Conexão Social

Hackers pelo software livre

FISL 12 aponta tendências e discute transparência como instrumento de cidadania  

Patrícia Cornils

ARede nº71 julho de 2011 – Ninguém tem vergonha de usar a palavra hacker no Fórum Internacional de Software Livre (FISL). A 12ª edição do Fórum, realizada entre 20 de junho e 2 de julho, em Porto Alegre, aconteceu na semana seguinte a vários ataques a sites de governo no Brasil. Ataques atribuídos, pela maior parte da imprensa, a “hackers”. No encontro em Porto Alegre, hacker não foi sinônimo de crime e clandestinidade, mas de engenho e criatividade. O ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, reuniu-se no FISL com dezenas de hackers. Quis ouvir de que forma o governo federal pode apoiar inovações tecnológicas produzidas por desenvolvedores independentes, coletivos, comunidades, hackerspaces em todo o Brasil. No primeiro dia do evento, a sala da palestra “Encontro de Hackers GNU+Linux+Libre”, que foi ministrada por Felipe Sanches, Alexandre Oliva e Rodrigo Silva, estava lotada quinze minutos antes do debate começar. “Existe uma ética hacker, que pressupõe procurar a solução para problemas e promover a liberdade no uso das informações sem desrespeitar a privacidade. Derrubar sites por diversão ou para ganhar visibilidade não se enquadra dentro dessa ética”, explicou Felipe a Zero Hora, o maior jornal do Rio Grande do Sul.

O FISL registrou, este ano, 6.914 participantes. Um público menor do que os 7.511 do ano passado, em parte por conta da data do evento, que aconteceu no final do semestre letivo. A vitalidade do evento, no entanto, se mantém. Foram realizadas 480 atividades, entre palestras, oficinas, debates, encontros de comunidades. O FISL é um retrato presente do conhecimento amadurecido nos últimos 12 anos pelas comunidades brasileiras de software livre. Além disso, o encontro aponta tendências que podem se afirmar. Este ano, a mais visível foi a transparência – que deixou de ser debatida apenas em relação ao código-fonte dos softwares e passou a ser uma questão de cidadania, do uso da internet como ferramenta de participação política.

Este é o lugar onde os hackers se encontram com a democracia, e isso aconteceu em vários debates sobre dados abertos no FISL. “Eu estava na organização do primeiro fórum, há doze anos, quando quase ninguém debatia software livre”, recorda Cláudio Dutra, vice-presidente da Procergs, a companhia de Processamento de Dados do Rio Grande do Sul. “Acho que os debates sobre dados públicos abertos realizados aqui, esta semana, se parecem muito com um possível 1º Fórum Internacional de Dados Abertos”, aposta ele.

Transparência
No evento, o governo do Rio Grande do Sul assinou um protocolo de intenções com o escritório brasileiro do Consórcio World Wide Web (W3C), para organizar a liberação dos bancos de dados públicos do estado em formato aberto. Dados públicos abertos são informações publicadas em formatos livre e legíveis por computador. Isso torna possível seu uso pela sociedade, para criar aplicativos, desenvolver novas formas de visualizar, entender os dados, e usá-los em propostas de políticas públicas e na fiscalização de governos.

O W3C está construindo, no Brasil, uma agenda para implementar dados abertos em governos. Pretende assinar vários protocolos como o realizado com o governo gaúcho. O documento é somente uma declaração de intenções. Mas há passos concretos, no estado, em direção à transparência. O primeiro foi dado no ano passado, quando a Secretaria de Segurança Pública publicou, na internet, os dados referentes a ocorrências policiais de todos os municípios do estado. Agora, de acordo com Monique Sichonavy, responsável pela subchefia de Ética, Controle Público e Transparência da Casa Civil do estado, o governo deverá formar um grupo de trabalho para reestruturar, até novembro, seu Portal de Transparência. E começar a abrir seus dados, nesse portal, para a sociedade.

“A transparência tem de fazer parte do nosso futuro”, afirma Daniel Domscheit-Berg, um dos palestrantes internacionais do evento. Domscheit-Berg está organizando o OpenLeaks. O foco do OpenLeaks é oferecer uma plataforma para que pessoas revelem, pela internet e de forma anônima, informações de governos, empresas, academias – para serem divulgadas. O portal deve ser lançado em agosto. Pretende ser uma alternativa descentralizada ao Wikileaks, site cujo articulador mais famoso é Julian Assange, e que revelou documentos da diplomacia estadunidense em todo o mundo (ver matéria na edição 66 da revista ARede). “Precisamos ter acesso a informações que nos contem como são os fatos”, diz Domscheit-Berg. Porque, explica, as pessoas só conseguem avaliar decisões de alta complexidade, como as tomadas pelos governos, se têm acesso aos fatos. Isso tem relação com todos os tipos de problemas: meio ambiente, más condições de trabalho, exploração, pobreza. Neste caso, não se trata de dados abertos, mas da possibilidade de cidadãos, de maneira individual e independente, revelarem informações que consideram relevantes para o interesse público.

Apoio à inovação
Sílvio Meira, cientista chefe do laboratório Cesar, não estava no FISL. Mas uma afirmação sua, na semana seguinte, resume o que os hackers e o ministro Mercadante conversaram no fórum: “De pouco ou nada adianta um Dia do Hacker no governo sem que haja uma política continuada de absorção de suas competências pela sociedade”. No mesmo tom, Mercadante abriu o encontro, no FISL, afirmando que “a produção de conhecimento na sociedade não se restringe à universidade e às empresas. Há comunidades na web que produzem conhecimento de formas colaborativas, das quais a mais impactante é o software livre”.

Mercadante se reuniu com desenvolvedores de várias comunidades de software livre (Debian, BR Office, Java); ativistas da comunidade Transparência Hacker; pequenos empreendedores que produzem hardware livre; desenvolvedores de padrões abertos; participantes de coletivos digitais; pesquisadores da cultura digital. De acordo com ele, “o MCT tem de reconhecer, valorizar e apoiar essa comunidade, fazer parcerias, trabalhar junto”.

Dos participantes do encontro, ele ouviu demandas para que o Estado encontre maneiras mais flexíveis de fomentar e apoiar grupos e pessoas que não se organizam, necessariamente, em grandes empresas ou universidades. “É preciso pensar de que modo as pequenas empresas de hardware vão produzir no Brasil”, alertou Thadeu Cascardo, da Holoscópio, que faz o controlador de placas Brasuino, um hardware livre. “Os editais da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) exigem cessão de patentes que inviabilizam financiamento para hardware e software livre”, disse Cascardo. “É preciso pensar que nem toda a inovação se faz para atender o mercado”, observou Felipe Fonseca, pesquisador e articulador de redes de cultura digital. “Há gente fazendo inovação nas pontas, para realizar mudanças sociais”, constatou. Esse é um movimento “disperso, autônomo e emergente”, na opinião de Daniela Silva, ativista da organização da Transparência Hacker. “Tem de haver metodologias que permitam chegar a essas pontas. Precisamos criar espaços hackers em todo o país”. “Os participantes brasileiros de fóruns de desenvolvimento de padrões atuam sem apoio do governo, quase por conta própria”, ressaltou Jomar Silva, diretor-geral da ODF Alliance Chapter Brasil, acrescentando que esse esforço é reconhecido, lá fora, como um esforço do país.

Se o ministro realmente levar à frente o objetivo de trabalhar em parceria com esses atores, este poderá ser o primeiro passo para constituir um sistema de apoio e incentivo às práticas tecno-científicas colaborativas e comunitárias no Brasil. As propostas a serem encaminhadas ao Ministério da Ciência e Tecnologia estão em construção – colaborativa – na internet, no endereço http://okfnpad.org/mctfisl. Além de criar uma agência específica para apoio ao desenvolvimento de tecnologias livre e colaborativas, os participantes da discussões propõem o que pode vir a ser a adoção da ideia dos Pontos de Cultura para o segmento de Ciência e Tecnologia: “Desenvolver estruturas, editais e suporte técnico para ‘Pólos locais de tecnologias livres’, ou ‘Pontos de Ciência e Tecnologia’: projetos locais que articulem em rede o desenvolvimento de tecnologias livres e seguras orientadas às demandas de suas comunidades. Potenciais candidatos são os projetos de inclusão digital, os Pontos de Cultura, os laboratórios de informática em escolas públicas, cooperativas de software livre e outros”.

Desenvolvimento
No FISL 12, o Comitê de Implementação de Software Livre do governo federal (CISL) assumiu o compromisso de formar um grupo para colaborar com o desenvolvimento das plataformas de suítes de escritório em software livre mantidas pelas Comunidades The Document Foundation (Libre Office) e Apache Foundation (Open Office). O compromisso foi assinado por Marcos Mazoni (coordenador do CISL), Sady Jacques (embaixador da Associação Software Livre), Jomar Silva (integrante da Comunidade Apache OpenOffice.org) e Olivier Hallot (integrante da Comunidade LibreOffice).

No Protocolo de Intenção, o CISL reconhece a importância do padrão ODF para garantir a interoperabilidade dos órgãos do governo e reconhece, também, que o Brasil é um dos maiores usuários desses softwares em todo o mundo. Agora, o governo brasileiro se compromete a contribuir, também, para a manutenção e o desenvolvimento dos softwares – que, além de serem fundamentais para garantir a interoperabilidade, proporcionam economia de milhões de reis em licenças todos os anos.

Na prática, o Serpro vai liberar imediatamente duas pessoas para trabalhar no desenvolvimento das suítes, afirma  Mazoni, que preside a empresa. De acordo com o próprio Mazoni, a expectativa é de que outros órgãos do governo federal, como a Caixa Econômica, o Banco do Brasil e a Dataprev, assim como as universidades federais, façam o mesmo. Jomar Silva, da comunidade Apache, comemora o compromisso com o desenvolvimento dos softwares: “Até então isso era realizado através de pequenas contribuições junto às comunidades e não com código-fonte aos projetos. É uma mudança de paradigma importante”.

Acessibilidade
Leonardo Leite, Marcelo Koga e Guilherme Januário estudaram Engenharia da Computação na  Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Ele foram ao FISL12 por conta de seu trabalho de conclusão de curso, um tradutor de português escrito para a linguagem Língua Brasileira de Sinais (Libras), que batizaram de Poli-Libras. Trata-se de uma ferramenta que traduz frases escritas do português para seus significados na linguagem Libras, com animações em 3D.

Lá, encontraram Wesley Seidel, um estudante do Instituto de Matemática e Engenharia (IME), que fica no mesmo campus da universidade, em São Paulo. Foi preciso um evento de software livre e uma viagem a Porto Alegre para saber que o tema da pesquisa Wesley é o CoGrOO, o corretor gramatical do LibreOffice. “A coisa mais incrível que descobri foi que é possível usar uma API do CoGrOO para realizar a análise sintática de frases em português! Isso se encaixa muito bem com meu projeto do Poli-Libras.”, escreveu Leonardo, no resumo de suas atividades do FISL.

Por que desenvolver o Poli-Libras? Porque os softwares de tradução de português para linguagens de sinais, usadas por deficientes auditivos, traduzem os textos palavra por palavra, sem levar em conta as diferenças de estrutura sintática entre as línguas. E a maneira de construir as frase, em Libras, é totalmente diferente da do português. “ Com o desenvolvimento da tecnologia do Poli-Libras, esperamos que no futuro seja possível a criação de um plug-in para que administradores de páginas web possam inserir facilmente conteúdos em Libras em seus sites, promovendo a acessibilidade de conteúdo na web aos surdos brasileiros”, diz a apresentação do projeto.

É um sistema complexo, com o desenvolvimento feito em módulos: o tradutor de português para Libras; um menino chamado Virtual Jonah, criado em computação gráfica 3D para mostrar os sinais; o Wiki Libras, dicionário português-Libras colaborativo e acessível por software; o analisador morfológico, que determina a categoria gramatical de cada palavra do português; o analisador sintático, que determina a estrutura sintática de uma sentença em português e o Sign Model, que modela morfologicamente um sinal, baseado na notação SignWriting.

Como o código-fonte está aberto, partes do sistema podem ser reaproveitadas por outras aplicações voltadas à comunidade com deficiência auditiva ou em aplicações de processamento de linguagem natural – como já acontece com o dicionário Wiki Libras, que está disponível na internet. E também permite a colaboração no desenvolvimento.

O projeto já recebeu ajuda de várias áreas, como computação gráfica, design, letras e fonoaudiologia: o Virtual Jonah foi desenvolvido em parceria com Heloísa Yoshioka, estudante de design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da USP. Mais colaboração é necessária, e bem-vinda, porque o Poli-Libras é desenvolvido no tempo livre de seus criadores. Pode-se colaborar, até mesmo sem ser programador.