvimento colaborativo dos programas. O Cinelerra, software livre
mais avançado para a edição de vídeo, foi traduzido integralmente para
o português pelo pessoal do Estúdio. Um programa desse tipo no esquema
software proprietário (o Adobe Première, por exemplo) custa em torno de
US$ 1 mil, ou cerca de R$ 2,5 mil. Para obter o Cinelerra e fazer
“cinema em casa”, basta dar um clique no link que está no Estúdio Livre
e baixar o programa.
Imagem do vídeo produzido no
1º Encontro de Conhecimentos
Livres, em Aracajú.
De olho neste cenário, a produtora Naked Pictures vai realizar o
Cultura Digital, um projeto de três vídeo-documentários sobre como o
acesso à tecnologia modifica a produção cultural no Brasil. Os vídeos
serão produzidos de forma livre, tanto no que diz respeito às
ferramentas quanto à circulação do produto final. Serão de baixo custo,
em relação ao uso de infra-estrutura tecnológica. O resultado será um
bem cultural livre: os documentários não terão fins lucrativos, mas
ficarão à disposição para quem quiser exibi-los ou distribuí-los em
suportes DVD ou VHS. Mais do que isso. Todo o material bruto, com as
entrevistas, também estará livre para download e reutilização. O que
significa que, se alguém quiser montar outro documentário, com as
mesmas fontes, ou usar o material em outra produção, pode. Desde que o
resultado também seja licenciado de forma livre.
“Mais importante do que o produto final é a informação que vamos gerar,
porque a riqueza da informação que estamos recolhendo será maior do que
a riqueza do material editado”, explica Leo Germani, um dos
participantes da Naked Pictures. Além disso, diz ele, o processo em si
será um exemplo de como se pode fazer cultura com ferramentas livres.
“Todo mundo fala que os programas abertos de edição competem com o
Adobe Première ou com o Final Cut, mas não há uma ligação entre esse
discurso e a produção das pessoas, que acabam usando as ferramentas
proprietárias”, observa Germani. “Nós vamos fazer essa conexão”. O
material dos documentários estará disponível na biblioteca digital
Internet Archive .
Tocador de imagens
O mundo digital fundiu imagem e som e criou a figura do VJ, que “toca”
imagens nas festas after hours e raves, os hits do século 21,
acompanhando os DJs. É o caso do vídeo-jóquei baiano Ângelo Pixel, 23
anos. Enquanto o DJ manda batidas, loops e mixagens para a festa, em
telão, Pixel joga imagem em cima de imagem no inconsciente do público.
Não são imagens pré-editadas, mas uma seqüência bolada na hora, com
todos os improvisos que a arte pede. “Uso arquivos livres de imagens,
algumas animações ou qualquer coisa do tipo”, diz Pixel. Ele também
utiliza um programa livre de edição de imagem, o Gephex. Seu maior
feito foi ter acompanhado o DJ israelense de trance (estilo de música
eletrônica), Scavi, no megafestival Brasília Music Festival, em 2004.
Cris Cabello: música tem que
ser livre.
Computadores e música se tornaram irmãos com a popularização da música
eletrônica — qualquer música criada por meio de sinais elétricos e
equipamentos eletrônicos. Hoje, a expressão é usada como sinônimo de
músicas produzidas por componentes eletrônicos, como sintetizadores,
samplers, computadores, baterias eletrônicas. Às vezes, a música
eletrônica é chamada de música de computador, pelo uso de softwares
para a manipulação de sons. Com o uso de CDs e o aumento da capacidade
de armazenamento e processamento dos computadores – que podem comportar
algumas horas de áudio em qualidade de CD e descomprimir arquivos de
áudio em tempo real –. o alcance da música eletrônica se expandiu.
O mundo dos sons ficou cada vez mais parecido com o mundo do software,
até na forma de criação, ou desenvolvimento. Por isso, a afinidade
entre os músicos independentes e os desenvolvedores de sistemas. “As
grandes gravadoras são como a indústria de software proprietário”,
observa Eduardo Maçan, um dos desenvolvedores do Debian no Brasil. O
mesmo acontece com desenvolvedores de software livre e músicos
independentes, diz ele. “As duas comunidades querem divulgar ao máximo
sua produção, em vez de lucrar com o controle do canal de
distribuição.” A afinidade eletiva entre programas livres e música
eletrônica mudou o rumo profissional de Felipe Machado, do grupo
pernambucano Originais do Sample. O Originais ainda não tem disco, mas
seu criador ganhou um prêmio no Festival de Cinema de Fortaleza de
2005, pelo som do filme “Ave Maria, Mãe dos Oprimidos”. Técnico de
Linux, ele começou a usar programas de áudio para samplear batidas em
suas horas vagas. O cunhado, músico, gostou do som e propôs adicionar
um toque de rabeca a uma batida. Machado, um técnico de informática,
passou a fazer música. Quando se deu conta de que não ia parar, decidiu
usar software livre. “Os sistemas proprietários são bacanas, bem
documentados e têm muitas ferramentas”, diz ele. “Mas um Nuendo 3 custa
R$ 2 mil. Um pacote com plugins custa R$ 7 mil”, explica. A única
alternativa para um músico independente e, por definição, com pouco
dinheiro, seria piratear o software. “Como não quero ficar na posição
de marginal, prefiro usar software livre”, conclui Felipe.
Mais gente pensa assim. Maçan formou, com outros dois companheiros, o
grupo Crosstalk (linha cruzada, interferência, em inglês), para atuar
em diversos ramos da mídia: internet, produção de áudio, vídeo e
programação de apoio para produção em software livre. Os outros dois
são Cristian Faber, designer e diretor de marketing, e Jean Martins,
administrador de empresas. A missão do Crosstalk é “dominar o mundo”,
diz o site do grupo. Enquanto isso não acontece, eles criaram um
modelo para que os artistas que se interessem tenham um caminho mais
fácil, ao se aventurar na música, explica ele. “A gente experimenta
muito, tem uma espécie de estúdio virtual onde colocamos o que produz
mais rápido e é mais legal. Isso poupa as pessoas de procurar os
programas e descobrir como integrar”, informa. Qualquer um pode
instalar e produzir: há programas livres para criar sons, samplear,
misturar, mixar, masterizar e sair com um CD do outro lado. Tudo
digital.
Democracia digital
Para Cláudio Prado, do MinC, “digital” é o nome mais adequado para
nomear a época em que vivemos, mais do que Sociedade
Maçan e Faber (esq.),
pesquisando
ferramentas para a
criação de áudio.da Informação ou
Sociedade do Conhecimento. O sistema antigo é o analógico-industrial.
“A música hoje é bits e bytes. Seu resultado é imaterial, não precisa
de um suporte (a fita cassete, por exemplo). Ela pode ser enviada por
internet e chegar ao público com a qualidade original em que foi
gravada.” Da forma antiga, na sua opinião, remunera-se mal o artista e
o produto chega caro para o ouvinte. Quem sai lucrando é o
intermediário (a gravadora). Para o coordenador do MinC, o digital é a
essência para democratizar o acesso à arte.
Cláudio aponta, como belo exemplo de um caminho alternativo ao mundo
proprietário das grandes gravadoras, o rapper BNegão, da aclamada e
polêmica banda Planet Hemp. Na hora de seguir carreira solo, seu
parceiro, Marcelo D2, optou por uma grande gravadora, e seu disco teve
publicidade massiva em tudo quanto é rádios e canais de TV. Já Bernardo
permaneceu livre e independente: “Fiz assim por uma questão ideológica,
espiritual e filosófica”, conta o músico carioca. Junto com sua banda,
os Seletores de Freqüência, o músico lançou o disco “Enxugando o Gelo”
pelo selo independente Trattore. E foi além: colocou-o à disposição, de
graça, na internet. O fato de sua música ser gratuita e acessível lhe
trouxe uma agradável surpresa. Ele foi chamado para tocar em vários
lugares na Europa, dividiu o palco com bandas como Green Day, Foo
Fighters, além do líder do Beach Boys, Brian Wilson.
Assim como Cláudio Prado, BNegão não acredita na campanha contra a
pirataria. “A música tem que andar. As gravadoras é que têm mentalidade
tacanha”, comenta. “Nunca faria uma campanha contra a pirataria, sou
contra a criminalização dessas pessoas. O preço real de um CD é R$
10,00, mas cobram R$ 30,00, R$ 40,00. O resto é o que as gravadoras
pagam às rádios e TVs para tocarem as músicas. Quem assume essa conta é
quem compra o CD”, explica. Para ele, trata-se de uma guerra de
informações: “Dizem que, se você baixar músicas pela internet, cai a
venda do disco. Mas o artista que mais vendeu discos no mundo, no ano
passado, o 50 Cent (rapper norte-americano), também foi o que teve mais
músicas baixadas, à revelia de sua gravadora”.
1 servidor de aplicações
(Processador Intel Pentium 4 2.66GHz, 1Gb de memória, 2 HD com 120 Gb, 2 placas de rede, CD-RW, monitor SVGA 17")
1 servidor multimídia
(Processador Intel Pentium 4 2.66GHz, 1 Gb de memória, HD com 120 Gb,
placa de rede, CD-RW, DVD-RW, 2 monitores SVGA 17", placas profissionais para captura de áudio e vídeo)
1 terminal para consulta (terminal burro)
1 switch não-gerenciável com 8 portas
1 impressora colorida a jato de tinta para formato A4
1 impressora preto-e-branco a laser para formato A4
1 scanner de mesa
1 filmadora Mini-DV com 1 CCD
1 câmera fotográfica com resolução de 3.2 megapixels
1 MD portátil
1 kit para áudio
(Mesa de som com 12 canais, monitor, amplificador, 6 microfones
supercardióide, 1 microfone de lapela, 2 fones de ouvido, 6 pedestais
para microfones, e cabos)
Também acompanham o kit digital: estabilizadores de tensão, filtros de
linha, recarregador de baterias e um conjunto de ferramentas para
reciclagem e manutenção de computadores.
Existem várias formas de licenciar uma obra. A mais tradicional e
restritiva é o copyright. Na outra ponta da escala, está a sampling
plus, que permite a reprodução integral da obra para fins
não-comerciais e a cópia de trechos para qualquer fim, exceto
publicidade. Segundo Caio Mariano, advogado que presta consultoria para
o Minc, obra cultural livre é aquela cujos usos por terceiros são menos
restritivos do que as obras protegidas por prerrogativas de direitos
autorais. “As licenças de uso são contratos através dos quais os
autores ou titulares de direitos autorais sobre obras intelectuais
definem, de uma forma ampla e geral, determinadas condições de uso
destas obras”, explica.
Existem várias licenças públicas voltadas para o licenciamento de obras
intelectuais livres. As mais comuns são GPL (Licença Pública Geral) e
Creative Commons. Vários artistas famosos no mundo já licenciaram
músicas em Creative Commons. Entre eles, Gilberto Gil, Beastie Boys,
Paul Westerberg, David Byrne (da banda Talking Heads). Veja aqui
exemplos de licenças Creative Commons, que reservam ou liberam alguns
direitos: o de crédito ou o de uso não-comercial, por exemplo. Copyright tradicional, que quer dizer “Todos os direitos Reservados”
ao autor ou dono da obra. Essa condição vale automaticamente para
qualquer obra, se o autor não especificar outra forma de licenciamento. Atribuição – a obra e as criações derivadas podem ser copiadas, distribuídas, executadas, somente com crédito ao autor.
Uso não comercial – permite a cópia, distribuição, exibição e execução
da obra e seus derivados somente para usos não-comerciais. Nada de derivados – permite a cópia, distribuição, execução e
exibição somente literais de sua obra, não de outras obras baseadas
nela.
Sampling – parte da obra pode ser reproduzida para qualquer fim, exceto
propaganda. A reprodução da obra completa não é permitida.
Sampling plus — parte da obra pode ser reproduzida para qualquer
fim, exceto propaganda. A obra inteira pode ser copiada e distribuída,
mas apenas para fins não-comerciais.
Compartilhamento de licença – Permite a distribuição de trabalhos baseados em sua obra somente sob licença idêntica à dela.
www.gephex.org/ . GePhex (vídeo)
http://heroinewarrior.com/cinelerra.php3 . Cinelerra (vídeo)
http://kino.schirmacher.de/ . Kino (vídeo)
http://ardour.org/ . Ardour (áudio)
http://jackit.sourceforge.net/. Jack (áudio)
http://audacity.sourceforge.net/ . Audacity (áudio)
http://amsynthe.sourceforge.net/amSynth/ . AmSynth (áudio
www.estudiolivre.utopia.com.br – Estúdio Livre
www.archive.org/ – Archive
http://creativecommons.org/ – Creative Commons
www.bnegao.com.br/ – BNegão
http://pt.wikipedia.org/wiki/Música_eletrônica – música eletrônica na Wikipedia
www.cultura.gov.br . Ministério da Cultura
www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/cultura_viva/index.php
http://converse.utopia.com.br
www.metareciclagem.com.br