Guerreiros ikpeng em defesa de sua cultura
Indígenas do Xingu usam a tecnologia para criar casa de cultura e preservar suas tradições
Tatiana Merlino e Igor Ojeda
ARede nº 86 – novembro de 2012
O PRIMEIRO CONTATO do povo Ikpeng com o homem branco aconteceu em 1952. Os irmão Villas-Bôas entraram na aldeia, mas tiveram de fugir para não morrer. Povo guerreiro e nômade, os ikpengs não gostavam de invasores. Pelos 12 anos seguintes, os sertanistas sobrevoaram a aldeia jogando presentes. Os indígenas acharam que o avião era um pássaro grande e barulhento, o qual chamaram de ïrïnkeni, e pensaram que o saco de rapadura – primeiro presente atirado lá dos céus – era o cocô do bicho, mas logo descobriram ser alimento. Em 1964, a dupla de sertanistas pousou o avião bem próximo à aldeia e conseguiu, finalmente, ser recebida sem ameaças.
De lá para cá, o povo Ikpeng cresceu. Quando os indígenas conheceram o homem branco, somavam apenas 56. Hoje, são quase 500 distribuídos por três aldeias no Parque do Xingu, norte de Mato Grosso. Com o passar dos anos e a crescente influência de outras sociedades sobre a aldeia, viu-se a necessidade de preservar a própria cultura. Entre 2009 e 2011, os ikpengs encontraram a forma ideal de fazer isso a partir da tecnologia dos brancos. A Associação Indígena Moygu Comunidade Ikpeng, em parceria com a organização não governamental Instituto Catitu – Aldeia em Cena, implementaram a Mawo – Casa de Cultura Ikpeng, um centro de formação, pesquisa, registro e divulgação de sua cultura.
“Eles queriam ter acesso à produção de imagens já feita sobre eles. A ideia era reunir na aldeia o que já se tinha produzido e acessar novos materiais. Como a gente já trabalhava junto em produção audiovisual, havia fotos, áudios, vídeos que não estavam disponíveis para eles. Então pensamos em um projeto mais amplo, um centro de produção, lugar de memória, com material recolhido de pesquisa Ikpeng”, conta Mari Corrêa, do Instituto Catitu e coordenadora técnica e pedagógica do projeto.
Por meio de um edital da Petrobras, conseguiram recursos para construir uma sede na aldeia que abrigasse o centro de produção, pesquisa e divulgação. Em seguida, com uma verba do Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas, do Ministério do Meio Ambiente, compraram os equipamentos que faltavam. A iniciativa teve ainda apoio financeiro da Embaixada da Noruega no Brasil.
Mais do que abrir seu acervo a pessoas de fora, a Mawo – Casa de Cultura Ikpeng tem como objetivo garantir o acesso do patrimônio cultural da comunidade tanto às atuais, quanto às futuras gerações. E uma das formas de fazer isso é estimular os jovens a utilizar tecnologia para pesquisar, produzir e valorizar o conhecimento acumulado. Os Ikpeng se preocupavam com o enfraquecimento da transmissão de sua cultura, causado pelo exílio em relação à terra de origem e pelo envelhecimento dos detentores desse saber, aliados às transformações sofridas pela comunidade em contato com a sociedade dos brancos.
“A conservação do patrimônio cultural Ikpeng vem sendo feita com sucesso porque a Mawo permite a continuidade, a atualização, a prática. Está longe de ser um museu. O projeto contribui com esse processo de transmissão e memória. Há um perigo de ruptura na transmissão, então os mais velhos ajudam”, garante Mari.
A Mawo tem um núcleo de produção audiovisual, um centro de documentação e pesquisa e um website. Promove oficinas de vídeo, captação de vídeo e iniciação digital, fazendo capacitação de técnicos e gestores culturais Ikpeng. A sede do projeto tem mais equipamentos, usados para pesquisa, produção, edição e projeção de filmes, assim como computadores, sala de arquivo e sala de produção audiovisual.
Para implantar o centro de documentação, a comunidade trabalhou integrada, com envolvimento de anciãos, professores e jovens Ikpeng. Os mais novos, escolhidos pelas lideranças da aldeia, participaram de uma oficina de iniciação digital. O acervo, todo digitalizado, reúne material histórico dos Ikpeng, pesquisas relacionadas a esse povo indígena e sua própria produção, como filmes, fotografias, áudios e desenhos. Ao todo, são aproximadamente 60 horas de vídeos, 20 horas de áudio, 140 documentos de pesquisas, monografias e relatórios, 1,2 mil fotos, 100 desenhos e seis livros.
Para facilitar o acesso a todo esse conteúdo, foi criada uma Base de Dados Digital (BDD). Com a preocupação de que esse instrumento refletisse o modo de pensar dos Ikpeng, a construção teve como base a língua local. Os mecanismos de busca, por exemplo, foram elaborados primeiramente em ikpeng para em seguida ser traduzidos para o português – até o momento, já são cerca de mil termos no idioma indígena. O sistema de gerenciamento utilizado é o ResourceSpace, que suporta recursos digitais de tipologias e formatos diversos.
“Foi um longo processo, porque queríamos um projeto que espelhasse a filosofia de trabalho dos Ikpeng, que eles tivessem para tocar. Por isso a ideia de uma base de dados digital feita na língua deles, com uma estrutura que refletisse a cosmovisão Ikpeng”, esclarece Mari. A Mawo – Casa de Cultura Ikpeng já colheu seus primeiros frutos: o CD Yumpuno Eremrï (Cantos do Yumpuno, como é chamado o ritual de passagem da infância para a vida adulta) e o documentário Som Tximna Yukunang (Gravando Som).