conexão social
ACTANTES
Coletivo defende privacidade de dados e atua pela popularização da criptografia
Rafael Bravo Bucco
ARede nº 98 – maio/junho de 2014
Às 21h de uma sexta-feira, uma fila com gente de diferentes idades atravessava as portas do Centro Cultural São Paulo, na capital paulista. As cerca de 2 mil pessoas estão ali para uma maratona com 25h de duração. Na programação mais do que música. Pela noitada adentro, haveria também debates sobre segurança na internet, privacidade digital, criptografia, software livre e políticas de vigilância.
A Cryptorave, que aconteceu na virada de 11 para 12 de abril. Foram 34 atividades distribuídas por espaços como o Install Fest, onde era possível instalar a distribuição Debian mais recente, a Área Hacking, onde rolavm palestras sobre as vulnerabilidades de sistemas, a Área de Oficinas, onde dava para aprender a usar a criptografia, além da Arena Principal, onde os debates tocavam em mais políticos, como ameaças à liberdade e à privacidade na internet.
Por trás dessa festa está o coletivo Actantes. A organização foi criada no final de 2013, logo após as denúncias de Edward Snowden chacoalharem o mundo. Assim que saiu a primeira notícia sobre o Prism, Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC, Rodolfo Avelino, professor da Faculdade Impacta, e Tiago Pimentel, pesquisador de redes digitais, decidiram concretizar um sonho: criar um coletivo que defendesse liberdade e privacidade online, organizando eventos, oferecendo cursos, e incentivando o uso de software livre e aplicativos de criptografia.
“A gente achou que não existia em São Paulo uma agitação em torno da questão da privacidade e de esclarecer o que significam essas técnicas de vigilância massiva”, conta Amadeu. A primeira ação dos Actantes foi estrear no Brasil a Cryptoparty, em 2013, um evento mundial, junto com outros coletivos, diz. Os parceiros, que depois também contribuíram com a rave, foram a Escola de Ativismo, o Teatro Mágico, ThoughtWorks, Coletivo Papo Reto, Coletivo Saravá.
Os actantes são pessoas que vêm principalmente da comunidade do código aberto. “Pegando pela questão da privacidade, as pessoas até entendem melhor como chegar no software livre”, se surpreende Amadeu. Segundo Avelino, o software livre é uma bandeira fundamental para o grupo. “Não é possível obter a privacidade do usuário com plataformas proprietárias. Primeiro, está explícito em vários licenciamentos de software que parte do que você produz e informações pessoais, sobretudo do seu sistema, são submetidos às empresas”, explica.
Tudo aberto
Os actantes esperam também aumentar o número de pessoas capazes de trabalhar com plataformas abertas. “Tinha um grupo forte de profissionais do software livre, sobretudo de segurança, no Brasil, em 2003, 2005. Nos preocupa que várias pessoas que entendem muito do assunto estejam indo para a iniciativa privada”, diz o professor. Ele ressalta que o mercado exerceu seu potencial de atração, uma vez que lidar com segurança e criptografia se transformou em um filão próspero. “Um grande mercado nas corporações, hoje, é manter os dados em sigilo, e aí várias pessoas do movimento, seja no Brasil, seja fora, foram para empresas. Várias pessoas saíram do país”, lamenta.
Além das festas da criptografia, os actantes organizam capacitações para pessoas não ligadas à área da informática dominarem a tecnologia e se conectarem sem entregar de bandeja seus dados pessoais na internet. Até hoje, mais de 60 pessoas se formaram no curso básico de proteção de dados. As aulas, na sede da organização, que fica no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, somam 12 horas, em quatro encontros. O primeiro fala sobre vigilância na internet, criptopolítica e estratégias corporativas de criar riqueza sobre os dados pessoais. “Nos demais, mostramos como fazer uma comunicação segura, evitar rastreamento. Ensinamos a fazer uma conversa no Facebook, no Gtalk, sem que o Face ou o Google consigam interpretar as mensagens”, explica Avelino.
Quem quer conhecer a tecnologia por dentro pode fazer os outros dois cursos. Não é preciso conhecimento avançado de informática. Um é de lógica de programação utilizando Python, uma linguagem aberta, livre, em que as pessoas aprendem a programar. O outro é de administração de Linux. Neste último, os actantes ensinam a instalar o sistema operacional Debian e uma placa de rede sem fio, e também a criptografar o disco rígido.
Novas modalidades de ensino estão nos planos futuros. Sérgio Amadeu conta que serão lançados, em maio, cursos para grupos definidos por afinidade. Isto é, pessoas que levem amigos; ou para círculos profissionais, de modo que os recursos de criptografia possam ser plenamente utilizados. “Um cara isolado aprende criptografia, depois não tem com quem trocar a chave criptográfica porque o amigo dele não usa. Se a gente pega um grupo de mulheres com relação entre elas, a gente faz com que comecem a usar, porque mandam uma pra outra”, explica. O primeiro grupo, para jornalistas, será junto com a Agência Pública. Vai ser voltado para navegação anônima, comunicação segura com a fonte, preservação e defesa da fonte.
Com exceção de cursos solicitados por empresas, os Actantes não cobram nada. Aí está o grande desafio: sustentar a organização, que seleciona a dedo os possíveis patrocinadores para seus eventos. Atualmente, as contas são pagas pelos integrantes e doações individuais. “A Cryptorave foi bancada parte por doações, parte pela Makro Systems e Thought Works, que trouxeram palestrantes internacionais e arcaram com hospedagem”, conta Avelino.
Comunidade virtual
Outra perna de ação dos actantes é a comunidade digital, reunida em torno do aplicativo Rede Ativa. O programa, criado para dispositivos móveis com sistema Android, facilita o ativismo social. “É uma plataforma de mobilização em defesa da liberdade e privacidade, que usa celular e web”, conta Amadeu.
Quem esteve na Cryptorave pode se inscrever na comunidade, hoje aberta só para convidados. “Aí vão participar de ações em torno de algum projeto de lei, ou contra alguma ação que reduz os direitos e a privacidade das pessoas na internet”, exemplifica Avelino. A primeira campanha já rolou. Consistiu em apoiar o asilo político de Edward Snowden no Brasil. O informante, que expôs os abusos de governos dos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, hoje está na Rússia e corre o risco de não ter a autorização para sua permanência por lá renovada.
Os motivos para que a Rede Ativa seja só para convidados são nítidos para quem rechaça o vigilantismo. “Queremos ter apenas pessoas que compartilhem dos mesmos ideais. Depois vamos repensar se outros poderão aderir”, diz Avelino. Os ideais, para além de liberdade e privacidade digitais, são de esquerda. “Não defendemos nenhum partido. Nosso propósito é popularizar a criptografia. Pendurando uma bandeira partidária, a gente criaria barreiras”, observa. A única resistência desejada pelos ativos na rede é contra abusos aos direitos fundamentais de expressão e inviolabilidade. Uma fila de 2 mil pessoas numa sexta à noite para debater temas cabeçudos indica que eles estão no caminho certo.