Brava gente telecentrista
Problemas na infraestrutura e muita vontade de seguir em frente marcam o dia a dia da inclusão digital no país
ARede nº 82 – julho de 2012
A TRANSFORMAÇÃO de vidas em função do acesso às novas tecnologias é o mais significativo resultado dos projetos de inclusão digital no Brasil. Histórias contadas pelas pessoas que atuam em telecentros e pelos usuários dos centros públicos de acesso à internet mostram os benefícios dessas iniciativas para o desenvolvimento pessoal e das comunidades atendidas. Mas revelam, também, os enormes desafios enfrentados no cotidiano. Uma pequena amostra da garra desses bravos telecentristas é relatada pela coordenadora pedagógica do Polo Centro-Oeste da Rede Nacional de Formação do Programa Telecentros.BR, Silvana Lemos, após um giro pelas unidades de sua região: “Um dos maiores aprendizados desse trabalho foi constatar que, quando a inclusão digital chega, levando o direito à informação ao cidadão, juntando poder público e organizações sociais, a comunidade se fortalece. Busca seus serviços, promove o aprendizado, intensifica seu poder de compartilhamento onde tão pouco vira muito”.
Silvana é integrante da organização não governamental (ONG) Programando o Futuro, parceira do Telecentros.BR, que promoveu um roteiro de visitas a 5% dos telecentros onde atuam os alunos de seu núcleo de formação – um total de 467 monitores, dos quais 84 bolsistas e 383 não bolsistas. A definição do percurso levou em conta critérios como distribuição por região, diversidade de parcerias locais e diferenças nas iniciativas, com prioridade para Goiás e Distrito Federal, pela proximidade à sede da instituição.
O primeiro destino da equipe do Polo Centro-Oeste foi Cavalcante, a 330 quilômetros de Brasília, ao pé da Chapada dos Veadeiros, onde está uma das maiores comunidades remanescentes de quilombo do país, os Kalungas. A cidade tem cerca de 12 mil habitantes. Um dos telecentros mais concorridos é o Telecentro Comunitário Cavalcante, que atende diariamente 40 usuários, na maioria jovens, crianças e funcionários da prefeitura. Além do acesso livre à internet, a unidade oferece aulas de informática e cursos a distância. A conexão do Gesac foi cortada por uma ação de vandalismo. Mas a prefeitura encontrou uma saída: estabeleceu uma conexão via rádio – lenta, e mesmo assim disputada. A jovem Isabela Freire Freitas, de 16 anos, passa todas as tardes no telecentro. Baixa vídeos e se prepara para o Enem. Pablo Betancor, coordenador local do Observatório de Turismo Sustentável da Universidade de Brasília, vai ao telecentro para se comunicar e planejar estratégias de ação para implementar um turismo consciente e sustentável no município.
A gestão do telecentro é feita por um Conselho Gestor que tem participação de representantes da comunidade. O mesmo Conselho faz também a gestão do telecentro Casa do Aprendiz, que atende 180 famílias, com cerca de 500 jovens e crianças. A Casa promove oficinas profissionalizantes e atividades culturais para a comunidade, como aulas de dança, corte e costura, marcenaria, produção de artesanato em barro – sem falar no acesso livre à internet, claro. Kaibar da Silveira, de 72 anos, é o coordenador da Casa do Aprendiz, que funciona com equipamentos doados pelo Banco do Brasil. Para ele, os benefícios desse telecentro para o público vão além da inclusão digital: “Houve o caso de uma mãe que chegou aqui com uma criança que tinha o olho roxo. Ao conversar, descobrimos que ela tentou chamar a polícia mas não havia um carro para se deslocar até a ocorrência de violência. Aí ela veio ao telecentro para fazer a denúncia pela internet em um site que aciona as autoridades imediatamente”, conta Kaibar.
Leitura premiada
A partir do interesse dos jovens pelo telecentro, Kaibar implantou outros dois projetos. O Clube da Leitura, em que os jovens escolhem um livro por semana na biblioteca da instituição e apresentam um resumo na semana seguinte. Os trabalhos são submetidos a um comitê integrado por um juiz de paz, uma promotora de Justiça e professores do município. Essa equipe faz avaliação da ortografia, do encadeamento das ideias e da compreensão do texto lido. Assim os jovens vão acumulando pontos, até chegar novembro, quando são anunciados os vencedores da maratona. O primeiro colocado no ano passado leu 61 livros e ganhou um computador novinho em folha. Outro projeto da Casa prevê a oferta de cursos superiores a distância para o município. Estão sendo solicitados para a Universidade Aberta do Brasil (UAB) os cursos de hotelaria, turismo, educação física, pedagogia, geografia, entre outros.
Outra comunidade Kalunga, do Engenho II, abriga 500 pessoas de 150 famílias que dispõem de posto de saúde, com visita do médico uma vez por semana, e escola, onde os alunos estudam até o ensino médio. Ali também funciona a Casa Digital Kalunga, do programa de inclusão digital do Ministério do Desenvolvimento Agrário. O líder Sirilo Santos Rosa fala com entusiasmo do telecentro: “Tem como trazer tudo que é de melhor para a comunidade. Tem tudo para trazer, sem buscar lá fora. O desenvolvimento chegou aqui. Eu sempre falei para minha comunidade que se a gente fica aqui unido, onde tem gente, chega recurso”. Ele conta que antigamente os moradores do quilombo se sentiam discriminados: “Pessoa Kalunga era preto e sem educação, analfabeto. Hoje Kalunga significa a nossa cultura, a coletividade, a identidade que nós representamos dos nossos antepassados. Na África, Kalunga significa: o homem feliz”.
A Casa Digital Kalunga atende 100 jovens e crianças da comunidade. No contraturno escolar, fazem cursos de informática e navegam na internet. Além de proporcionar acesso ao conhecimento, a Casa Digital facilita a inserção da comunidade nos programas de agricultura familiar do governo federal. Quando a equipe do Polo chegou ao telecentro, técnico da Emater, Gonçalo Amarante, “lutava” com a conexão Gesac para fazer o cadastro de 15 agricultores familiares do quilombo no Programa Nacional de Alimentação Escolar. Por esse programa, eles vão vender os alimentos para a prefeitura, que vai utilizar a produção local na alimentação dos alunos das escolas públicas.
A cidade de Cavalcante tinha uma Estação Digital, do programa da Fundação Banco do Brasil, mas foi fechada porque as duas monitoras saíram da formação depois de passar no vestibular.
Em Monte Alegre, quase divisa com o Estado do Tocantins, funcionam telecentros sob a gestão da Associação Comunitária de Projetos e Ações por um Monte Alegre Melhor (Acpromam): o Telecentro Cidadão (que também é ponto de cultura), e duas unidades rurais; a Sala de Informática (que fica no distrito da Prata) e o Telecentro Olhar Digital (que fica no povoado do Riacho dos Cavalos).
De acordo com o coordenador da associação, João Celino Bonfim, os espaços de inclusão digital mudaram as perspectivas da comunidade: “Hoje os jovens daqui têm uma oportunidade de formação profissional. Nosso objetivo é que os jovens não utilizem o computador apenas para acessar as redes sociais. Queremos que o computador seja uma ferramenta de libertação na vida deles”. O Telecentro Cidadão enfrenta grandes dificuldades: dos dez computadores existentes, cinco estão quebrados. Mas a falta de equipamentos não desanima os monitores – 27 inscritos na formação do Programa Telecentros.BR, quatro bolsistas, um gestor e 22 não bolsistas.
A grande quantidade de monitores inscritos tem uma razão: esse é o projeto comunitário Currículo Jovem, criado pelos quatro bolsistas. Eles atuam como tutores presenciais, replicando para os 22 jovens o conhecimento estudado na plataforma Moodle da Rede Nacional de Formação. Daniel Lopes pedala durante 5 quilômetros ao sol do meio dia, por 40 minutos, para chegar até o povoado Riacho dos Cavalos. Lá, ele ensina informática e, principalmente, auxilia na alfabetização das crianças da área rural. “Eu falo para eles não virem para a escola só por causa da merenda, que é bom a gente aprender na vida. Meu sonho era fazer medicina. Sei que é difícil, e talvez não consiga realizar esse sonho. Mas a formação está me dando outra oportunidade de crescimento. Quero me especializar em informática”, conta o monitor.
Mulheres comunicadoras
A inclusão digital em Cocalzinho de Goiás começou quando a Associação Geral dos Trabalhadores do município foi selecionada para participar do Projeto Cyberela, com foco em mulheres comunicadoras. A associação já atuava com a rádio comunitária Vitória FM, única emissora de rádio do município. E unir essa atividade ao trabalho do telecentro foi um pulo. “Hoje, a visão que Cocalzinho tem de educação e comunicação é outra por causa da rádio e do telecentro. O pessoal da área rural passou a ter um canal de comunicação, porque antes eles ficavam isolados”, explica Deuselina Teles, presidente da associação.
Atualmente os cursos de informática na estação digital estão suspensos pois faltam monitores. Os dois que eram bolsistas do Programa Telecentros.BR desistiram. Um deles, porque conseguiu melhor remuneração, e a monitora, porque passou no vestibular, em Anápolis. Deuselina conta que essa é uma grande dificuldade no município: pela proximidade com Brasília, Goiânia e Anápolis, os jovens acham o valor da bolsa baixo e saem em busca de outras oportunidades.
Precariedade
Na cidade de Pirenópolis, o Telecentro Comunitário, implementado pelo Serpro, tem parceria com a ONG Comunidade Educacional de Pirenópolis, que é um ponto de cultura. O espaço oferece oficinas de arte, edição de áudio, vídeo, dança, violão e oficina da terra. As crianças e os jovens do bairro do Carmo são recebidos com carinho, mesmo com toda a precariedade da estrutura – dos 15 computadores disponíveis, apenas quatro funcionam. O monitor Abílio Fonseca revela que o que mais gostou do curso de formação foi o projeto comunitário no qual desenvolveu uma rádio no telecentro: “ele foi realizado com as crianças mais assíduas no espaço, que pesquisavam conteúdos na internet, faziam a locução, editavam o programa e veiculávamos na Rádio Comunitária Jornal Meia Ponte”.
Outro ponto de cultura abriga um telecentro na região: a Associação Cultural Menino de Ceilândia, em Brasília, que trabalha com a cultura popular. Mantém a orquestra Menino de Ceilândia e oferece aulas de balé popular e frevo. “Um grupo de costureiras confecciona bonecos de mamulengo para o carnaval”, explica Gleuça Marculino, monitora do telecentro. A jovem acredita que a formação aumentou a interação dela com a comunidade.
As dificudades comprovadas e a vontade de seguir em frente levaram a coordenadora pedagógica do Polo Centro-Oeste da Rede de Formação, Silvana Lemos, a uma conclusão: “Neste país, inclusão digital só se faz com brava gente telecentrista. Que sejamos todos Kalungas na resistência, no fortalecimento de redes de aprendizagem, na luta por uma conexão à internet de qualidade para que um dia possamos dizer: povo feliz!”