Cruzeiro digital
Uma viagem que promoveu trocas culturais e formação em software livre
Áurea Lopes
ARede nº 93 – setembro/outubro de 2013
Nuvens altas cobrem o céu, contrariando a previsão dos meteorologistas. Nada de novo, quando se pensa de que lugar do planeta estamos falando: Cananeia, uma pequena cidade do litoral sul do Estado de São Paulo, a “última”, rumo ao Sul, em direção à divisa com o Paraná. É nesse cenário cinza, co
m vento frio, que pessoas vindas de diferentes lugares embarcam na escuna Lagamar I, com destino a Paranaguá (PR). No caminho, uma parada na comunidade caiçara do Marujá, ainda no Estado de São Paulo, e outra na paranaense Guaraqueçaba. O trajeto por entre os canais e baías que separam esses lugares leva exatos quatro dias.
A Lagamar I, nesse momento, se tornou a Escuna Hacker. Porque a embarcação abrigou um módulo da formação em software livre do projeto Arte Digital sem Limites – contemplado no edital Cultura Digital, do Ministério da Cultura. O curso é promovido e coordenado pelo Ponto de Cultura Caiçaras (ver página 31), organizador do “cruzeiro digital” entre as cidades localizadas no chamado Complexo estuarino-lagunar, também conhecido como Lagamar. A inspiração para essa iniciativa surgiu a partir das vivências e intercâmbios entre integrantes do Ponto de Cultura e a rede colaborativa que integra o Museu Vivo do Fandango, que já realizou três encontros de cultura e fandango caiçara na região.
Nesses encontros, a travessia, que dura entre 6 e 8 horas, foi feita por escunas. Fernando Oliveira, educador, biólogo e produtor cultural que organizou a atividade na Escuna Hacker, lembra: “Naquela época, o pessoal do Ponto de Cultura Casa do Fandango registrava o evento durante o dia para publicação em um pequeno informativo, que era impresso na universidade. Distribuíamos os exemplares no baile de fandango”. Com a aprovação do projeto pelo MinC, surgiu a ideia de um cruzeiro a Guaraqueçaba e a Paranaguá, onde fica o Ponto de Cultura Casa Mandicuera.
A proposta do projeto é fomentar o intercâmbio cultural entre os Pontos de Cultura do Vale do Ribeira, incluindo o litoral norte do Paraná, por meio da cultura digital. Para realizar a viagem, uma força-tarefa divulgou as inscrições pelas redes sociais, listas de discussão e por e-mail. “A viagem conseguiu reunir um grupo de pessoas com diferentes interesses e atividades, resultando em um caldo cultural diverso e vivo”, conta Fernando.
Rosana Meneses, 28 anos, socióloga, embarcou animada pela possibilidade de “participar de uma experiência de produção colaborativa dentro de escuna, velejando”. Ela relata que o que mais gostou foi da visita ao ponto de cultura Mandicuera: “A experiência de produzir músicas e vídeos sobre como essa comunidade vê as pessoas que visitam ou pesquisam sua cultura, sem dúvida, é necessária. Afinal, se nós, pesquisadores, apresentamos nossos entendimentos acerca dos povos tradicionais, por que eles não podem falar de nós?”
Durante a navegação, aconteceram oficinas como Criação e produção audiovisual, coordenada pelo Ponto de Cultura Pilar do Sul; Criação musical, dada pelo Ponto de Cultura Nação Caiçara; Oficina de edição e produção musical, da Associação dos Educadores e Educadoras Sociais do Estado de São Paulo. A participação foi gratuita e a ação envolveu investimentos de cerca de R$ 12 mil, contabilizando frete de embarcação, hospedagem e alimentação nos locais visitados.
O arte-educador Ike Banto, que participou da articulação da Escuna Hacker, diz que “rolaram várias conversas sobre pontos de cultura, rede de pontos de São Paulo, cultura, relações sociais”. Mas faz um alerta para as próximas viagens: “Ficamos reféns do gerador do barco, que o não segurou todas as máquinas”. E acrescentou: “Temos imagens lindas tanto em vídeo quanto em foto, mas a distribuição disso também não foi muito efetiva; poderíamos editar esse material, cada um em sua quebrada, e trocar os resultados”.
Caiçaras em defesa da cultura local
O Ponto de Cultura Caiçaras, com sede em Cananeia, litoral sul do Estado de São Paulo, atende integrantes dos Pontos de Cultura do Território da Cidadania do Vale do Ribeira. Criado a partir de um espírito colaborativo, faz parcerias com o Pontão Nós Digitais e o projeto Tecno Difusão e Apoio à Cultura Digital. A proposta do Ponto é a valorização e a preservação do patrimônio cultural do município de Cananeia.
“Nossas atividades são pensadas e realizadas em efetiva parceria com o Coletivo Jovem Caiçara, com a Sala Verde Cananeia e com o Coletivo Educador do Lagamar. Além disso, associações comunitárias também apresentam demandas específicas”, conta o educador Fernando Oliveira. Por conta dessa dinâmica de atuação, o coletivo não tem um espaço físico único. Assim como promoveu o “cruzeiro digital” na Escuna hacker, o Caiçaras também faz ações em praças, centros comunitários, escolas, bares, além de ambientes naturais como praias e manguezais.
O Ponto de Cultura Caiçaras tem como gestor o Instituto de Pesquisas Cananeia (IPeC) e recebe recursos dos Programas Cultura Viva e Mais Cultura, por meio de convênio com a Secretaria de Estado da Cultura e com o Ministério da Cultura (MinC). A iniciativa já foi contemplada nos prêmios Agente Cultura Viva, Escola Viva, Griô, Cultura Digital, Asas, Interações Estéticas, Cultura Viva e Tuxauá.