Em Nova Olinda, na região do Cariri, a Fundação Casa Grande espalha a cultura cinematográfica na cidade.
João Luiz Marcondes
A região do Cariri, no sertão cearense, é considerada um oásis de verde e água em meio ao clima árido e seco que a rodeia. Pois é no centro desses ventos frescos que desponta um centro de conhecimentos, de inspiração francamente iluminista, numa localidade cuja principal atividade econômica é retirar areia do solo para fazer cimento e material de contrução civil.
O nome da cidade é Nova Olinda, com 15 mil habitantes, a 40 quilômetros de Juazeiro do Norte – famosa pelas romarias do padre Cícero Romão Batista. Esta, por sua vez, dista 540 quilômetros de Fortaleza, a capital do estado. O grande motivo de orgulho dos novaolindenses atende pelo nome de Fundação Casa Grande – que reúne crianças entre 6 e 20 e poucos anos.
A Casa Grande é a casa de Samuel Macedo, de 21 anos. Filho de uma professora de escola pública e de um pedreiro, o rapaz discorre com desenvoltura sobre filmes de Luchino Visconti e Roberto Rosselini (os italianos neo-realistas são seus preferidos). Também é fã de cinema iraniano. “A realidade deles é parecida com a nossa”, compara.
Foi Samuel o responsável pela introdução do vídeo na Casa Grande. Certa vez, há mais de dez anos, uma equipe de uma produtora de TV chegou a Nova Olinda para fazer um documentário. Um dos cinegrafistas deu a câmera na mão do garotinho e pediu que ele filmasse. Qualquer coisa. A experiência foi mágica. “Eu quero fazer isso!”, decretou o pequeno Samuca. “Desde então, não parei de aperrear Alemberg, até que ele conseguisse o equipamento.”
Alemberg é Alemberg Quindins. É de sua família o imóvel que veio a se tornar a Casa Grande — no início dos anos 90. Um casarão aprazível, de várias salas, quartos, quintal, transformados em biblioteca, rádio comunitária, TV, teatro, cinema, sala de internet, parque de diversões. E museu do homem do Cariri — os ancestrais dos novaolindenses. A região é de grande interesse arqueológico — há cerâmica indígena em fartura. Além de conter a maior concentração mundial de fósseis do período Cretáceo.
Alemberg foi criado em Nova Olinda (nasceu no Tocantins). Pequeno, encantou-se com o cinema de Mazzaropi e a personagem Jeca Tatu. Fez seu primeiro cinema em casa, com uma caixa de papel e quadrinhos. Sempre ligado às artes, tornou-se músico e fez trabalhos de reconstituição de sonoridades da região com a mulher, a arqueológa Roseane. Fundou a Casa Grande, inicialmente como museu.
100 canal
Vieram as oficinas — de cinema, de música, de quadrinhos. Os projetos, já como organização não-governamental, foram ganhando excelência e atraindo a atenção de investidores, tais como Instituto Kellogg, fundações como a Avina (Suiça) e Interamericana (EUA). No Brasil, do Instituto Ayrton Senna e do Criança Esperança. A Casa Grande também é um Ponto de Cultura, do Ministério da Cultura. O incentivo governamental garante o projeto 100 canal.
Depois de terem uma TV comunitária lacrada por determinação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), surgiu o nome, trocadilho com “sem canal” e referência ao lendário e saudoso “Canal 100” — noticiário em preto e branco sobre futebol, que passava nos cinemas antes dos filmes começarem, há cerca de duas décadas. A vinheta do 100 canal é a mesma do Canal 100, só que interpretada pela Bandinha de Lata, grupo de crianças da Casa, que toca com intrumentos rudimentares (latas, por exemplo).
Os filmes produzidos na Casa são curta-metragens, normalmente sobre a região, o povo, as feiras. São exibidos em centros culturais do Banco do Nordeste, em Juazeiro do Norte e Fortaleza. E também nas sessões locais de cinema, no teatro Violeta Arraes, homenagem à irmã de Miguel Arraes e mulher de Pierre Gerveseau, que, à época da ditadura militar, recebeu exilados brasileiros, como Caetano Veloso, em sua casa em Paris. Ela é a madrinha da Casa. “Queremos retormar a tradição das cidades do interior”, vaticina Alemberg. Todos os domingos há sessões matutinas para crianças e noturnas para adultos. Pouco antes do filme começar, a rádio comunitária, amplificada em caixas de som no centro da cidade, toca um sinal que todos já conhecem. É hora de ver a telona. As sessões são lotadas. “O ingresso é ter interesse”, completa o músico fundador.
A DVDteca da Casa Grande é de fazer inveja a 99% das locadoras paulistanas. Há obras completas de todos os grandes diretores da história do cinema: Bergman, Fellini, Glauber Rocha, Truffaut, Goddard, Kubrick, Kurosawa. Além, é claro, de todos os lançamentos comerciais. O responsável pela área é João Paulo Maropo, de 23 anos. Também filho de pedreiro e de uma dona-de-casa (agora dona Toinha também é dona-de-pousada, mais um “efeito Casa Grande”), ele turbina o cineclube da Fundação. Conhece a fundo a obra do cineasta Andrei Tarkovski, mas admite não ter entendido todos seus filmes. Também pudera, o russo é autor, por exemplo, do complicadíssimo “Solaris” (1972).
“A Casa pensa Nova Olinda dentro do mundo”, explica Alemberg. “Não queremos, necessariamente, formar cineastas, mas desejamos que o dono da padaria tenha uma visão de mundo própria e capacidade crítica”. Quem toma conta da casa é a meninada. Eles controlam os gastos operacionais, cuidam dos equipamentos, caríssimos — ilhas de edição e computadores Macintosh. Qualquer um pode chegar na Casa Grande às oito horas da noite e ver um garoto de 13 anos controlando um estúdio de rádio. Alemberg aparece aos finais de semana, organiza os conselhos e dá algumas broncas que surtem efeito. “É uma gestão infanto-juvenil”, conclui.