A saga do Marco Civil da Internet
Criminalização sai na frente de definição de direitos e disputa de forças arrasta votação da “constituição” da rede
Patrícia Cornils
ARede nº 87 – dezembro de 2012
A ORDEM natural das coisas, no mundo do Direito, foi invertida, no Brasil. O professor Ronaldo Lemos, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, explica: “o âmbito penal, que dever ser sempre ultima ratio, passou à frente do âmbito civil, no que se refere a questões da internet”. Na prática, aconteceu o seguinte: os crimes na internet foram regulamentados, dia 7 de novembro, por meio de dois projetos aprovados pela Câmara dos Deputados – o PL 84/99, relatado por Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que ficou conhecido como AI-5 Digital; e o PL 2793/11, dos deputados Paulo Teixeira (PT-SP), Manoela D’Ávila (PC do B-RS) e Luiza Erundina (PSB-SP). Os dois projetos, agora, devem ser sancionados pela presidente Dilma Rousseff.
Porém, até o dia 21 de novembro, data de fechamento desta edição, os direitos dos usuários e princípios como a privacidade, a liberdade de expressão e a neutralidade da rede ainda não estavam garantidos por lei, em função de um jogo de forças que atravancava a votação do Marco Civil da Internet no Brasil. Depois de muitas idas e vindas a plenário, diversos adiamentos da votação, o Marco Civil da Internet havia sido retirado da pauta da Câmara dos Deputados sem previsão de volta. Independentemente do resultado, é importante entender o debate que se trava em torno do texto final da lei.
Um dos pontos polêmicos nesse debate diz respeito à neutralidade da internet. Uma rede neutra significa uma rede onde há isonomia no acesso e onde nenhum pacote tem privilégio para trafegar. Por exemplo: o fornecedor de conexão não pode fazer um contrato com o Facebook para que os pacotes da rede social trafeguem com prioridade em relação aos pacotes do blog de um cidadão qualquer. Em outras palavras, empresas com maior poder econômico não podem pagar por prioridade e, com isso, prejudicar o tráfego de empresas pequenas ou de iniciativas isoladas – só para lembrar, foi dessas iniciativas que surgiram as inovações mais importantes da internet, como o Google, o próprio Facebook, a telefonia IP, as redes de compartilhamento peer-to-peer.
Hoje existe um gerenciamento do tráfego responsável por garantir a qualidade das transmissões. E, do ponto de vista da neutralidade, o problema é o limite desse gerenciamento. Porque em algumas situações, por exigências técnicas, os dados são tratados de forma diferenciada para que a rede funcione. As operadoras de telecomunicações, responsáveis pelos investimentos nas redes físicas (cabos ópticos, conexões ADSL) por onde trafegam os pacotes de dados, querem preservar essa condição técnica. Além disso, têm interesse em negociar com os grandes provedores de conteúdo, que geram o tráfego na rede, uma maneira de remunerar os altos investimentos diferenciando os tipos e valores de tráfego.
Por isso é preciso decidir quem vai definir os limites desse gerenciamento e estabelecer exceções para o princípio da neutralidade. Tanto as operadoras quanto o Ministério das Comunicações acreditam que o órgão a fazer isso é a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A proposta de Alessandro Molon (PT-RS), elaborada a partir de contribuições dos ativistas da rede, estabelece a regulação pela Presidência da República, por decreto (proposta que iria à votação dia 12 de novembro), com consulta ao Comitê Gestor da Internet (CGI.br), defendida pelos ativistas, mas retirada do texto.
A retirada do CGI.br do texto, uma entrevista do ministro Paulo Bernardo dizendo que o Marco Civil daria à Anatel a atribuição de regular a neutralidade e a negativa clara do relator do projeto, para quem não cabe à Anatel, até por limitações legais, fazer isso, impediram a votação do texto dia 7 de novembro. A decisão foi do próprio Molon, para dar nova redação ao projeto e dirimir possíveis dúvidas em relação a isso.
Outro motivo do adiamento foi o acréscimo de um inciso no artigo 15, que trata da obrigação dos provedores de retirar conteúdo mediante ordem judicial. O inciso estabelece uma exceção para conteúdos que ferem direitos autorais. Na interpretação dos ativistas, o inciso permite que provedores retirem conteúdos denunciados, sem ferir direitos autorais, sem ordem judicial. Na dos provedores de acesso, também. Para ambos, essa redação pode gerar censura prévia dos conteúdos.
Uma nota divulgada pela Abranet, associação dos provedores de acesso, explica: “Hoje, provedores de internet são responsáveis pelo conteúdo original que produzem. No caso de conteúdos (textos, vídeos, fotos etc.) publicados por usuários comuns, cabe ao provedor receber eventuais notificações extrajudiciais e remover material nitidamente impróprio. Isso já acontece em casos de pedofilia ou conteúdos cuja propriedade de terceiros é claramente identificada. Em caso de dúvida, os provedores aguardam e acatam decisão da Justiça. A Abranet entende que não compete ao provedor decidir sobre eventuais celeumas a respeito de todos os milhões de conteúdos veiculados em sua plataforma. As modificações no artigo 15, sugeridas no apagar das luzes, minutos antes da votação do projeto, impõem aos provedores a retirada de conteúdos após a mera notificação de um terceiro, sob pena de tornar-se responsável por um conteúdo que não produziu.”
Para o deputado Molon, o inciso simplesmente remete o tema à Lei de Direitos Autorais – cuja proposta de modificação o Ministério da Cultura deve mandar em breve ao Congresso. “Não significa a implantação de um sistema de notificação e retirada de conteúdo no Brasil porque para obrigar a isso seria necessária uma lei, que não existe”, afirma.