Centros, periferias e a propriedade intelectual

O DJ inglês Kode9 lançou o álbum Memories of the Future, em 2006, que serve de trilha sonora para o tempo presente. Ele retrata o estágio atual do dubstep, estilo de música eletrônica surgido nas periferias de Londres há alguns anos, que cresce globalmente sem alarde. E com ele, a perplexidade sobre como se dança o novo estilo, já que à primeira audição isso parece impossível. Disseminado em rádios piratas e nos chamados mixtapes (CDs caseiros distribuídos pelos próprios DJs), o estilo faz repensar a idéia de “periferia”, uma vez que, nesse caso, estamos falando da periferia de Londres. A palavra-chave é tecnologia digital, cada vez mais presente na cultura e na economia de periferias em todo o mundo.

Há uma percepção global de que a tecnologia permite desatar nós no acesso a informação, cultura e conhecimento. Ao mesmo tempo, estruturas formais de outros tempos, como a propriedade intelectual, buscam criar critérios de restrição cada vez maiores ao acesso. Uma alternativa a esse movimento é a utilização de licenças voluntárias, pelas quais autores e criadores em todo o mundo sinalizam à sociedade regras diferentes, mais abertas e flexíveis. Por exemplo, o Creative Commons, instrumento que permite um pacto social diferente em relação à propriedade intelectual aplicado à obra, baseado na utilização do sistema do direito que reconstitui a liberdade de acesso.

No entanto, o dubstep, acompanhado de outros fenômenos periféricos como o Kuduro, em Angola; o Kwaito, na África do Sul; o Tecnobrega, em Belém do Pará; a Champeta, na Colômbia; o Funk carioca; o cinema Nigeriano e outros, guardam pouca ou nenhuma relação com o Creative Commons. Com a apropriação da tecnologia, cenas culturais inteiras estão surgindo em circunstâncias sociais nas quais a idéia de “propriedade intelectual”, do ponto de vista de sua efetividade, simplesmente não se aplica ou produz efeitos, por ser desconhecida, inexeqüíveis ou simplesmente irrelevantes. Essa situação gera um outro tipo de cenário, em que o direito da propriedade intelectual não se faz presente, nos países pobres e ricos, no Norte e no Sul, no centro e na periferia.

O desrespeito à propriedade intelectual, antes visto como atributo dos países em desenvolvimento, passou a ser global. Camelôs das periferias de Manaus e estudantes universitários canadenses guardam em comum um semelhante desprezo à lei. O predicado de “pirata” migrou para os países desenvolvidos, onde cresceu e se multiplicou. Do YouTube ao Emule, iniciativas empresariais globais de distribuição de conteúdo digital passam a caminhar muito próximas à fronteira entre o legal e o ilegal, da mesma forma como uma metrópole sul-asiática.

Mas o olhar sobre esses fenômenos ainda é matizado. Ao observar o YouTube, consideramos primeiro a inovação, depois a ilegalidade. No caso das periferias e seus fenômenos criativos, destacamos a informalidade; a inovação vem depois. Se é possível almejar uma contribuição para as memórias do futuro, talvez seja uma expectativa de mudança desse olhar. Costurar na mesma linha o cinema nigeriano, o YouTube, o dubstep, o tecnobrega, o Kuduro, os camelôs e o Emule. Enxergando a inovação em todos, à luz da constatação de que os fatos mudaram. Sem olhares novos, não há como haver novas formas imaginação.


* Ronaldo Lemos é diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.