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O maravilhoso (e preocupante) mundo
de todas as coisas plugadas
Foi o tempo em que a tecnologia conectava pessoas a máquinas. Agora, as conexões são de máquina para máquina, sem intervenção humana. É a chamada internet das coisas. Que começa a propiciar incríveis facilidades. Mas também gera um enorme volume dados sobre hábitos e preferências de cada um. Que bom! E que perigo!
Texto Áurea Lopes | Ilustração José Américo Gobbo
ARede nº 97 – março/abril de 2014
Foi o tempo em que a tecnologia conectava pessoas a máquinas. Agora, as conexões SÃO de máquina para máquina, sem intervenção humana. É a chamada internet das coisas. Que começa a propiciar incríveis facilidades. Mas também gera um enorme volume dados sobre hábitos e preferências de cada um. Que bom!
E que perigo!
Em 1942, cerca de cinco anos antes de alguém apertar o botão que ligou o Eniac, primeiro computador a funcionar na face da Terra, Isaac Asimov elaborou as famosas Três Leis da Robótica:
1ª Lei – Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei – Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a 1ª Lei.
3ª Lei – Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a 1ª ou 2ª Leis.
O escritor e bioquímico russo já antevia (e, pelo jeito, temia) a era da Internet das Coisas. Uma era que parecia pertencer a um futuro distante. Mas que começa agorinha, nos dias de hoje, quando surgem, em todos os cantos do planeta, os mais diversos dispositivos eletrônicos capazes de ter “inteligência” e “agir” por conta própria, comunicando-se com outros dispositivos da mesma natureza. Como a geladeira lançada pela Brastemp – à venda no Brasil – que controla o prazo de validade dos alimentos e avisa o proprietário, por celular, quando acaba algum produto. Ou como a persiana Jalousier, que abre, fecha e regula o ângulo das palhetas de acordo com a hora do dia, a posição do sol, a temperatura ambiente do cômodo, além de, nas noites de lua cheia, enviar um simpático torpedo convidando seu dono a apreciar “o belo luar”.
Os “robôs que obedecem as ordens de seres humanos” imaginados por Asimov existem, de verdade. Podem ser também os automóveis que a Ford logo, logo vai colocar no mercado: detectam as vagas disponíveis nas ruas e estacionam por controle remoto, literalmente sozinhos, caso o condutor prefira acompanhar a manobra do lado de fora. Mais um caso concreto? O último modelo de escova de dentes da Oral B, que vai custar algo em torno de R$ 775 para mostrar onde a faxina não está lá essas coisas, e, como se não bastasse, dedurando o dono ao enviar dados sobre suas práticas e condições de higiene bucal direto para o celular do dentista.
Daria para preencher todas as páginas desta revista com exemplos do que os entendidos no assunto estão chamando de Internet of Things (IOT), ou Internet Of Everything (IOE). Asimov dificilmente poderia imaginar tantas máquinas com “vontade própria”. Muitos equipamentos, dispositivos e aplicativos desenvolvidos dentro do conceito IOT (vamos usar essa porque ainda não criaram uma sigla em português) já estão em operação; outros estão tomando forma nos laboratórios de empresas e universidades; e não dá para calcular quantos alçam voo livre pelas nuvens de dados, decolando de hackerspaces, a partir de projetos colaborativos (ver página 14).
A internet das coisas – que não é uma internet diferente, mas a mesma internet à qual se conectam recursos (as coisas) – avança em todas as frentes: consumo pessoal, automação residencial, logística, saúde, agricultura, indústria, serviços públicos. E não se trata mais de interligar um homem a uma máquina. Cada vez mais, aumenta a conexão máquina a máquina (M2M). Mais que isso, com a evolução das chamadas cidades digitais (ver página 12), acentua-se a complexidade da arquitetura dessas conexões. A seca tá brava? Sensores de temperatura falam com celulares, que falam com computadores em um centro de processamento de dados, que falam com um sistema automatizado de irrigação, que fala com uma rede de mangueiras, que “se abrem” sozinhas para molhar a plantação. Chegando em casa de madrugada? O celular fala com o sistema operacional doméstico, que fala com o sensor de luz, que acende a lâmpada da garagem. E por aí vai.
Os aplicativos IOT brotam em escala exponencial. Porque a tendência, de acordo com Yasodara Córdova, analista de projetos do W3C Brasil, “é termos uma infraestrutura cada vez mais barata, nuvens de dados agregando informações de diversos serviços, por meio de dispositivos móveis que popularizam rapidamente as conexões pessoais. Um dado que antes era só de uma fonte passa a ser de uma rede”. Tânia Regina Tronco, pesquisadora do CPqD, acrescenta a essa receita de crescimento da IOT o barateamento de chips, de sensores, e do desenvolvimento de aplicações com base na tecnologia RFID.
A serviço de quem mesmo?
Alguém tem ideia do volume de informações geradas por toda essa conectividade distribuída? Ou de qual é o valor desses registros sobre hábitos e preferências de pessoas, organizações, empresas, órgãos públicos? Ativista e pesquisador do mundo digital, Felipe Fonseca, coordenador do núcleo Ubalab, laboratório experimental em Ubatuba (SP), e integrante do Metareciclagem, acrescenta mais algumas perguntinhas intrigantes: “Quem vai ter acesso ao Big Data, consequência da IOT? O tratamento desses dados vai subsidiar políticas públicas, melhorar a gestão das cidades, a qualidade de vida das pessoas? Ou servirá para as empresas abordarem consumidores e para governos exercerem controle sobre a sociedade?”.
Fonseca exemplifica: sensores de uma rede elétrica municipal vão gerar dados úteis para tomadas de decisões que impactam gastos públicos. Mas quem vai ter acesso a esses dados é a administração, ou as empresas fornecedoras de serviço. “Grande parte dos atores envolvidos nesse cenário só quer saber quanto dinheiro ou quanta exposição na mídia as novas tecnologias vão gerar”, acrescenta.
É importante os cidadãos utilizarem a tecnologia como instrumento político, acredita André Lemos, professor da Universidade Federal da Bahia. Ele escreve, na Revista de Administração de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas: “As cidades inteligentes podem ajudar o poder público a reconhecer problemas em tempo real, e o cidadão a produzir informações, ajudando a mapear, discutir e enfrentar essas dificuldades”.
Outro debate que ganha mais força, quanto mais as coisas se conectam, diz respeito a privacidade, segurança, monitoramento e vigilância – motivos de preocupação de movimentos sociais (já faz tempo) e de governos (recentemente despertados pela explosão da bisbilhotagem estadunidense). Com a IOT, esses problemas ficam ampliados, avalia Yasodara, do W3C. Não apenas pelo aumento da quantidade de informações associadas, em rede. Mas porque os sistemas privados, comerciais onde rodam esses dados são fechados. “Você não sabe o que está dentro do código. Ninguém garante que os dados não vão ser usados. Imagine uma aplicação que hoje é absolutamente possível: um celular com sensores para detectar temperatura do seu corpo, batimentos cardíacos, pressão sanguínea. Esse aparelho pode monitorar você 24 horas por dia e enviar os dados, por exemplo, para a operadora do seu plano de saúde, que vai te oferecer serviços adicionais”.
Lemos, no mesmo artigo citado acima, também questiona a serviço de quem estará a IOT. “O uso de aplicativos, sensores e mapas pode ajudar no trânsito, mas uma solução mais viável é o incentivo ao uso da bicicleta. A importância dos negócios e da inovação tecnológica nos projetos das cidades inteligentes pode levar à privatização do espaço público, à mecanização do cidadão em função da estrutura burocrática, ou à adoção de soluções automatizadas para o espaço urbano que atendam mais aos interesses de empresas do que da população”.
Por isso, advertem os ativistas da democratização do acesso às TICs, é fundamental estabelecer políticas de proteção de dados e apostar em padrões abertos para a IOT. Yasodara, da W3C, aponta duas medidas urgentes: criar protocolos para a privacidade e lutar pela neutralidade da rede. “Estes são alguns pontos-chave para garantir segurança e liberdade na internet. Mas a sociedade precisa estar sempre alerta, não podemos esquecer que a tecnologia nada mais rápido que a legislação”, diz ela.
Os padrões abertos, que representam o conhecimento livre, disponível nas redes, propiciam saltos tecnológicos consideráveis, destaca Felipe Fonseca: “A inovação tecnológica tipicamente brasileira, com um quê da sensibilidade criativa da gambiarra, pode ser fomentada em polos de inovação baseados no conhecimento livre. Possibilita que o desenvolvimento de tecnologias dialogue com as diferentes realidades locais. A inovação tecnológica precisa ser não somente lucrativa, mas também relevante”.
Para começar, uma sopa de letrinhas
Essas siglas, usadas na nossa língua, são originadas de palavras em inglês. E ainda não existem correspondências em português – pelo menos, ainda não tão utilizadas.
M2M – Machine To Machine / conexão máquina a máquina
RFID – Radio-Frequency Identification / identificação automática através de sinais de rádio, recuperando e armazenando dados remotamente por meio de tags
Tag – etiqueta / dispositivo para identificação e rastreamento
IOT – Internet Of Things / internet das coisas
IOE – Internet Of Everything / internet de tudo, em uma referência a coisas e pessoas
EPC global – Electronic Product Code global / padrão de reconhecimento pelo qual o objeto identificado tem um número único em qualquer lugar do planeta
DIY – Do it yourself / faça você mesmo, movimento que prega a cultura de que pessoas comuns podem construir, consertar ou modificar coisas.
CPqD na vanguarda
O Laboratório de Estudos e Aplicações em RFID do CPqD, criado em 2011, é um dos oito centros de testes do mundo acreditados pela GS1 EPC global, órgão internacional dedicado ao desenvolvimento do uso da tecnologia de identificação por radiofrequência em redes de negócios. Os produtos com esse padrão de reconhecimento têm um número único de identificação em qualquer lugar do mundo.
Tânia Regina Tronco, pesquisadora do CPqD, explica que atualmente os estudos dos pesquisadores buscam associar as tags RFID a sensores, que se comunicam com outros sensores, formando uma rede. Uma das soluções mais recentes desenvolvidas pelo CPqD, por exemplo, permite a gestão completa de rastreamento e identificação automática de itens, desde o momento do recebimento de insumos até a expedição de produtos acabados.
As Cidades do futuro já existem no presente
As cidades inteligentes impulsionam a IOT na área pública. Sistemas de gestão e monitoramento com base em dispositivos conectados em rede vão melhorar a qualidade dos serviços, reduzir custos e deveriam abrir portas para o exercício da cidadania. Um exemplo de ponta vem da Espanha. Uma rede de 12 mil sensores instalada na cidade de Santander, em 2010, mudou a vida dos moradores. Os dispositivos foram implantados nas calçadas, em luminárias, lixeiras e ônibus. Coletam informações como localização dos coletivos e quantidade de lixo nos recipientes. Os dados, tratados em um laboratório da Universidade de Cantábria, estão disponíveis em tempo real. O serviço de coleta fica sabendo, por exemplo, quais lixeiras devem ser esvaziadas.
O sistema também diminui a luz em locais onde não há circulação de pessoas, aciona irrigadores quando a umidade do solo baixa, emite sinais de alerta quando a poluição atmosférica ou sonora chega aos limites estabelecidos pelo poder público. Sensores de som captam uma sirene de ambulância e abrem os faróis da via onde está o veículo. Os cidadãos, pelos celulares, encontram vagas para estacionar o carro ou checam promoções ao passar por uma loja de roupas. Se há um buraco na calçada, basta fotografar e enviar o arquivo à administração municipal – que recebe a identificação exata do local, por geoprocessamento.
Prevista para ser fundada em 2015, a cidade de Songdo, na Coreia do Sul, está sendo construída “com informações abertas”. A internet deverá conectar praticamente tudo e os cidadãos terão acesso a informações públicas, em tempo real, para saber sobre poluição do ar ou engarrafamento do trânsito. Até garrafas pet terão sensores para registrar se os moradores jogam o plástico no cesto de reciclagem apropriado. Quem fizer o descarte correto, ganhará desconto no imposto. As placas dos veículos serão conectadas a um sistema que vai controlar o intervalo de tempo dos semáforos, auxiliando o fluxo.
Aqui no Brasil, o sistema de ônibus de Curitiba (PR) é um bom exemplo de como a tecnologia pode ser aliada na gestão da mobilidade urbana. A cidade foi a primeira do mundo a conectar o transporte público à banda larga móvel. Os 2,5 mil ônibus que circulam na capital paranaense são monitorados na velocidade e no tempo parado nas estações. Estão sendo colocados painéis eletrônicos nos pontos de ônibus, com previsão de chegada – os dados também estarão disponíveis para aplicativos como o Moovit e o Transit, do Google Maps, para que o cidadão acompanhe seus ônibus pelo celular.
Porém, no geral, ainda falta muito para conectarmos. Além de Curitiba, o que temos de mais avançado são iniciativas como a de Porto Alegre (RS), que capta informações de sensores distribuídos pela cidade. Os ônibus são monitorados por GPS e alguns têm sinal de WiFi aberto. Ou o sistema de Belo Horizonte (MG), para monitoramento da iluminação pública, por meio de sensores que analisam a vida útil dos equipamentos públicos.