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Um grande passo para a internet livre
A aprovação do Marco Civil da Internet foi um momento histórico para a garantia dos direitos fundamentais dos internautas no brasil.
Mas a luta para manter a rede aberta, democrática e livre ainda tem vários enfrentamentos pela frente.
Texto Lia Ribeiro Dias*
ARede nº 98 – maio/junho de 2014
O timimg não poderia ser mais perfeito. E o governo trabalhou ativamente para isso. Aprovado pelo Senado Federal no final da tarde do dia 22 de abril, o Marco Civil da Internet (MC), que tramitou por dois anos e meio na Câmara dos Deputados, foi sancionado no dia seguinte pela presidente Dilma Rousseff, durante a abertura do NETmundial, encontro multissetorial global que reuniu 869 delegados de 79 países em um hotel em São Paulo (SP). Simultaneamente, a sociedade civil reunida no Centro Cultural São Paulo, durante a ArenaNetmundial, recebeu a aprovação do MC com palmas, palavras de ordem e muita alegria. Afinal, da construção coletiva do texto à aprovação foi uma longa caminhada e muita luta. A Arena foi um dos 33 hubs instalados pelo NETmundial em 23 países para acompanhar os debates. Em uma videoconferência realizada com os ativistas, Julian Assange, criador da rede WikiLeaks, endosssou a comemoração: “Apesar das concessões feitas para obter a aprovação, é importante estabelecer essa lei em um país como o Brasil, que está encontrando o seu caminho no mundo”.
Beatriz Tibiriçá, diretora do Coletivo Digital e uma das mais ativas militantes em defesa do MC, avaliou a disputa pelo marco civil da internet como o primeiro enfrentamento pra valer dos detentores do poder, de fato: “Nós do movimento pelo Marco Civil já soubemos calibrar nossas ações de forma a somar e sustentar cada confronto, dificultar os retrocessos e consolidar as nossas conquistas. Tivemos maturidade suficiente para entrar na conta das negociações e avançar juntos. Que sirva de encorajamento para o governo ousar e para nós, da sociedade civil, continuarmos avançando de forma madura na questão da revisão da anistia, da regulação da mídia, da reforma política, da desmilitarização das polícias, do novo marco regulatório das relações com as Organizações da Sociedade Civil etc., etc. e mais alguns definitivos etceteras. Aprendendo a avançar de forma coletiva, pactuando o avanço, construímos a nova democracia!”
Saudado como a mais ampla legislação de direitos na internet por porta-vozes de diferentes países, o Marco Civil se difere de várias outras legislações nacionais. Enquanto a maioria das legislações relativas à internet estabelecem punições a infrações cometidas na rede, de pedofilia a crimes financeiros, passando pelo desrespeito ao direito autoral, o MC tem o mérito de definir os direitos de forma ampla, como respeito a privacidade, proteção de dados, isonomia no acesso às informações, neutralidade da rede, liberdade de expressão. Há outras legislações também afirmativas, porém mais focadas na neutralidade da rede, como as do Chile, da Colômbia e da Holanda.
Se é um fato histórico que tem de ser reconhecido como tal, a aprovação do Marco Civil da Internet não significa que a luta pela defesa de uma rede livre, aberta e democrática tenha chegado ao fim. No Brasil, o Marco ainda tem de passar por regulamentação para que sejam definidos aspectos como a obrigatoriedade de guarda dos logs. A lei só entra em vigor em 23 de julho.
Em outros países, porém, a definição dos direitos na internet ainda está muito longe de um consenso. No embate, questões econômicas (nos países desenvolvidos, com uma forte indústria da informação) e questões políticas (tanto nos países onde há cerceamento à liberdade de expressão como naqueles que são vítimas de pressões e monitoramento por parte dos Estados Unidos, em especial).
Nos debates do NETmundial, que reuniu representantes da sociedade civil, da comunidade científica, do empresariado e de governos, as contradições se refletiram no texto do documento final. Por pressão dos Estados Unidos e da Comunidade Europeia, a neutralidade da rede – ou seja, o direito de que o tráfego dos dados seja tratado com isonomia e sem prioridades – ficou fora do texto final. Foi uma evidente derrota do Brasil, que trabalhava pela inclusão do conceito no documento. O assunto entrou apenas na lista dos pontos a serem tratados no futuro.
Também se avançou pouco na questão relativa à vigilância em massa, tema que ganhou corpo a partir das revelações de Edward Snowden, ex-analista de segurança do governo estadunidense, de que a agência de segurança nacional daquele país (NSA, na sigla em inglês) espionava massivamente dados na internet de cidadãos no mundo todo. E inclusive de chefes de Estado, entre os quais a presidente Dilma Rousseff e a chanceler alemã Angela Merkel.
Os reiterados pedidos feitos por representantes de parte dos governos e da sociedade civil para que o documento final coibisse tais práticas sucumbiram ao peso dos Estados Unidos na mesa de negociações. O texto aprovado é diplomático, não condena enfaticamente a espionagem nem a bisbilhotagem de dados alheios por qualquer governo. Ressalta, apenas, que a prática de coleta de dados ameaça a confiança na rede mundial de computadores.
Se houve pedidos públicos e reiterados não atendidos, houve um que não veio a público e acabou contemplado no documento final, a Declaração Multissetorial de São Paulo. É o que trata dos direitos autorais. Por pressão da França e dos EUA, o item relativo à liberdade de informação e acesso à informação ganhou o seguinte adendo: “consistente com o direito de autor e criadores, tal como estabelecido em lei”.
O texto final decepcionou a sociedade civil. Mas foi defendido por Virgílio Almeida, chairman do NETmundial e secretário de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação, como o texto possível. “Esse documento não pode ser interpretado como vinculante. É uma ampla convergência de ideias, percepções, sugestões e visões, que vêm de intervenientes diferentes em partes diferentes do mundo”, afirmou.
Independentemente de restrições ao texto do documento final, o evento foi comemorado pelos organizadores como um sucesso, pelo fato de ter sido construído coletivamente, com a participação de todos os atores (sociedade civil, empresariado e governos), mesma base que se pretende para a nova governança na internet. Apesar de seu caráter democrático, representantes de parte da sociedade civil e de alguns governos reclamaram da forma de deliberação do Conselho de Alto Nível, responsável pelo documento final, que consideraram fechada. O representante da Rússia foi o mais duro: “Todas as decisões foram tomadas por um comitê especial e não conseguimos entender os princípios que levaram à sua criação”. Também mencionou que não entendeu os critérios para a seleção das contribuições e, como várias das contribuições apresentadas por seu país não foram incorporadas, informou que suas recomendações não seriam seguidas pela Rússia.
Papel da governança
Um grande embate se deu nas discussões do NETmundial, e deverá permear os debates futuros sobre a construção de uma nova governança mundial da internet – hoje nas mãos da Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (Icann), organização da sociedade civil com sede na Califórnia (EUA) e ainda hoje com contratos com o Departamento de Comércio daquele país. A questão é: qual deve ser a participação dos governos?
Há consenso, entre todos os países, de que a governança deve ser multissetorial (com os vários segmentos da sociedade representados). Mas não há consenso sobre a multilateralidade, ou seja, a participação de governos de diversos países. Os Estados Unidos não se manifestaram sobre essa questão no NETmundial, mas sua posição foi defendida pelo representante da Suécia, que refutou uma governança multilateral sob o argumento de que a governança na internet não pode ser distorcida pela presença de governos autoritários.
Já a Rússia, Bangladesh, França, Coreia, entre outros, pediram uma governança multilateral, com representação de países. Essa também é a posição brasileira. “O primeiro princípio é o da multissetorialidade. O segundo é da multilateralidade, pois a governança da internet não pode estar restrita a um país (os Estados Unidos) como é hoje”, afirmou o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. De acordo com ele, o governo brasileiro aceita até que a participação de governos seja minoritária em relação aos demais segmentos representados. E, em sua opinião, os representantes de governos devem participar de comissões que tratem da segurança da rede e da defesa dos direitos dos internautas, mas não devem se meter em questões técnicas de atribuições de números e domínios, de protocolos.
Embora o documento final do NETmundial seja genérico em relação aos próximos passos para o estabelecimento da nova governança na internet, enfatiza a necessidade de acelerar o processo de internacionalização da Icann. E mais importante: prevê que o processo de internacionalização da Internet Assigned Numbers Authority (Iana) aconteça até 2015, com participação de todos os segmentos e não apenas dos que participam da Icann (onde governos não estão representados, à exceção dos EUA). A função Iana é a única das atividades da Icann que ainda está vinculada a um acordo com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos.
O documento também menciona um ponto muito comentado no NETmundial pelos governos: o fortalecimento do Internet Governance Forum, que se reúne no âmbito da União Internacional das Telecomunicações (UIT). Embora o objetivo não seja transformar o IGF na entidade de governança da internet – alguns querem que seja mantida nas mãos da Icann internacionalizada e remodelada, outros preferem nova entidade –, os governos confirmam a necessidade de transformá-lo em um espaço de maior expressão.
Neutralidade da rede
Não foi por acaso que a neutralidade da rede ficou fora do documento final. Na mesma semana em que se realizava o NETmundial em São Paulo, a Federal Communications
Commission (FCC), agência reguladora do setor de telecomunicações dos EUA, anunciou que dia 15 de maio iria publicar novas regras da internet para consulta pública. As novas regras, que quebram o princípio da neutralidade da rede, vão permitir aos provedores de acesso à internet – ou seja, as operadoras de telecom como a Comcast e Verizon, que atuam nos EUA – cobrar preços diferenciados de empresas de conteúdo, como Netflix e Google, se esses clientes quiserem mais capacidade da rede para suportar seus serviços.
A guinada da FCC, que sempre defendeu a neutralidade de rede, se deu em função da decisão da Corte estadunidense que aprovou acordo entre a Comcast e a Netflix, pelo qual a Netflix se conecta diretamente à rede da Comcast, eliminando o armazenamento de seu conteúdo em datacenters de terceiros. Isso permite maior velocidade ao tráfego de seus dados, com sensível melhoria do acesso do usuário final ao seu conteúdo.
Não se sabe qual será o resultado da consulta pública, pois muitas organizações de defesa da liberdade na rede combatem o acordo pelos danos à neutralidade. O sociólogo Sergio Amadeu da Silveira, especialista no tema, concorda. “Se acordos desse tipo forem admitidos, teremos a proliferação de redes de alta velocidade para o grande capital e redes mais lentas para os que não têm recursos para pagar as vias pedagiadas das operadoras. Além disso, esse acordo incentiva que acessos a determinadas aplicações sejam dificultados ou facilitados a depender do jogo econômico dos agentes. Isso levará a internet a ser uma rede murada e completamente filtrada”, disse ele em entrevista à revista ARede.
Parte da corrente que defende o acordo e a mudança de posição da FCC, Carol Wilson, da Light Reading, diz que faz sentido para o negócio das duas companhias, uma vez que a Netflix responde por 1/3 do tráfego de dados dos Estados Unidos e necessita que seja adequadamente gerenciado. Mas faz sentido para os demais provedores de conteúdo e internautas? Carol não entra nesse debate, insistindo em que “o que Netflix e Comcast negociaram é onde e como o conteúdo de vídeo da Netflix entra na rede da Comcast, não como será tratado no acesso na última milha.” Para Amadeu, isso não importa, pois a prioridade ao tráfego já está dada na forma de interconexão, que custa mais caro por ser direta.
Gerenciamento aceitável
A questão sobre qual é o gerenciamento de tráfego aceitável sem comprometer a neutralidade da rede faz parte de um debate antigo, que tomou corpo com o avanço da internet. Gerenciamento de tráfego, lembra Demi Getschko, presidente do NIC.br, o braço executivo do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), sempre existiu. Determinados pacotes têm prioridade sobre outros por questões técnicas.
Os pacotes de vídeo passam na frente dos de e-mail, por exemplo, porque um delay maior compromete a qualidade de uma imagem enquanto não é decisivo para o entendimento do texto. Da mesma forma, mensagens relativas às emergências têm um cabeçalho que lhes dá prioridade. Mas até onde o gerenciamento pode ser admitido sem prejudicar o conjunto dos internautas? Essa é a pergunta que os reguladores tentam responder, entre duas fortes pressões: de um lado, as das operadoras de telecom, que querem cobrar mais dos provedores de conteúdo com volumes de tráfego que exigem cada vez mais investimentos em infraestrutura; de outro, as organizações de defesa da internet livre.
Depois de muitos anos de discussão, a União Europeia definiu o que entende como gerenciamento de tráfego aceitável. No dia 3 de abril, o Parlamento Europeu aprovou novas regras para o setor de telecom relativas à neutralidade da rede, ao fim da cobrança de roaming entre países europeus, à alocação de espectro e proteção aos consumidores.
O Parlamento entendeu que os chamados serviços especializados de telecom, que exigem gerenciamento de tráfego, só poderão ser oferecidos “se a capacidade da rede for suficiente para suportá-los em adição ao acesso à internet, e não em seu detrimento”. Foi também incluída a definição do que é o “serviço especializado”, que se refere à capacidade distinta, que não pode ser vendida ou usada como um substituto ao acesso à internet. Os serviços especializados poderão incluir aumento de velocidade, e priorizar serviços para as corporações.
O texto aprovado pelo Parlamento Europeu é mais restritivo à oferta de serviços especializados do que a proposta feita pela Comissão Europeia. E fica bastante aquém da liberdade de modelo de negócios reivindicada pelos agentes econômicos da internet.
A posição europeia revelou-se bastante equilibrada. E os países da Comunidade Econômica estão acompanhando de perto – assim como os demais países envolvidos na batalha da internet livre, caso do Brasil – as movimentações dos Estados Unidos. Porque, além das questões relativas à isonomia do tráfego, o acordo NetFlix-Comcast pode acirrar a concentração na internet, ainda mais porque os operadores também estão se tornando provedores de conteúdo.
Embora alguns especialistas brasileiros tenham expectativa de que a aprovação do Marco Civil da Internet tenha combustível suficiente para influenciar o debate que se dará nos EUA em torno da proposta da FCC, outros não são otimistas. O que está em jogo, afinal, é o modelo futuro da internet mundial, uma vez que os Estados Unidos concentram a maior parte do tráfego.
* Colaboraram Áurea Lopes, Lúcia Berbert e Marina Pita
Direitos e deveres na rede
O Marco Civil estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Foi sancionado sem vetos, apesar da forte campanha da sociedade civil para que a presidente Dilma Rousseff vetasse o artigo 15, que trata da guarda de logs. E deixa de fora questões polêmicas como o tratamento de conteúdos protegidos por direitos de autor. Conheça os principais pontos do MC: Neutralidade na rede Privacidade A lei exige que os provedores de conteúdo obedeçam às leis nacionais. As empresas que descumprirem as regras poderão ser penalizadas com advertência, multa de até 10% do faturamento, suspensão e proibição definitiva de atividades. Há possibilidade de penalidades administrativas, cíveis e criminais. Guarda de logs Os provedores de acesso a aplicações deverão manter os registros por seis meses. E poderão usá-los durante esse período se o usuário der permissão prévia. São proibidos de guardar dados excessivos que não sejam necessários à finalidade do combinado com o usuário. Liberdade de expressão (Lúcia Berbert) |
Navegando pelo mundo
Alguns países têm legislações que protegem direitos dos internautas. Nenhuma tão abrangente quanto o Marco Civil da Internet aprovado no Brasil. Neutralidade Holanda – a neutralidade foi aprovada em 2011. A lei deixa claras as exceções à regra. É possível gerenciar a rede, que em geral funciona sob o critério de melhor esforço, para evitar o congestionamento (todos os conteúdos e aplicações devem ser tratados da mesma forma), garantir a segurança e a integridade da rede, restringir a comunicação não solicitada, desde que tenha permissão do usuário ou por ordem judicial. É proibido vender pacotes por aplicações e usos. Colômbia – aprovado, em 2011, o Plano Nacional de Desenvolvimento 2010-2014, que contempla a neutralidade. O texto, porém, diz que os provedores de acesso podem “fazer oferta segundo as necessidades dos segmentos de mercado ou de seus usuários”, o que não será entendido como discriminação. Também prevê oferta de serviços de controle parental e o bloqueio de conteúdo ou aplicação a pedido do usuário. União Europeia – aprovada, em abril, a Regulação para o Mercado Único Europeu de Telecomunicações. Extingue o roaming de ligações entre países do bloco, e assegura a neutralidade. Serviços especializados são permitidos, desde que não haja prejuízo para os demais. Privacidade de dados Estados Unidos – está em debate o Ato de Proteção ao Compartilhamento de Ciber Inteligência (Cyber Intelligence Sharing and Protection Act, Cispa, na sigla em inglês). O projeto de lei permite que empresas privadas compartilhem informações de ameaças cibernéticas relacionadas à segurança nacional e crimes cibernéticos entre si, e com órgãos do governo, sem que possam ser processadas por seus clientes, pois agiriam de boa fé. Organizações civis temem o uso desses novos poderes para espionagem. Brasil – apesar dos avanços com o Marco Civil, é um dos poucos países sem regulamentação para garantir privacidade dos cidadãos. Um anteprojeto de lei foi desenvolvido pelo Ministério da Justiça. Os próximos passos para torná-lo lei ainda são desconhecidos. O provável é que passe para análise pelos demais ministérios antes de ser enviado à Câmara dos Deputados. (Marina Pita) |