Maduro e bem aceito no mercado, o Software Público Brasileiro ganha instrução normativa e marca registrada
Anamárcia Vainsencher
ARede nº67 – Março de 2011
O software público Brasileiro (SPB) faz quatro anos em 2011, coloca à disposição dos usuários mais de 40 soluções, reúne um coletivo de 90 mil pessoas e milhares de instalações por todo o país. Ou seja, em pouquíssimo tempo, deu mostras inequívocas de aceitação e maturidade. O que quer dizer que a criação do Portal do Software Público Brasileiro, lançado em abril de 2007, inaugurou uma nova etapa no desenvolvimento da política de software livre no Brasil.
O portal apresentou um novo modelo de licenciamento, de gestão e de regras para colocar à disposição soluções criadas pela administração pública e pela rede de parceiros da sociedade. “O software público é uma prestação de serviços à sociedade. Por isso precisa ser livre e ter o formato de política pública”, afirma Corinto Meffe, gerente de inovações tecnológicas da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento. Quando é público, o software tem garantia de bem público e livre, acrescenta. Mais: “Quando o software é apenas livre, pode ser livre hoje e amanhã; depois, não mais. Se for público, não corre esse risco”, explica.
Nesse começo de 2011, duas novidades devem ser ressaltadas na área do SPB: a Instrução Normativa (IN) que o regulamenta e a criação de uma marca registrada. De uma maneira geral, o SPB pode ser definido como um repositório de software livres, cujas aplicações são de interesse público. Esse conjunto de programas é mantido pela SLTI, inclui muitos que foram desenvolvidos na esfera governamental, mas também por outros entes da sociedade civil, entre os quais empresas privadas. Isso indica que há interesse em aderir ao modelo. O que ficou mais fácil com a publicação da Instrução Normativa nº 1/2011 da SLTI, que traz as regras relativas ao desenvolvimento, oferta e uso do SPB.
De início, a IN, publicada em 19 de janeiro no Diário Oficial da União, justifica a existência do SPB como conceito próprio, o que inclui seu caráter estratégico para governos e sociedade, e a existência prévia de acervos de soluções desenvolvidas pelas diversas áreas de governo. A partir da IN, também fica definido que o SPB deve adotar determinado modelo de licença livre para seu código fonte (linhas de programação que formam um software) e para sua marca, fornecer documentação adequada e estar disponível no repositório apropriado.
Para um programa ser incluído como SPB deve preencher alguns requisitos estabelecidos pela IN, como fornecer código-fonte com cabeçalhos indicativos da adoção da licença livre CC GPL* v.2.0 traduzida para o português, ou outra licença aprovada pela SLTI; fornecer roteiros e scripts completos de instalação e configuração; ter manual de instalação que permita ao usuário implantar o sistema sem suporte do desenvolvedor; existência de uma versão suficientemente estável e madura do software; registro no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI); ofertar o uso da marca do software via Licença Pública de Marca.
A Instrução Normativa também enumera um conjunto de restrições, segundo as quais um SPB não pode fazer uso de bibliotecas, componentes, ferramentas, códigos fonte e utilitários proprietários; depender exclusivamente de plataformas proprietárias; depender de um único fornecedor. Além disso, define o que é preciso para que um programa seja analisado para inclusão no SPB, e traz, em seus anexos, um modelo de termo de compromisso que deverá ser firmado com a SLTI, que atua, ao mesmo tempo, como órgão articulador e homologador.
Caso as exigências não estejam atendidas, a SLTI poderá orientar como cumpri-las. Além de entes governamentais, é claro, qualquer pessoa física ou empresa privada pode requerer a inclusão de seus programas no SPB. Isso feito, a SLTI providencia sua publicação no Portal do Software Público Brasileiro, e a criação da estrutura para uma comunidade virtual relacionada a ele.
O estabelecimento de uma Licença Pública de Marca (LPM) veio preencher uma lacuna: criar um arcabouço jurídico para proteção legal dos agentes envolvidos no processo de uso, distribuição e comercialização da marca associada ao software público. Até então, a proteção legal existente se destinava aos autores do código produzido. Com a LPM, ficam assegurados os direitos dos autores mas também o nome e a marca associada ao código. A primeira versão da licença se baseia nos modelos desenvolvidos nas várias versões da Licença Pública Geral (GPL) e na Creative Commons, em especial a Marca de Domínio Público.
Por definição, a marca é um simbolo intangível utilizado em todos os setores da economia. E a LPM tem a finalidade de garantir que qualquer pessoa ou empresa use o respectivo símbolo sem depender diretamente de autorização do dono do produto e da respectiva marca a ele associada, de forma livre e aberta. A LPM se baseia no princípio da propriedade comum (Commons), ou seja, uma propriedade que contém, simultaneamente, elementos do modelo público e do privado. Como tal, é protegida tanto pela sociedade, como pelo Estado.
A Licença Pública de Marca tem caráter coletivo. Isso porque seus direitos patrimoniais são transferidos, por doação, a todos aqueles que aceitam participar colaborativamente do processo originário de manutenção e evolução do produto, conforme as regras estabelecidas pelo doador. A LPM tem, ainda, um caráter de certificação, pois atribui ao doador o direito inalienável da propriedade intelectual da marca, à propriedade comum o direito patrimonial sobre ela, e à coletividade um conjunto de garantias mínimas de preservação dos direitos e qualidades do produto. A LPM também garante a estrutura original da marca e reconhece sua autoria.
Desse modo, pode-se copiar, distribuir, compartilhar e transmitir aquela marca, em qualquer dispositivo físico ou virtual, mesmo com propósitos comerciais, sem necessidade de pedir autorização, desde que se mantenha a marca inalterada e se respeite sua definição e proporcionalidade. Em poucas palavras, a marca poderá ser utilizada livremente, desde que acompanhada de seu símbolo, a letra “R” invertida, em um círculo contornando toda a letra. Contudo, o uso da marca é vedado em versões produzidas como obra derivada do respectivo produto e que não tenham sido aceitas, pelos mantenedores do repositório originário, como contribuição. Tampouco é permitido alterar, transformar ou construir sobre a marca.
Até o momento, foram concedidas três licenças públicas de marca: ao E-cidade, ao LightBase (banco de dados textual multimídia e soluções de gerenciamento eletrônico de documentos, e ao Jaguar (framework de integração de última milha, gratuito em licença GPLv2, criada a partir do software jCompany Developer Suite de propriedade da Powerlogic).
Para usar e multiplicar
As Boas experiências de Arapiraca (AL), Ipirá (BA) e Juramento (MG)
Pelo número crescente de comunidades envolvidas (ver a página 30), é possível inferir que há vantagens, sim, no uso do software público. Tanto para uso próprio, como para replicar a experiência para outras localidades, a exemplo do que faz o município de Juramento (MG). Ou para simplesmente adotá-lo com vistas à melhoria das administrações, como os municípios de Arapiraca (AL) e Ipirá (BA), na Bahia.
Há mais de década e meia na administração pública, o contador Luciano Neres Rodrigues, de Juramento, garante que nunca viu “sistema tão simples e robusto” como o E-cidade, capaz de controlar todas as rotinas de uma administração. Lá, o software público foi parametrizado em 2009, entrou em operação em fevereiro de 2010 e um mês depois o município abandonou o sistema privado então em uso. “Com isso, um custo financeiro de R$ 3 mil mensais em manutenção caiu para R$ 140, pagos para hospedar o servidor internet”, conta. E fim de problemas como a suspensão do sistema privado às vésperas do pagamento dos funcionários por atraso no pagamento.
Como toda novidade de um software público é publicada no Portal do Software Público Brasileiro, e Juramento é o único município que usa plenamente o E-cidade, foi natural o surgimento de interessados na experiência.
Em meados do ano passado, Luciano convidou o contador Amauri Cerqueira, de Iracema (RR), município com 4 mil habitantes, para ir a Juramento, onde passou três dias. “Tudo o que fizemos foi colocado à disposição de Amauri”, diz Luciano. O contador mineiro fez mais. No final de 2010, apresentou a experiência de Juramento aos oito municípios presentes em evento realizado em Piraí do Sul (PR). “Montamos um CD com programa autoexecutável, tiramos umas 40 a 50 cópias do E-cidade, e distribuímos”, relata. Não satisfeito, no final do ano passado, foi ao escritório da representação de Moçambique, em Brasília, para falar do software público. No começo de 2011, Luciano fez o mesmo em Glória de Dourados (MS). E ainda foi procurado pela localidade de Coari (AM).
Principal cidade do agreste de Alagoas, segunda mais populosa do estado, com cerca de 211 mil habitantes, Arapiraca fica a 123 quilômetros da capital, Maceió. Na administração municipal, praticamente toda a infraestrutura (90%) é baseada em software livre (distribuição Ubuntu). Os 10% residuais rodam Windows, segundo Lucas Leão, coordenador do GT Info, o grupo que centraliza as atividades de tecnologia da informação na prefeitura. Com a centralização (o GT está ligado diretamente ao gabinete do prefeito), todos os técnicos da área foram remanejados para seu “departamento virtual”.
Além de usuária do E-cidades, desde o ano passado, Arapiraca adotou o I-educar. Segundo Leão, como o software público foi desenvolvido pela prefeitura de Itajaí (SC), foram necessárias customizações para atender à rede de 62 escolas. “Pegamos o software bruto no portal e contamos com o suporte da Cobra Tecnologia para adaptar o sistema às peculiaridades da rede escolar de Arapiraca”, diz Leão.
O trabalho começou em 2009 e hoje a rede está toda informatizada. Em 2010, as secretarias das escolas começaram a usar. Neste ano os professores vão passar a emitir eles mesmos as notas dos alunos. Acordo com a Universidade Federal de Alagoas resultará na construção do portal do aluno. “O i-educar não é só um software, mas implica toda uma mudança organizacional, normatiza muita coisa”, afirma Leão.
Quanto ao e-cidades, hoje roda a tributação, folha de pagamentos, protocolo eletrônico e patrimônio. Em breve, serão incorporadas as rotinas de licitação, compras, estoques. Até 2012, em parceria com o Tribunal de Contas do Estado, será a vez da área contábil-financeira. Em Arapiraca, a rede de saúde também foi informatizada com o Sisreg.3, do Datasus.
Desmembrada de Feira de Santana (BA), Ipirá tem cerca de 65 mil habitantes e no passado foi a terceira maior bacia leiteira do estado. A administração municipal sempre utilizou software público, de acordo com Pedro Carneiro de Souza, coordenador de informática. Primeiro foi o Cacic. O município já tem atendimento informatizado no INSS, vai implantar a nota fiscal eletrônica e agora é a vez do e-cidades. Lotado na Secretaria de Administração, o “time” de Souza é formado por três pessoas, responsáveis pelo parque computacional da prefeitura. “Temos falta de mão de obra qualificada”, observa o coordenador. Hoje, inúmeras rotinas administrativas rodam em sistemas privados, e a ideia de Souza é começar a usar módulos do e-cidades em locais não informatizados. Alguns sistemas já foram praticamente migrados: RH (90%), Educação (80%). O de Saúde é o mais atrasado (20%). O coordenador de informática diz que todo mundo tem de botar a mão na massa. Assim, o recadastramento dos 1,8 mil funcionários municipais foi feito diretamente por ele e pela própria secretária da Administração.
Conheça os principais softwares livres
Cacic (Configurador Automático e Coletor de Informações Computacionais) – Fornece um diagnóstico do parque computacional e informações como o número de equipamentos e sua distribuição nos mais diversos órgãos; tipos de software utilizados e licenciados; configurações de hardware, entre outras.
SGD (Sistema de Gestão de Demandas) – Desenvolvido em software livre para atender às necessidades da TI, transforma as demandas internas em projetos, para melhorar a qualidade do atendimento do serviço público.
SPED (Sistema de Protocolo Eletrônico de Documentos) – sistema web originalmente destinado a integrar o controle na troca de documentos internos e externos do Exército.
Ginga – É a camada de software intermediário que permite o desenvolvimento de aplicações interativas para a TV Digital, independentemente da plataforma de hardware dos fabricantes de terminais de acesso (setop boxes).
i-Educar – Voltado à gestão escolar, centraliza as informações de um sistema educacional municipal e diminui a necessidade de uso de papel, a duplicidade de documentos, o tempo de atendimento ao cidadão e racionaliza o trabalho do servidor público.
Cocar (Controlador Centralizado do Ambiente de Rede) – O sistema foi desenvolvido pela Secretaria de Educação de Pernambuco para prover todos os seus escritórios com uma ferramenta para monitorar o tráfego nos circuitos da rede de acesso e fornecer alarmes informativos da queda de desempenho nestes circuitos.
i3GEO – Software para internet baseado em um conjunto de outros software livres, principalmente o Mapserver. Oferece dados geográficos e um conjunto de ferramentas de navegação, compartilhamento, geração de análises e de mapas sob demanda.
e-ProInfo (Ambiente Colaborativo de Aprendizagem) – O programa tem licenciamento específico: o contrato segue as regras da Licença Pública Geral (GPL) e deve ser conhecida pelas instituições que pretendem utilizá-lo. Maiores informações no link GNU GPL.
e-cidade – Destina-se a informatizar a gestão dos municípios de forma integrada. Proporcionar economia de recursos, liberdade de escolha dos fornecedores e garantia de continuidade do sistema.
Webintegrator (Produtividade Java web) – Ambiente de alta produtividade para o desenvolvimento de aplicações web em plataforma Java, cria facilidades de uso e acelera o aprendizado técnico dos desenvolvedores.
Prefeitura Livre – Solução de gestão municipal que tem suporte comercial de uma rede de empresas especializadas. Para utilizá-la, basta baixar o código-fonte e configurá-la conforme os softwares livres que a compõem.
OASIS – Permite o acompanhamento das ações da área de TI como rede de computadores, banco de dados, modernização, desenvolvimento de sistemas e sítios, entre outros. Também possibilita acompanhar tempos e custos.