Agora sim, o mapa está completo
PARA O GOOGLE MAPAS, NÃO PASSAM DE “BORRÕES”.
SAULO AUGUSTO tem 23 anos. Todos vividos no Complexo do Alemão, bairro de Ramos, Rio de Janeiro. Apesar de ali ser o local onde nasceu, foi criado e continua vivendo, até recentemente não conhecia muitos pontos da região, desde estabelecimentos comerciais até becos e vielas. “Como eu moro logo na entrada da comunidade, aqui embaixo, não ia muito lá para dentro, não sabia onde era a entrada e saída de um beco, por exemplo.” Porém, desde o ano passado, Saulo vem conhecendo cada vez mais a sua comunidade. É que há cerca de um ano ele trabalha como “wiki repórter”, da iniciativa Wikimapa, coordenada pela organização não governamental (ONG) Rede Jovem.
O Wikimapa é um mapa virtual georreferenciado e colaborativo de pontos de interesse de comunidades de baixa renda, como ruas, vielas, estabelecimentos comerciais ativos que não constam até hoje em mapas na internet. Wiki repórteres são jovens moradores das comunidades beneficiadas pelo projeto Wikimapa, que
faz uso das imagens de satélite do Google para mapear tudo de relevante que existe nessas localidades. Criada em 2009 pela Rede Jovem, a plataforma é alimentada pelos participantes por dados enviados via celulares com GPS e internet. Jovens da própria comunidade também registram imagens com celulares 3G fornecidos pelas empresas de telefonia Vivo e Telefônica. “Nosso foco é no mapeamento de áreas marginalizadas”, explica Patrícia Azevedo, coordenadora estratégica da entidade.
No Wikimapa é possível incluir textos, links e fotos dos pontos de interesse. O usuário pode, por exemplo, fazer buscas no Wikimapa pelo nome do lugar, pela categoria ou pelo nome do mapeador. “No momento o Wikimapa tem menos recursos que o Google Maps, mas a tendência é ser aprimorado e oferecer mais opções tanto
para os mapeadores quanto para os usuários”, avalia a professora Arlete Meneguette, do Departamento de Cartografia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente (SP).
O Wikimapa oferece duas opções de mapeamento coletivo, sendo que uma delas é via celular com GPS e acesso à internet, e a outra via computador com acesso à web. “Em ambos os casos o mais importante é o conhecimento que o mapeador voluntário tem de seu lugar, com o qual tem vínculos, no qual mantém relacionamentos. O resultado do mapeamento colaborativo e participativo é uma contribuição para a sociedade como um todo, pois os usuários podem tomar decisões com base nas informações compartilhadas”, comenta a professora da Unesp.
CAMINHOS MARCADOS
A fase piloto do projeto, que teve início em 2009, mapeou as comunidades do Complexo do Alemão, Pavão-Pavãozinho, Cidade de Deus, Santa Marta e Complexo da Maré, todas no Rio de Janeiro. Em cada uma delas, havia um wiki repórter responsável por identificar locais de interesse e caminhos para o mapa georreferenciado. Depois, o projeto foi ampliado e a partir de 2011 todas as 16 comunidades do Complexo do Alemão passaram a ser mapeadas. “Contratamos 16 jovens do Alemão. E nesse ano mapeamos mais de mil pontos”, afirma Patrícia. O Complexo da Penha também passou a ser beneficiado na mesma época.
O projeto, que começou no Rio de Janeiro, deve se expandir para São Paulo. Os financiadores da iniciativa, a Vivo e a Telefônica, aprovaram a expansão para a capital paulista, especificamente no bairro do Capão Redondo, zona sul da cidade. No Rio, a iniciativa também vai se expandir para outras sete regiões, como
Rocinha, Mangueira, Borel (que havia sido mapeada no projeto piloto) e Cidade de Deus.
De acordo com Patrícia, o objetivo da iniciativa é, além de desenvolver a ferramenta, “mobilizar a comunidade para que o seu uso faça sentido. No geral, elas não são utilizadas em áreas de favela, principalmente aqui no Rio, porque não se encontra a cartografia das favelas no Google Mapas”. Assim, o projeto caminhou a partir do que não havia sido mapeado pelo Google Mapas, desde comércio, campo de futebol, mototáxi, escolas, hospitais, igrejas, clubes, bares,
lan houses e “tudo que tem de potencial dentro de uma determinada região”, explica. O mapeamento também ajuda na identificação de endereços, pois várias casas e estabelecimentos das comunidades não têm numeração.
DADOS DISPONÍVEIS
Diariamente Saulo, um dos wiki repórteres do projeto, vai a campo fazer o mapeamento do Alemão. “São quatro horas diárias, sem que atrapalhem as nossas atividades escolares ou outros trabalhos”, explica o jovem, que quer fazer faculdade de jornalismo ou história. Ele conta que o trabalho consiste em abordar o
responsável pelo estabelecimento, apresentar o projeto, pedir que ele conte um pouco sobre o local e dê informações básicas, como se tal comércio aceita cartão, horário de funcionamento, telefone de contato.
Então, por meio de celular com GPS e internet, o repórter insere o nome, endereço, descrição, referência, categoria (educação, comércio, entretenimento etc.) e uma fotografia do estabelecimento. Há a possibilidade, ainda, de se gravar um vídeo, caso haja interesse do local mapeado. “Aí os dados já ficam disponíveis online automaticamente, e o GPS identifica exatamente onde o local se situa no mapa”, explica Saulo. Ao final do mapeamento, o repórter explica ao responsável pelo estabelecimento que os dados ficarão disponíveis no site do projeto e cola um adesivo no local, identificando que o espaço já foi mapeado. Quando saem às ruas, os jovens repórteres levam um kit wiki repórter, que além dos adesivos indicando “Este lugar já foi mapeado”, contém uma camiseta do projeto e o celular com o aplicativo do Wikimapa.
Se no começo os comerciantes não entendiam a funcionalidade da ferramenta e perguntavam: “pô, para que isso serve?”, logo passaram a gostar de ter seu espaço mapeado e divulgado, elevando, inclusive, a autoestima da comunidade. “É que antes a gente pensava: nossa, minha região não está nem no mapa”, relata Saulo. Antes, conta, o mapa da comunidade “não tinha essas barracas e lojas, só tinha um borrado”, critica. “Esse projeto serve para isso, para mostrar que temos coisas aqui e que a gente está fazendo o registro”, aponta.
Hoje, como o projeto ficou muito popular, quando vai a campo, o wiki repórter ouve coisas como: “Passe aqui, falta eu, você ainda não veio aqui”, conta. “Fico feliz de saber que eles estavam querendo, buscando, gostando”, comemora Saulo. “As pessoas começam a se mobilizar e participar. Nosso objetivo é fazer com que elas atuem ativamente”, completa Patrícia. O fato de o mapa ser “produzido, mantido e legitimado” pelos moradores da região o faz ganhar credibilidade, avalia a coordenadora da Rede Jovem.
Saulo afirma que ainda falta bastante para ser mapeado, mas mostra-se satisfeito com o que já conseguiu. “Conheci muito, mas ainda tem bastante coisa nova a descobrir”. Nesse processo, explica, além de ter conhecido muitos lugares, becos e vielas, ele também passou a interagir mais com as pessoas. “Acho que esse processo ajudou a me aproximar mais dos moradores e vizinhos da minha comunidade”, revela. Para selecionar os wiki repórteres, a Rede Jovem procurou jovens da comunidade que fossem interativos, comunicativos e que tivessem um bom conhecimento da região. “Eles se envolvem muito com o projeto porque passam a conhecer muito mais do que conheciam”, aponta Patrícia. Segundo ela, o impacto do projeto na vida dessas pessoas é muito interessante, porque elas passam a olhar a comunidade de uma maneira diferente.
“Acho que o nosso diferencial é a dinâmica, a gente conhece bastante gente, somos bem comunicativos”, opina o repórter da ONG. Ele conta que se inscreveu para a seleção porque gosta de tecnologia, internet e porque “achei interessante a forma que eles têm de divulgar o que temos aqui dentro”, explica Saulo. No site do projeto há um blog, chamado “Blog Diário”, onde os repórteres publicam notas, ideias e impressões de mapeamento que fizeram.
O trabalho de inclusão social via tecnologia realizado pela Rede Jovem teve início em 2000, com a implantação de telecentros. Alguns anos depois, quando perceberam que o celular também poderia ser um instrumento de inclusão social, passaram “a desenvolver projetos integrando web e celular”, relata Patrícia.
Em 2008, a ONG passou a prestar atenção no mercado de aplicativos móveis e “ver que estes eram muito pouco usados no Brasil. Aí começamos a perceber que o uso de ferramentas de geolocalização, mapas, virtuais etc. eram muito pouco usados por jovens que moravam nessas regiões aqui no Rio, e a gente se deparou com
essa realidade. São muito pouco usados porque os moradores não se identificam no mapa. Então pensamos: ‘vamos trabalhar com isso’”.
INICIATIVA DE INCLUSÃO
Na opinião da professora Arlete Meneguette, do Departamento de Cartografia da Unesp, o Wikimapa é uma iniciativa muito interessante de inclusão digital e empoderamento das comunidades, “que podem compartilhar o conhecimento que têm do lugar onde moram, estudam, trabalham, convivem”. A pesquisadora e professora
da Unesp relata que o Wikimapa está entre as plataformas de mapeamento online que utiliza.
Na prática, Arlete utiliza o Wikimapa no ensino, “na pesquisa e na extensão de serviços à comunidade”. Além dos estudantes da Unesp, o Wikimapa também vem sendo utilizado pelos educadores dos municípios que fazem parte das bacias hidrográficas dos rios Aguapeí e Peixe, afirma a professora.
Além de se expandir geograficamente, o projeto será aprimorado. Em parceria com uma empresa, a Rede Jovem está desenvolvendo um aplicativo do projeto para celulares com sistema operacional Android. “Estamos em pleno processo de desenvolvimento do Android, e em seguida começaremos a desenvolver para Iphone”, explica Patrícia. A aposta no Android é que possa ajudar a ampliar as partes visuais do projeto e outras funcionalidades, aumentando, assim, seu número de colaboradores, aposta a coordenadora do Rede Jovem.
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