Capa – O drama sem fim das rádios comunitárias

A via crucis das rádios comunitárias que buscam a legalidade não foi amenizada no governo Lula, que criou um grupo de trabalho para rever a legislação e reduzir a burocracia. A liberação dos processos caiu de ritmo e o número de rádios fechadas cresceu. Depois das eleições, o governo promete enviar ao Congresso projeto para alterar a Lei das Rádios Comunitárias. Mas poucos apostam nas chances de o Parlamento aprovar uma lei que atenda às reivindicações dos movimentos sociais.


A via crucis das rádios
comunitárias que buscam a legalidade não foi amenizada no governo Lula,
que criou um grupo de trabalho para rever a legislação e reduzir a
burocracia. A liberação dos processos caiu de ritmo e o número de
rádios fechadas cresceu. Depois das eleições, o governo promete enviar
ao Congresso projeto para alterar a Lei das Rádios Comunitárias. Mas
poucos apostam nas chances de o Parlamento aprovar uma lei que atenda
às reivindicações dos movimentos sociais.
  Nelson Breve*

Lençóis (BA), setembro de 2002: lacrada a Rádio Laúza FM, projeto
comunitário reconhecido pelo governo federal. Valente (BA), 7 de
janeiro de 2003: mesmo depois de outorgada, a Rádio Valente é a
primeira comunitária lacrada pela Polícia Federal e pela Agência
Nacional de Telecomunicações (Anatel) no governo Lula. São Gonçalo
(RJ), fevereiro de 2006: fechada a Rádio Novo Ar, que, pela segunda
vez, precisa mudar de sede para conseguir autorização do governo. São
Paulo (SP), julho de 2006: fechada a Rádio Heliópolis, premiada e
reconhecida internacionalmente pelos serviços prestados a uma
comunidade de 125 mil favelados. 


A Novo Ar, de São Gonçalo,
acumula prêmios, mas não
consegue outorga

De acordo com dados da Anatel, nos últimos cinco anos, foram fechadas,
em média, por semana, 50 rádios que não estavam autorizadas a funcionar
pelo governo. No balanço do primeiro semestre deste ano, foram lacrados
mais de dez transmissores radiofônicos por dia. Cerca de metade deles
com potência inferior a 25W, que não dá para alcançar mais de cinco
quilômetros de raio com recepção sonora de boa qualidade. Rádios
tipicamente comunitárias, que querem ter o direito de nascer e não
conseguem se desvencilhar de um drama sem fim.

A Rádio Laúza, de Lençóis (BA), surgiu com um movimento da comunidade,
chamado Avante Lençóis, que conseguiu cassar um prefeito ao manter a
população do município informada sobre as irregularidades na prefeitura
e mobilizada com um jornal quinzenal de uma folha mimeografada – “O
Avante”. Os moradores da cidade de 9 mil habitantes na Chapada
Diamantina fizeram um bingo para comprar os equipamentos e a emissora
foi colocada no ar, em outubro de 1999. Desde então, tenta se legalizar.

Já alterou estatutos, pagou taxas, teve transmissor lacrado e depois
roubado, seus dirigentes foram processados, o pedido de licença
arquivado pelo governo sem aviso à entidade. E, agora, depende de um
mapa atualizado das ruas do município, que a Prefeitura não dispõe e a
entidade não tem recursos para encomendar. “É um processo extremamente
desgastante, oneroso e injusto. É uma briga para tentar fazer as
pessoas desistirem ou ficarem como rádios piratas”, desabafa Nelma
Pereira de Jesus, secretária geral da Associação Rádio Comunitária
Avante Lençóis, que teve menos dificuldades para obter o Certificado de
Utilidade Pública Federal, concedido pelo Conselho Nacional de
Assistência Social.

A entidade é reconhecida pelos governos federal, estadual e municipal,
por desenvolver projetos muito importantes para a comunidade. Além de
ter jornal, suspenso por falta de recursos, e a rádio, único meio de
comunicação do pequeno município e arredores, a associação dá cursos
básicos de informática e acesso à internet para toda a comunidade, na
Estação Digital Avante (programa da Fundação Banco do Brasil). Mantém
uma biblioteca comunitária, com 4 mil livros, e oficinas de arte,
artesanato e reciclagem para crianças e adolescentes, que também
recebem orientações sobre cidadania, cultura e ecologia.

Longo martírio


Silêncio em Heliópolis

O martírio das rádios comunitárias começou há mais de dez anos. Para
fazer a privatização das telecomunicações do país, o governo precisava
mexer em uma lei muito antiga, que também tratava da radiodifusão. Não
teve coragem de enfrentar os donos de emissoras de rádio e televisão, o
que dificultaria a aprovação do que interessava. Mas precisava resolver
o problema de milhares de emissoras de rádio de baixa potência operando
sem licença, que ficariam sem regulamentação. Muitas eram ligadas a
entidades que desenvolviam trabalhos comunitários relevantes para a
sociedade. Outras, vinculadas à luta pela democratização dos meios de
comunicação, chamadas de rádios livres. O Congresso acabou aprovando
uma regulamentação específica para as rádios comunitárias, mantendo
para as comerciais a legislação que vigora desde a década de 1960. Os
movimentos em defesa das rádios comunitárias comemoraram a
possibilidade de entrar para a legalidade, sonhando com o direito à
certidão de nascimento. Eles não contavam que a força de pressão das
emissoras comerciais no Congresso produziria uma Lei com tantos
obstáculos à natalidade.

A legislação só permite que o governo autorize um canal de rádio
comunitária por localidade, exclusivamente em freqüência modulada (FM),
com uma cobertura restrita à comunidade de um bairro ou vila, operada
em potência máxima de 25W e antena não superior a 30 metros. Precisam
ser mantidas por fundações ou associações instituídas legalmente e
devidamente registradas, sediadas e dirigidas por residentes na mesma
área da comunidade atendida. Os equipamentos devem ser homologados ou
certificados pelo governo. A formação de redes para transmissão
conjunta é proibida, mas elas têm de cumprir um tempo mínimo de
operação diária.

A licença para operar será cassada, caso as emissoras provoquem
interferência sistemática nas rádios comerciais ou outros serviços de
telecomunicação, mas as comunitárias estão proibidas de ter qualquer
proteção contra interferência das outras. Patrocínios só são permitidos
a título de apoio cultural, apenas de estabelecimentos situados na área
da comunidade. Além disso, para dar início ao processo, precisam
apresentar uma série de documentos sobre a entidade e seus dirigentes,
e manifestações de apoio restritas a entidades com sede na mesma área
da emissora.

Lei do apartheid


Radcons: alcance de apenas
cinco quilômetros de raio
O que deveria ser uma Lei do Ventre Livre para as rádios comunitárias
tornou-se uma Lei do Apartheid da Radiodifusão. O canal para obter uma
autorização de funcionamento tem gargalos tão apertados, que é
praticamente impossível elas sobreviverem na legalidade. E o governo
federal o estreitou ainda mais, com uma regulamentação que obriga as
entidades a percorrer um circuito burocrático que é uma verdadeira
corrida de obstáculos. Com isso, grande parte delas não consegue
atender as exigências por falta de informação, estrutura, organização
ou habilidade técnica para mexer com a documentação.

Foi o que aconteceu com a Comunidade Novo Ar (Comnar), em São Gonçalo
(RJ). Criada em fevereiro de 1996, começou a funcionar antes da
aprovação da Lei das Rádios Comunitárias, que já estava em discussão,
mas só entrou em vigor dois anos depois. O pedido de licença foi
protocolado em 17 de dezembro de 1998. A entidade mudou de endereço,
alterou o estatuto, informou a Delegacia Regional da Anatel no Rio de
Janeiro e sempre ouvia a mesma resposta, quando questionava a situação
do processo: “Aguardem, está encaminhado”.


Lençóis: a rádio Laúza é obrigada
a produzir um mapa das ruas da
cidade

Cinco anos depois, quando conseguiram patrocínio para enviar um
advogado a Brasília, os dirigentes da entidade souberam por um deputado
que o pedido havia sido arquivado por causa de problemas no estatuto
antigo. Ao solicitar o desarquivamento, descobriram que o governo já
havia autorizado o funcionamento de duas emissoras comunitárias em São
Gonçalo. A Rádio Aliança, de uma entidade ligada à Igreja Católica, e a
rádio da Associação Morro do Castro, que conseguiu a autorização no fim
de 2002, mas nunca funcionou. Depois de muita reclamação, o Ministério
das Comunicações concordou em reabrir o processo, mas queria que a
entidade iniciasse um novo pedido, o que a colocaria no fim da fila, à
espera da abertura de um novo canal. “Fui várias vezes ao ministério,
entrei em contato com o procurador, escrevi dezenas de ofícios. No
início de 2004, exigiram que a sede da rádio se deslocasse cerca de
dois quilômetros, porque havia outra rádio querendo essa área”, conta
Maria das Graças Rocha, presidente da Rádio Novo Ar e
secretária-executiva da Federação das Rádios Comunitárias do Rio de
Janeiro (Farc). Tratava-se de outra Rádio Aliança. Dessa vez, ligada a
uma comunidade evangélica.

A partir daí, a Comunidade Novo Ar teria começado a receber visitas
freqüentes da Anatel, segundo a presidente da rádio. Em abril de 2004,
foi fechada sob a alegação de estar provocando interferência em outras
emissoras. Reabriram e fecharam várias vezes na queda-de-braço,
chegando a receber cinco multas com valores próximos a R$ 1,9 mil que
estão sendo contestadas judicialmente. Em maio de 2005, o transmissor
foi lacrado pela Polícia Federal. Não adiantou. Tiraram o lacre e
reabriram. A teimosia da Comnar durou até 14 de fevereiro deste ano,
quando a Anatel e a PF foram cumprir mandado de busca e apreensão do
transmissor, que custa cerca de R$ 7 mil. Não foi achado, mas a rádio
está sem funcionar desde então. “O Minicom diz que a gente tem que sair
daqui, por causa da outra rádio. Então, em julho, arrumamos outra casa,
com as coordenadas de latitude e longitude que o ministério pediu.
Estamos em fase de mudança”, avisa Maria das Graças, entre o entusiasmo
e a resignação.

De barriga no chão


Cerca de 20 rádios atuam na região sisaleira da Bahia

A fiscalização feita pela Anatel em conjunto com a Polícia Federal é
uma das principais reclamações das entidades que lutam pela
disseminação das rádios comunitárias. Alegam perseguição política,
defesa dos interesses da rádios comerciais, truculência desnecessária e
arbitrariedades cometidas, com base em uma legislação no mínimo
confusa. Dizem que a repressão vem de longe, mas teria piorado no
governo atual. As estatísticas apontam certa lógica na suspeita. Em
2002, o número de transmissores lacrados foi semelhante ao de 2005, em
torno de 2 mil. Mas, naquela época, para cada 11 lacres em equipamentos
com potência acima de 25W, era lacrado apenas um de potência menor.
Hoje, a relação é de um para um. “A Anatel está comprometida com a
política contra as rádios comunitárias”, acusa Joaquim Carvalho,
diretor jurídico da Associação Brasileira das Rádios Comunitárias
(Abraço), que calcula em 15 mil o número de rádios operando sem licença
no Brasil, quase todas com histórico de lacre.

O superintendente de Fiscalização da Anatel, Edilson Ribeiro dos
Santos, contesta, dizendo que a grande preocupação da Anatel é com a
administração do espectro eletromagnético, tanto para garantir o uso
eficaz e harmonioso dos canais de propagação das ondas sonoras, quanto
para assegurar que interferências indesejáveis atrapalhem os serviços
de radionavegação nas proximidades de aeroportos. “Trabalhamos sob
muita pressão, andamos no fio da navalha e não podemos fazer outra
coisa a não ser seguir rigorosamente os procedimentos”, diz ele, que
atua na área de fiscalização e auditoria há mais de 30 anos e assegura
que os fiscais da Anatel agem apenas para garantir o cumprimento da
lei. Essa também é a visão da PF. Atuando há cinco anos no Grupo de
Combate à Atividade de Rádio Clandestina de São Paulo (GCARC), o
delegado Marcelo Previtalli diz que recomenda à sua equipe dar
tratamento civilizado ao cumprimento dos mandados expedidos pelo Poder
Judiciário. Ele observa, no entanto, que o padrão geral desse tipo de
operação é usar arma longa e ocupar de surpresa o local, rendendo com
energia quem estiver presente. “Nós nem precisaríamos de mandado de
busca para nenhum lugar. A lei me permite entrar chutando a porta com
metralhadora na mão e colocar todo mundo de barriga no chão. Pois não
sabemos se estão armados, se é uma rádio que prega a palavra de Deus ou
a apologia ao crime”, argumenta.


Joaquim Carvalho também responsabiliza a Associação Brasileira de
Empresas de Rádio e Televisão (Abert), pelo que chama de repressão
organizada contra as rádios comunitárias. De acordo com ele, apesar das
restrições impostas pela lei ao funcionamento das rádios comunitárias,
as emissoras comerciais não aceitam a concorrência delas, porque temem
perder receita publicitária em decorrência da diminuição da audiência.
“Em vez de se preocupar com as rádios comunitárias, deveriam olhar para
dentro e ver qual é o problema delas. Quem escolhe a estação é o
ouvinte. A culpa é das rádios comunitárias que se instalam ou da
péssima produção das rádios comerciais?”, questiona Carvalho. O
consultor jurídico da Abert, Alexandre Jobim, defende as rádios
comerciais, dizendo que elas enfrentam uma concorrência “desleal e
predatória” das que ele chama de “pseudo-comunitárias”. Mesmo
reconhecendo a existência de emissoras que prestam serviços sociais às
suas comunidades, Jobim reclama que grande parte das autorizadas a
funcionar pelo governo infringe a lei comercializando publicidade “a
preço vil”, deixando de pagar direitos autorais, fazendo proselitismo
político, religioso e ideológico ou sendo controladas até por
criminosos. “Não queremos que o Estado amplie as outorgas, pois iria
piorar de forma geométrica o caos que já existe no espectro”, afirma o
advogado, filho do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson
Jobim.

Desobediência civil

A insistência na desobediência civil ocorre porque muitas entidades,
como a Avante Lençóis e a Comunidade Novo Ar, não se conformam em ser
reconhecidas pelo governo como promotoras de importantes projetos
sociais de inclusão e não ter o direito de se comunicar com a população
beneficiada, enquanto outras, que atendem apenas interesses individuais
ou segmentados, estão funcionando legalmente e sem repressão. A
Comunidade Novo Ar já foi agente do Programa Comunidade Solidária, no
governo anterior. Colaborou com o Programa Primeiro Emprego. Possui um
Centro de Referência da Mulher, premiado pelo Fundo Ângela Borba, um
curso pré-vestibular, premiado em 2003 pela Unicef e pelo Banco Itaú.
Além de abrigar uma antena do Gesac, o Governo Eletrônico Serviço de
Atendimento ao Cidadão, programa do próprio Minicom que visa dar acesso
à internet às comunidades de baixa renda.

Os casos da Rádio Laúza, no interior do país, e da Novo Ar, em uma
região metropolitana, não são isolados. Desde a regulamentação da lei,
em agosto de 1998, o Minicom já recebeu 17.351 pedidos de autorização
para operar rádios comunitárias. Quase a metade deles (8.180) sequer
foi analisada. Das 9.271 entidades que conseguiram dar andamento ao
processo, mais da metade tiveram os pedidos arquivados. Segundo
informações disponibilizadas pela Anatel, até o fim de setembro, o
governo havia autorizado o funcionamento de apenas 2.579 emissoras
comunitárias. Destas, apenas 1.803 já possuem licenças definitivas
aprovadas pelo Congresso. Outras 470 estão autorizadas a operar em
caráter provisório e 306 estão paradas em alguma gaveta entre a Casa
Civil da Presidência da República e as Comissões que tratam do assunto
na Câmara ou no Senado. Mais de 1,8 mil estão barradas em alguma parede
do labirinto conhecido como Departamento de Outorga de Serviços da
Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica do Minicom, que dispõe
pouco mais de 20 funcionários para analisar os processos.


A briga de poder e de
classe também acontece
no "ar"

Na região sisaleira do sertão da Bahia, o Movimento de Organização
Comunitária (MOC), entidade que participa de vários fóruns de
discussões de políticas públicas, como o Conselho Regional de
Desenvolvimento Territorial, apóia cerca de 20 rádios comunitárias.
Apenas seis conseguiram a licença para operar. Quase todas, inclusive
as legalizadas, já foram fechadas pela Anatel. O coordenador geral da
Abraço-Sisal, Cleber Silva, reclama de perseguição política. “Grupos
políticos que mandam no estado entendem que as rádios ligadas a
entidades da sociedade civil são de esquerda. Onde tem programas
jornalísticos, que informam a situação das prefeituras, o orçamento, o
desvio de verbas, as rádios são perseguidas”, acusa, lembrando que a
Rádio Valente, da cidade de Valente, que está autorizada a funcionar,
já sofreu várias visitas da Anatel, enquanto a rádio comercial Sisal
AM, da vizinha Conceição do Coité, não teve nenhuma nos últimos oito
anos.

De acordo com levantamento feito pelo consultor técnico da Câmara dos
Deputados, Cristiano Aguiar Lopes, a principal barreira enfrentada
pelas rádios comunitárias é o filtro político dos avisos de
habilitação. O ministro de plantão é quem decide qual cidade entra e
qual não entra na lista das que poderão ter rádio comunitária. A
agilidade na tramitação dos processos também tem um crivo político. No
início de 2005, Cristiano teve acesso a um banco de dados chamado
“Sistema Pleitos”, criado, no ano anterior, com o objetivo de dar um
acompanhamento especial aos processos com apadrinhamentos políticos de
parlamentares, governadores, prefeitos ou funcionários graduados do
governo federal. Ele cruzou a lista com os processos arquivados e
autorizados, entre 1º de janeiro de 2003 e 31 de dezembro de 2004, e
constatou que 71% das 503 emissoras autorizadas a funcionar no período
tinham algum apadrinhamento político. Por outro lado, 72% dos 2.329
processos arquivados não tinham padrinho algum.

A pesquisa mostra que, sem padrinho, apenas uma em cada 12 associações
que pleiteiam uma rádio comunitária alcançam o objetivo, enquanto mais
de uma em cada três apadrinhadas consegue a autorização. Um outro dado
levantado por Cristiano também chama a atenção. Dos cerca de 5 mil
processos arquivados pelo governo, cerca de 80% foram por falhas
decorrentes dos entraves burocráticos, como a falta de manifestação da
entidade no prazo legal ou de apresentação correta da documentação
exigida, ou desvios de finalidade (vínculos ideológicos, fins
lucrativos ou preferência religiosa) e só 20% por dificuldades
técnicas. “É uma coisa velha na política: criar dificuldade para vender
facilidade”, conclui o consultor.

O problema é antigo, mas o gargalo ficou mais apertado no governo
atual. Mais de 80% dos processos concluídos ou em andamento foram
iniciados no governo anterior (7.531), que disponibilizou freqüências
para 4.612 localidades por intermédio de 18 avisos de habilitação. O
governo Lula publicou apenas três avisos, disponibilizando canais para
mais 2.397 comunidades. Das emissoras autorizadas a funcionar
(outorgadas), quase 70% o foram pelo governo anterior. Se tomarmos como
referência somente o período entre a publicação das primeiras
autorizações (agosto de 1999) e a das mais recentes registradas no
último balanço do Minicom (março de 2006), o governo Fernando Henrique
Cardoso autorizou, em média, o funcionamento de 42 rádios comunitárias
por mês, enquanto o governo Lula autorizou apenas 23.

Labirinto burocrático


Rádio Heliópolis ajudam a encontrar crianças perdidas no bairro.

É preciso dar o desconto de que o governo atual recebeu, como herança,
uma verdadeira bagunça no setor de outorgas de rádios comunitárias do
Minicom. No fim de 2002, pouco antes de dar posse ao sucessor, o
presidente FHC baixou um decreto extinguindo todas as delegacias
estaduais do Minicom, que faziam a interlocução das entidades com o
governo federal. Com isso, o departamento de outorgas foi surpreendido
com milhares de processos que estavam nas prateleiras estaduais. Grande
parte sem nenhuma providência, além do carimbo do protocolo de
recebimento. A repartição emperrou. Nos primeiros cinco meses de 2003,
não foi autorizada nenhuma rádio. Por pressão dos movimentos pela
democratização dos meios de comunicação, o governo foi obrigado a criar
um grupo de trabalho no Minicom. Representantes da sociedade civil,
como o falecido Daniel Herz, do Conselho de Comunicação Social, e José
Carlos Rocha, do Fórum Nacional pela Democratização dos Meios de
Comunicação, participaram dos trabalhos.

O resultado até que foi satisfatório para desemperrar os processos.
Foram simplificados procedimentos, criada uma força-tarefa para
analisar os processos, organizados manuais para orientar as comunidades
interessadas, adaptados programas de informática para facilitar o
acompanhamento dos processos e dar maior transparência à tramitação.
Entre junho de 2003 e janeiro de 2004, foram autorizadas a funcionar
404 rádios comunitárias, uma média de 50 por mês. Desempenho só
superado no último ano do governo anterior. Mas, depois que o ministro
Miro Teixeira foi substituído por Eunício Oliveira no Minicom, a média
de autorizações caiu para menos de 15 por mês. “Resolvi não fazer
nenhum edital novo, enquanto não limpássemos a pauta. Inclusive paramos
de receber demandas novas que não estavam enquadradas nas áreas
disponibilizadas, devolvendo os processos, pois a regra antes era
deixar na prateleira”, justifica Eunício, que, no fim de 2004, criou um
segundo grupo de trabalho para fazer um diagnóstico e propor soluções.

O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) foi criado depois que a
Associação Brasileira de Radiodifusão e Comunicação Comunitária
(Abraço) do Rio Grande do Sul, junto com outros movimentos sociais,
ocupou a sede da Anatel para denunciar a repressão contra as rádios
comunitárias. O trabalho só foi concluído depois de nova troca no
comando do Minicom. O deputado cearense foi substituído pelo senador
mineiro Hélio Costa, que não gostou das conclusões do GTI e convenceu o
presidente Lula a esperar ao menos passar as eleições para encaminhar
as propostas. O GTI concluiu que o sistema de outorgas está
irremediavelmente emperrado e que a legislação precisa ser modificada
para que as emissoras cumpram o papel de construtoras da cidadania. O
relatório final constata que a morosidade do sistema de outorgas faz
com que um pedido leve, em média, três anos e meio para ser atendido.
Alguns estão esperando há oito anos.
 
Por causa dessa situação, o procurador regional dos Direitos do Cidadão
em São Paulo, Sérgio Gardenghi Suiama, está preparando uma ação popular
a pedido do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal
e de outras 12 entidades que defendem a democratização dos meios de
comunicação. Já dispõe de um relatório contendo as estatísticas de
fiscalização e outorgas, as considerações dos grupos de trabalho do
governo e as contradições da legislação que autoriza o funcionamento de
rádios comunitárias, mas complica o caminho para sua legalização. De
acordo com o relatório preparado pelas entidades, “existe uma
contradição na eficiência dos órgãos federais, pois atuam com muita
morosidade, para outorgar licenças de funcionamento de rádios
comunitária, e com extrema rapidez e agilidade para reprimir as
associações, prendendo e processando seus representantes legais e
operadores das emissoras populares, apreendendo equipamentos e
destruindo trabalhos e serviços comunitários muitas vezes essenciais às
comunidades em que as emissoras estão inseridas”.

Alterações na Lei

O relatório do GTI considera que o governo precisa reconhecer a
comunicação por intermédio das rádios comunitárias como estratégica
para o Estado e fazer um esforço efetivo e eficaz para sua
disseminação. Para isso, propõe alterações na lei das rádios
comunitárias que atendem à boa parte das reivindicações dos movimentos
sociais, como o fim das proibições para proteção dos canais, da
formação de redes para transmissão em cadeia, da veiculação de
publicidade e das limitações de potência e alcance. O assessor especial
do gabinete pessoal do presidente Lula, Delcimar Pires, que coordenou o
GTI, garante que a proposta será encaminhada ao Congresso ainda este
ano. “Existe o compromisso de enviar logo que a eleição esteja
resolvida. Não foi encaminhada antes, porque, na avaliação em conjunto
com o ministro Hélio Costa, o presidente considerou que, até em função
do momento eleitoral, não seria conveniente”, explicou.

A Abraço considerou a proposta insuficiente e seus dirigentes não
acreditam em solução de curto prazo. Argumenta que, mesmo com o governo
cumprindo o prometido, a proposta dependerá do Congresso, que há mais
de 40 anos se curva, sistematicamente, aos interesses das emissoras
comerciais. Até porque grande parte dos congressistas é dona indireta
de meios de comunicação. Joaquim Carvalho acredita que o melhor caminho
para resolver o problema é pela via do Poder Judiciário. Para isso, as
entidades estão capacitando advogados e fazendo trabalho de
convencimento dos juízes de primeira instância. No fim do ano passado,
tiveram uma vitória importante. O Superior Tribunal de Justiça (STJ)
acolheu uma ação da Associação de Comunicação Comunitária Educativa e
Cultural Alegrete, que dirige a Rádio Popular FM de Porto Alegre.

A decisão garante o funcionamento dela até a obtenção de licença, pois
considera que o Ministério das Comunicações está desrespeitando o
devido processo legal, ao deixar de responder, em um prazo razoável, o
pedido de autorização feito pela entidade. O relator do processo,
ministro José Delgado, argumentou que “não se pode conceber que o
cidadão fique sujeito a uma espera abusiva que não deve ser tolerada”,
uma vez que cumpriu as formalidades legais exigidas e “espera já há
cinco anos, sem que tenha obtido uma simples resposta da
Administração”. A Advocacia Geral da União, em nome da Anatel, recorreu
ao STF. O processo está nas mãos do ministro Carlos Britto, que aguarda
parecer do Procurador Geral da República. “Se o governo tivesse um
sistema ágil de outorga, se as comunidades fossem atendidas
rapidamente, não haveria proliferação das rádios. Isso só acontece
porque existe um movimento de resistência. Não adianta fechar uma rádio
em um dia, no outro abre de novo. Fecha uma e abrem duas”, adverte o
diretor da Abraço.

Solução de emergência para a Heliópolis


Fechada desde julho, ela voltará ao ar com uma licença especial da
Anatel “para fins científicos ou experimentais”. O episódio, que levou
à interferência direta do presidente da República, fez o Minicom
desengavetar a solução de freqüência para as radios comunitárias da
cidade de São Paulo. Os primeiros avisos de habilitação devem ser
publicados ainda este ano.

Há 35 anos, os moradores da favela de Heliópolis lutam por um espaço no
solo de São Paulo. A segunda maior favela do Brasil e da América
Latina, na zona sul da capital, abriga 125 mil habitantes — mais da
metade crianças e jovens de até 25 anos, quase todos de origem
nordestina, que se espalham por uma gleba do tamanho de 2 mil campos de
futebol (1 milhão de m²).

Depois de décadas de luta, o espaço das primeiras moradias definitivas
começa a se tornar realidade com o Projeto de Verticalização de Favelas
da Prefeitura de São Paulo. Mas outra dura batalha por espaço está em
curso há quase 15 anos: a luta por um pedaço do ar.

Conhecida internacionalmente por seus programas sociais, a Rádio
Heliópolis está fechada desde 20 de julho, porque, apesar de ter
nascido em 8 de maio de 1992, e de ter solicitado autorização para
funcionar legalmente há sete anos, por intermédio da Unidade de
Núcleos, Associações e Sociedades dos Moradores de Heliópolis e São
João Clímaco (UNAS),  ainda não foi devidamente licenciada pelo
governo federal. O problema é que o “ar” de São Paulo está totalmente
congestionado pelas emissoras de rádio comerciais. Mas a Lei das Rádios
Comunitárias, aprovada em 1998, garante um canal de FM para emissoras
de baixa potência vinculadas a entidades comunitárias em todas as
cidades do país.

Como o governo não arrumava um jeito para cumprir o estabelecido na
legislação, a Rádio Heliópolis foi arrumando um cantinho no espectro de
freqüência modulada da capital para atender sua comunidade. Por causa
de interferência em emissoras comerciais, teve de mudar duas vezes de
canal. Há quatro anos, a rádio, que surgiu para ajudar as famílias a
localizar suas crianças perdidas no complexo de ruelas da favela, vinha
transmitindo em 97,9 MHz.


Tocando músicas, dando informações sobre as lutas, anseios e conquistas
da comunidade e passando dicas sobre saúde, higiene, alimentação e
direitos trabalhistas, a rádio cumpre um importante papel de
organização social. Em média, cerca de 300 ouvintes telefonam por dia
para participar dos programas ou pedir músicas. “Que lei é essa que
impede você de explicar aos cidadãos que eles têm direitos e têm o
dever de lutar pelos direitos que têm?”, questiona o coordenador de
programação da Rádio Heliópolis, Gerônimo Barbosa, o Gerô. Todas as
vezes em que foi ameaçada de fechamento pela Polícia Federal, recebeu
ampla solidariedade, inclusive de autoridades. Dois anos atrás, quando
outra denúncia de interferência motivou nova tentativa de fechamento
pela Anatel, o governo federal prometeu dar uma solução, a exemplo do
que havia sido feito com a Rádio Favela de Belo Horizonte, transformada
em rádio educativa. A solução não veio e no dia 20 de julho deste ano,
às 10h45, a PF e a Anatel lacraram o transmissor da Rádio Heliópolis.

No mesmo instante do fechamento, uma corrente de apoios se formou. De
boca em boca, o assunto chegou aos ouvidos do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva: “Mexeram com a mãe das rádios comunitárias”. A ordem
superior foi para resolver o assunto “imediatamente”. No dia seguinte,
o gerente geral de administração de planos e autorização de uso de
radiofreqüência da Anatel, Yapir Marotta, telefonou para Gerô e
apresentou a solução. A emissora deveria se vincular a uma universidade
com o objetivo de executar um “Serviço Especial para Fins Científicos
ou Experimentais”. Ficou acertado que o convênio seria com a
Universidade Metodista, de São Bernardo do Campo (SP). Mas até o início
de outubro a papelada ainda não havia ficado pronta. Para efeitos
formais, ela irá testar a possibilidade de utilização do canal 199
(freqüência 87,7 MHz), que, em princípio, deveria funcionar como
proteção para o canal 198 (freqüência 87,5 MHz), que a Anatel liberou
para os municípios da Grande São Paulo em abril, depois de uma luta de
oito anos.

Entidades que defendem a democratização dos meios de comunicação estão
divididas a respeito da solução. Umas consideram que foi uma vitória
decorrente da pressão feita sobre a Anatel e o governo federal pelo
movimento “Cadê Canal Pra Capital?”. Outras, escaldadas por um
histórico de embromação, suspeitam que a solução visa colocar as rádios
comunitárias para fora do dial. O superintendente de comunicação de
massa da Anatel, Ara Minassian, assegura que os testes feitos até agora
são confiáveis. Embora o número da freqüência não apareça no dial de
muitos aparelhos, o sinal é captado perfeitamente por qualquer modelo
de rádio, exceto um que é próprio dos veículos Mercedes, que não são
bem o público-alvo das rádios comunitárias. “Ninguém tem de trocar de
rádio para pegar uma radio comunitária FM no 198. A maioria dos modelos
portáteis não tem todas as freqüências no dial. O ouvinte se habitua a
localizar”, sustenta.


A solução técnica da Anatel estava oficializada desde abril de 2004,
mas o Ministério das Comunicações vinha protelando a abertura dos
processos de autorização para funcionamento das rádios. A pressão tinha
começado cinco anos antes, quando a Oboré, uma empresa de comunicação
popular parceira da Rádio Heliópolis, e a Escola de Comunicações e
Artes da USP organizaram o debate “Direito Constitucional e
Radiodifusão Comunitária”. A partir de um parecer do juiz federal Paulo
Fernandes Silveira, que já tinha concedido mais de cem liminares para o
funcionamento de rádios comunitárias na região de Uberaba, no Triângulo
Mineiro, foi iniciada uma luta para mudar o foco da artilharia na
direção do poder público municipal por meio do movimento “Cadê Canal
para a Capital?”. Silveira considera o município um ente pleno da
federação, com direito de conceder autorizações para o funcionamento de
rádios comunitárias.

O movimento das rádios comunitárias de São Paulo teve sua grande
vitória com a aprovação da Lei 14.013, que estabelece a autonomia da
prefeitura da capital para disciplinar a exploração do serviço de
radiodifusão comunitária no território paulistano. Embora esteja sendo
contestada judicialmente pela Abert, a Lei Municipal foi determinante
para pressionar o governo federal a liberar o canal das comunitárias em
São Paulo. O Minicom informou aos representantes do movimento “Cadê
Canal para a Capital?” que os primeiros avisos de habilitação para
ocupação dos canais comunitários da Grande São Paulo devem ser
publicados ainda este ano. Falta apenas selecionar, entre as 308
entidades que estão pleiteando um canal, aquelas que realmente prestam
serviços comunitários. A Rádio Heliópolis certamente estará na lista
para, finalmente, legalizar o seu pedacinho de ar.


*Colaboraram Lia Ribeiro Dias e Verônica Couto