Das aldeias nativas para a aldeia global
Jovens comunicadores se apropriam da tecnologia para preservar suas raízes.
É a etnomídia no mundo digital.
Rafael Bravo Bucco
ARede nº 93 – Setembro/Outubro de 2013
Takelson Pereira Vasques, 18 anos, pertence à etnia tikuna. Vive em Benjamin Constant, uma das nove cidades da região do Alto Solimões, localizada no sudoeste do Amazonas. Voluntário, é monitor de um grupo de 24 estudantes que escrevem para o site Jovens Indígenas Comunicadores, projeto de educomunicação criado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em parceria com prefeituras e organizações da região. A página entrou no ar em maio deste ano. Além dos alunos de Vasques, mais 26 indígenas de outras duas cidades – São Paulo de Olivença e Tabatinga –, escrevem, fotografam os acontecimentos, fazem entrevistas, editam áudio, vídeo e publicam na rede.
“Para os jovens do Brasil inteiro queremos mostrar que a gente existe, que também tem voz”, define Vasques a missão do site. O grupo se reúne na escola municipal da comunidade tikuna para debater as pautas. Eles usam o laboratório de informática, com acesso à internet. Além dos equipamentos da escola, o Unicef forneceu mais dois computadores de mesa, um notebook, três câmeras fotográficas, uma filmadora, e três gravadores digitais, além de pen drives, cartões de memória e pilhas recarregáveis. “A nossa maior dificuldade é ter que trabalhar no intervalo das aulas dos outros estudantes. A gente fica atrapalhando as aulas deles”, conta.
O projeto foi financiado pelo Fundo para o Alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, criado com recursos do governo da Espanha. “O Unicef espera que o protagonismo desses jovens inspire e motive muitos outros meninos e meninas de todo o Brasil a promover e divulgar seus direitos”, comenta o representante do fundo no Brasil, Gary Stahl.
A iniciativa foi viabilizada, também, pelo apoio de parceiros. Programação e design do site, por exemplo, foram feitos por profissionais do Portal Tabatinga, veículo regional de notícias. A prefeitura cedeu espaço para as oficinas, de três meses de duração. As aulas foram ministradas por profissionais de diversas empresas. Funcionários da Rádio Solimões ensinaram a criar material em áudio e funcionários da Amazon Sat deram aulas sobre vídeo. As formações acabaram em junho.
Gracildo Arcanjo, de 21 anos, foi um dos alunos. Morador de São Paulo de Olivença, lamenta ser o único jovem da etnia kokama envolvido com o movimento indígena na cidade. “Nós estamos há muito tempo em contato com a sociedade branca, então fica difícil conscientizar os demais”, afirma. Mesmo assim, quando soube do projeto, topou participar imediatamente: “É uma forma de resgatar a cultura do meu povo, que muitos acreditam que já se perdeu”.
Durante os meses da capacitação, ele enfrentou 20 quilômetros, diariamente, para chegar a Benjamin Constant. “Tinha de acordar cedo, pegar a canoa, pegar o motor. Hoje me tornei monitor, multiplicando a comunicação entre os jovens”, relata. Arcanjo monitora 14 jovens na comunidade de Colônia Sebastião, em Olivença, dá oficinas em Tabatinga, e é responsável também por outros 14 jovens na comunidade Monsanto. Nem todos escrevem no site.
Cada grupo tem um computador para trabalhar. Muito pouco. Arcanjo reclama: “A situação política no Amazonas é complicada, os governantes veem mais o lado deles, e esquecem do benefício da população. Nós jovens queremos mostrar trabalho, mas não temos apoio dos parceiros, que são fundamentais para manter as oficinas”. A participação do Unicef no projeto foi até maio. As prefeituras se comprometeram a manter a iniciativa, cedendo profissionais para articular novas oficinas e doando equipamentos – o que vinha acontecendo até o fechamento desta edição, conforme o próprio site dos Jovens Comunicadores noticiava.
Ciborgues indígenas
A educomunicação é apenas uma parte de uma iniciativa mais ampla, tocada pelo Unicef com apoio do governo federal, chamada Programa Conjunto de Segurança Alimentar e Nutricional de Mulheres e Crianças Indígenas. As capacitações começaram em agosto de 2012. O objetivo é que os jovens estabeleçam a comunicação com a comunidade e espalhem noções de direitos humanos e dos indígenas por meio das tecnologias da informação e comunicação.
Dessa forma, se tornam o que a pesquisadora Eliete Pereira chama de ciborgues indígenas. “O termo é uma metáfora sobre a nova condição dessas populações, que estão atualizando seus sistemas tradicionais de comunicação de forma impressionante, mas ainda queremos amordaçá-los”, diz.
A pesquisadora lançou, no final de 2012, o livro Ciborgues Indígen@s.br: a presença nativa no ciberespaço (Ed. Annablume), baseada na disssertação do mestrado feito na Universidade de Brasília. Ela chama atenção para o fato de que muitos indígenas têm preferido a comunicação social do Facebook aos blogs ou sites. “Resulta do início da organização deles na inclusão digital. Essas populações estão interagindo com as redes digitais. Têm uma visão positiva sobre a tecnologia, enxergam nisso forma de obter visibilidade, fortalecimento cultural e empoderamento. A forma como estão fazendo uma ação comunicativa mostra uma opção do movimento indígena de entrar em contato direto com os outros”, observa.
Anápuáka Muniz Tupinambá Hã-hã-hãe, 39, é um dos indígenas craques no Facebook. Criador do grupo Raízes Históricas Indígenas, que tem mais de 2 mil seguidores, usa o site para transmitir notícias e mobilizar pessoas em prol das reivindicações dos índios. “Hoje a presença indígena na rede é bem relevante, não só com blogs, mas também nas mídias sociais. O Facebook é uma das principais ferramentas para espalhar informação. O Skype também, porque tem um dos melhores protocolos de comunicação por áudio, bom para o Gesac”, explica. O sucesso é mensurável. “Nós temos uma campanha pela aplicação da lei 11.145/08 de obrigação de ensino da cultura indígena, e conseguimos quase 200 mil compartilhamentos. A lei existe e não é cumprida”, ressalta.
A experiência de Anápuáka, que vive no Rio de Janeiro, longe da aldeia pataxó onde nasceu, começou a navegar na internet em 2001, quando entrou para o grupo que desenvolvia o portal Índios Online, onde atuou até 2007. Depois saiu para criar um blog, onde publicava notícias que ele mesmo produzia. Resolveu levar a outras etnias as possibilidades do blog. “Começamos a trabalhar com a instrução de várias aldeias, montávamos dez, 15 blogs por etnia”, lembra.
Tudo para que mais gente entre em contato com a cultura dos povos. “O conhecimento da população brasileira sobre os índios equivale a um universo de 1500 ou 1700. As pessoas não conhecem as comunicações não verbais. É um trabalho de formiga”, afirma Anápuáka. Por isso, ele acredita que a etnomídia, conteú-
do gerado pelos povos originários, como os que ele e os jovens comunicadores fazem, deve ganhar corpo nos próximos anos. Deve, ainda, garantir a comunicação direta com as demais pessoas na internet, sem perder as raízes, mas originando novos laços.
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