O mundo dos jogos digitais é um dos lugares onde a convergência entre cultura e tecnologia se realiza de forma mais potente e criativa. E é o segmento que mais cresce na indústria de entretenimento. Por isso, iniciativas governamentais, pequisas acadêmicas e eventos públicos têm estimulado o desenvolvimento local de games, a formação de profissionais para trabalhar nessa área e o debate sobre o papel cultural e econômico dos jogos. O Ministério da Cultura (Minc), pioneiro no incentivo público aos games, prevê, para o início de fevereiro, o lançamento do edital do Programa de Fomento à Produção e Exportação do Jogo Eletrônico Brasileiro — BRGames. Anunciado em novembro de 2008, o BR Games vai selecionar dez propostas de desenvolvimento de demos jogáveis. Diferente de um jogo completo, o demo jogável apresenta ao menos duas fases completas do jogo, para serem testadas por usuários, com todas as possibilidades interativas, narrativas e gráficas previstas no projeto.
Sete programadores independentes serão premiados com R$ 70 mil cada, e três empresas que já tenham um game lançado receberão R$ 140 mil cada. Os desenvolvedores pessoa física deverão indicar empresas para assinar conjuntamente os contratos. No caso das empresas, 80% dos recursos serão viabilizados por investimento público e 20% em contrapartida das próprias empresas. Uma banca vai acompanhar o desenvolvimento dos jogos e o pagamento será feito a cada etapa cumprida. Além do valor em dinheiro, os projetos escolhidos receberão apoio para entrar no mercado. Por meio do Festival Internacional de Linguagem Eletrônica (File), com data ainda não definida, será realizado um evento nacional para lançamento dos demos jogáveis.
A meta é auxiliar os vencedores a buscar financiamento no mercado externo para desenvolver seus jogos
O BR Games é sucessor do Jogos BR. Em suas duas edições (2004 e 2005/2006), o Jogos BR financiou a produção de 16 demos jogáveis e dois jogos completos. O programa cresceu: os recursos a serem distribuídos por esse edital são duas vezes maiores que o do Jogos BR 2005/2006, tanto em volume total — de R$ 500 mil para R$ 910 mil — quanto nas premiações, que passaram de R$ 35 mil para R$ 70 mil. A principal mudança em relação ao programa anterior é o foco. A meta do programa é auxiliar os vencedores a buscar financiamento no mercado externo para desenvolver seus jogos. “Fomentar o desenvolvimento de jogos completos é pouco eficiente como instrumento de captação de recursos. Um demo jogável tem maior potencial de gerar receita, por meio de parcerias com empresas do exterior”, explica Maurício Hirata, gerente de TV e Novas Mídias da Secretaria do Audiovisual do Minc. “O edital é um mecanismo de subsídio à coprodução internacional”, acrescenta André Penha, presidente da Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos, a Abragames, e sócio da Tec Toy Digital. A maneira de colocar em prática esse mecanismo é a seguinte: as empresas que ganharem os prêmios ficam obrigadas a participar de feiras internacionais de games. Parte dos recursos do prêmio será para isso. A Agência Brasileira de Promoção da Exportação e Investimentos (Apex) e a Associação para Promoção da Excelência do Software Brasileiro (Softex), que apoiam o setor desde 2006, vão assessorar a exposição dos demos vencedores no exterior.
No Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Cultura incorporou em 2008, como parte de sua política de fomento direto, projetos na área de mídias digitais, para apoiar o desenvolvimento de demos jogáveis. O valor de investimento no edital de jogos foi de R$ 231 mil e foram apoiados sete projetos. Como se tratou do primeiro edital em mídias digitais, as inscrições foram abertas para pessoas físicas e jurídicas, e o critério de seleção foi a qualidade e a viabilidade dos projetos apresentados. A secretaria recebeu 18 inscrições e os pagamentos já estão sendo realizados.
Os vencedores e projetos selecionados foram os seguintes: Jecripe, de Andre Luiz Brandão, um jogo de estímulo a Crianças com Síndrome de Down; Detetive Carioca, de Slotman, um jogo de aventura e mistérios sobre a história e a geografia do Rio de Janeiro; Guardião Indomável, de Rafael Cordeiro, jogo multiplayer composto por personagens robôs, que reforça a importância do time para a conquista da vitória; Letris, de Renan Claudino, jogo que trabalha com a construção de palavras e ampliação de vocabulário (letras do alfabeto aparecem na tela, na mesma forma que o Tetris, e o jogador deve formar palavras para não perder o jogo); Liga da Ilusão, de Bruno Vasconcellos, jogo baseado no RPG, que reconta fatos importantes da história do Brasil; França Antártica, de Erik Baptista, que reconta a fundação da França Antártica por meio das aventuras do índio Jeró; e Luz da Escuridão, em que Fernando Espírito Santo, através de um universo de magia e ficção, aborda temas culturais como diversidade cultural, religião e psicologia.
Sucesso de público
Os games começam a superar outros produtos culturais, como os filmes. No ano passado, o jogo Grand Theft Auto IV quebrou um recorde mundial ao faturar, na semana de seu lançamento, US$ 500 milhões. Existem mais jogadores de games do que espectadores de cinema, no mundo e no Brasil. Há salas de cinema em apenas 9% dos municípios brasileiros e as lanhouses (Veja reportagem na página 12) são uma alternativa de lazer em todos os lugares onde chega algum sinal de internet. Os games, apesar de terem perdido espaço para outros serviços, ainda são uma das maiores atrações nas lanhouses.
Há um acalorado debate público sobre violência dos games e sua implicação na vida dos jogadores — ou sobre as implicações da violência da vida na criação dos jogos. Enquanto o senso comum defende a censura e a proibição, pesquisadores como Luiz Henrique Magnani, mestre em Linguagem e Tecnologias pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), se debruçam sobre o enorme universo de possibilidades criado pelos games. Magnani escreveu para o site Game Cultura um artigo sobre o The Free Culture Game (Jogo da Cultura Livre), da Molleindustria. O jogo é uma disputa entre a cultura livre e o copyright, em que o jogador é desafiado a criar e compartilhar conhecimento. Em jogos de simulações, como este, raciocina Magnani, é possível criar novos mundos e mostrar que os arranjos sociais atuais não são os únicos possíveis. “Há uma significativa mudança discursiva quando se pensa em uma persuasão baseada em código-fonte. O jogador não apenas lê e interpreta algo que está previamente rígido, fixo. Exige-se dele escolhas e são essas escolhas que vão direcionar o que é apresentado em tela”, explica. “Afinal, os jogos atuais, ao se repetirem e repetirem valores vigentes, não estão sendo apenas pouco criativos. Estão contribuindo para a reprodução das idéias de que o russo é mafioso, a América Latina é um antro de corrupção, o expansionismo é a ferramenta para o sucesso de uma nação, a economia é baseada na troca de recursos ilimitados, a cultura só pode ser adquirida por meio do consumo e da compra…”, constata.
Proibição inconstitucional
Ronaldo Lemos, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, ao referir-se à proibição da venda de jogos como o Counter Strike no Brasil, diz que “a proibição de games é inconstitucional. Não se pode proibir uma forma narrativa. O que tem de valer é a classificação indicativa”, diz ele. Feita pelo Ministério da Justiça, a classificação indicativa informa sobre a natureza das diversões e espetáculos públicos, as faixas etárias a que não se recomendam, os locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada para crianças e adolescentes.
O preconceito é bem menor, hoje, do que era em 2004, quando o Sesc realizou o primeiro Game Cultura, festival de jogos eletrônicos. “Temos um grupo forte de terceira idade aqui no Sesc. Essas pessoas hoje têm computadores e querem aprender a jogar, para brincar com os netos”, conta Salete dos Anjos, coordenadora do Game Cultura. “Isso não acontecia, quando começamos”. O festival chegou a sua terceira edição em 2008/2009. Entre 29 de novembro e 13 de fevereiro, promoveu uma mostra de dez jogos, mais de 30 oficinas de linguagem eletrônica, mecânica e robótica, campeonatos, bate-papos, mesas redondas e palestras e uma exposição de jogos plásticos com figuras e objetos do artista Guto Lacaz.
www.gamecultura.com.br
www.gamecultura.org
www.cultura.gov.br/site/2008/11/20/governo-financia-producao-de-game