O Brasil debate o futuro da rede
Com o envio do Marco Civil ao Congresso, as discussões deixam de tratar de crimes, para tratar de direitos.
Patrícia Cornils
ARede nº73 setembro de 2011 – Nos próximos meses o debate sobre o futuro da internet no Brasil vai esquentar, tanto no Congresso Nacional, quanto na sociedade civil. O Congresso recebeu, dia 25 de agosto, o Projeto de Lei 2126/11, que propõe um Marco Civil da Internet e se contrapõe a outro projeto, o PL 84/1999, que tramita no Congresso desde 2003 e ficou conhecido como Projeto Azeredo ou AI-5 Digital. O Marco Civil estabelece princípios, direitos e deveres para o uso da internet. O Projeto Azeredo define crimes na internet e suas penas. Desde que o Projeto Azeredo foi aprovado pelo Senado, em 2008, e enviado à Câmara dos Deputados, ativistas alertam para a necessidade de o país, antes de aprovar uma lei penal, de vigilância dos internautas, ter um marco legal que regulamente direitos e deveres na rede brasileira — que seria o Marco Civil.
A partir do encaminhamento do Marco ao Congresso, de acordo com o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), os deputados vão “estabelecer uma discussão cujo centro é o Marco Civil e, ao mesmo tempo, tratar de uma minuta de projeto sobre crimes na internet em alternativa ao relatório de Azeredo”. Ele explica que as discussões deixam de tratar de crimes, para tratar de direitos. Como o Marco Civil vai balizar toda a legislação sobre o tema, a possibilidade é que o Projeto Azeredo fique parado até a aprovação do Marco. E, depois, talvez seja necessário redigir um novo projeto sobre cibercrimes no Brasil. Enquanto o tema ganha a pauta no Congresso, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) organiza, para os dias 13 e 14 de outubro, o 1º Fórum Brasileiro da Internet. O encontro, em São Paulo, pretende reunir cerca de mil representantes da comunidade acadêmica, do terceiro setor, do segmento empresarial e do governo, para pensar os desafios atuais e futuros da internet. A ideia é que o fórum receba a participação de todos os segmentos da sociedade, e não apenas dos especialistas e empresas interessadas no tema, explica o sociólogo Sérgio Amadeu, um dos representantes da sociedade civil no CGI.br. “As decisões [sobre a internet no Brasil] não são apenas técnicas, mas interferem na vida do usuário”, explica ele.
Assim como o Marco Civil, as trilhas do debate no fórum se inspiram no Decálogo de Princípios para Governança e Uso da Internet no Brasil, do CGI.br, que consagra princípios como a abertura da rede, a adesão a padrões, a neutralidade. “O fórum é um trabalho para aprofundar essas questões nas entidades, entre os ativistas, e levá-las para quem ainda não é familiarizado com o assunto. Esse é o início de um processo”, esclarece Veridiana Alimonti, do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que também representa a sociedade civil no CGI.br. Os temas do fórum serão: Liberdade, privacidade e direitos humanos; Governança democrática e colaborativa; Universalidade; Diversidade e Conteúdo; Padronização, interoperabilidade, neutralidade e Inovação; Ambiente legal, regulatório, segurança e Inimputabilidade da rede.
Banda larga em consulta
Essas questões, no entanto, começam a ser tratadas, também, em outras instâncias de governo. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) colocou em consulta pública, em agosto, o novo regulamento do Serviço Público Multimídia (SCM), o serviço de banda larga fixa. Além de definir critérios para controlar a qualidade do serviço de banda larga, o regulamento determina que os provedores guardem por três anos os dados de conexão (também chamados de registros ou logs ip) dos usuários. Essa guarda de informações é considerada inconstitucional, por alguns juristas. Túlio Vianna, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acredita que a guarda fere o artigo 5º da Constituição da República afirma que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. A guarda de logs é um dos temas polêmicos do Marco Civil da Internet, onde está prevista, pelo prazo de um ano.
Outra questão que deve passar por debate na Anatel é a regulamentação da neutralidade da internet no Brasil – sua preservação e garantia está prevista na proposta do Marco Civil, “conforme regulamentação”. Essas decisões vão definir como será o acesso à internet e precisam ser conhecidas dos internautas. Veja, nas próximas páginas, os principais pontos da legislação em debate e do 1º Fórum Brasileiro da Internet.
Marco Civil da Internet | PL 2126/2011
É uma espécie de lei geral da internet no Brasil, que estabelece os princípios para garantir os direitos dos usuários, defini responsabilidades dos provedores de serviços e orientara atuação do Estado. Confira os principais pontos:
• Princípios para a internet – Propõe dez diretrizes para a governança e uso da internet, inspiradas no Decálogo do CGI.br. Estabelece que sejam respeitados princípios como liberdade de expressão, pluralidade, diversidade, abertura, colaboração, exercício da cidadania, proteção a privacidade e dados pessoais, livre iniciativa, livre concorrência e defesa do consumidor.
• Neutralidade da rede – A proposta é que a transmissão de pacotes de dados não seja discriminada em razão de conteúdo, origem, destino, serviço, terminal ou aplicativo. Assim, um provedor de serviços não poderá prejudicar o tráfego de dados de uma empresa concorrente, por exemplo.
• Responsabilização de intermediários – Diz respeito aos conteúdos postados em sites, blogs, portais. Alguns juizes entendem que quem hospeda um comentário pode ser responsabilizado pelo dano causado por uma injúria publicada, ainda que não tenha conhecimento sobre tal conteúdo. O Marco Civil estabelece que o intermediário que viabilizou a postagem do material não seja responsabilizado, a não ser que deixe de cumprir uma decisão judicial que determine a remoção do conteúdo. Assim, se evita que sites e blogs tenham de fazer o controle prévio do que for inserido por terceiros. Isso seria contrário à liberdade de expressão e à natureza colaborativa da rede. Imagine: a cada minuto, 48 horas de vídeos são postados no YouTube. Como seria verificar cada um, antes de ir ao ar?
• Guarda de registros – Cada vez que um computador é conectado à internet, é identificado por um código, chamado de endereço IP, concedido pelas empresas que prestam o serviço de conexão. Essas empresas mantêm cadastros de usuários e podem identificar o computador com determinado endereço IP em uma data específica. Essas informações recebem o nome de “registros de conexão”. O Marco Civil propõe que os registros de conexão sejam guardados sob sigilo, em ambiente controlado e seguro, pelos provedores de conexão, por um ano. Essas informações só poderão ser fornecidas mediante ordem judicial.
• Diretrizes para o poder público – De acordo com o Marco, cabe ao Estado promover capacitação para o uso da internet e diminuir desigualdades no acesso e uso das tecnologias da informação e comunicação. Entre as diretrizes para o poder público, também estão o uso da internet para dar mais transparência e acessibilidade a informações publicas, de modo a estimular a participação social nas políticas públicas.
http://va.mu/EafJ
Projeto Azeredo | PL 84/1999
O PL Azeredo é na verdade, um substitutivo a uma lei proposta em 2003. ganhou esse nome porque é de autoria do deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG), na época senador. O projeto estabelece dez tipos de crimes cometidos com o uso da internet: “Acesso não autorizado a sistema informatizado; obtenção, transferência ou fornecimento não autorizado de dado ou informação; divulgação ou utilização indevida de informações e dados pessoais; dano (a dado eletrônico alheio); inserção ou difusão de código malicioso; estelionato eletrônico; atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública; interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou sistema informatizado; falsificação de dado eletrônico ou documento público; e falsificação de dado eletrônico ou documento particular.”
Com definições muito amplas – o que é um “acesso não autorizado a sistema informatizado?” – o projeto acaba criminalizando também ações cotidianas dos consumidores, como compartilhamento de conteúdos, transferência de músicas já compradas de um CD para um computador, ou outros dispositivos eletrônicos, e desbloqueio de aparelhos celulares. Além disso, coloca penas desproporcionais. A pena para acesso não autorizado é de um a três anos de prisão — enquanto a pena da violação de domicílio é de um a três meses.
O projeto prevê, ainda, que os provedores de acesso mantenham em ambiente controlado e de segurança, por três anos, os registros de conexão (logs) dos internautas. Devem fornecê-los exclusivamente à autoridade investigatória, mediante requisição judicial.
Também obriga provedores a informar, à autoridade competente, denúncia ou indícios da prática de crimes na rede sob sua responsabilidade. Com isso, coloca os responsáveis pelo serviço na condição de vigias dos atos dos usuários.
Serviço de Comunicação Multimídia (SCM)
O regulamento de Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) prevê as condições em que as operadoras devem oferecer o serviço de banda larga fixa aos clientes. É importante porque estabelece, entre outras coisas, metas de qualidade. É definido pela Anatel e está em consulta pública até 11 de setembro. O texto proposto pela agência estabelece que as operadoras devem oferecer gratuitamente, em seu site, um software gratuito de medição de velocidade da conexão. As operadoras consideram impraticável a proposta., mas o CGI.br afirma que ela é viável. Também estabelece metas para a banda larga fixa: a velocidade instantânea não pode ser menor do que 20% da velocidade máxima contratada, tanto para download como para upload, em 95% das medições, nos primeiros 12 meses de validade do regulamento.
Nos 12 meses seguintes, deve chegar a 30% e, a partir daí, a 40%. A velocidade média, que é o resultado da média de todas as medições do mês, deve ser de 60% nos 12 meses após a aprovação do regulamento e dos nove meses de carência. Nos 12 meses seguintes a meta será de 70% e, a partir de então, de 80%. O texto prevê a guarda dos registros de conexão dos internautas por três anos, como o PL Azeredo. O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, afirmou que o texto final desse regulamento vai estar de acordo com o que for estabelecido no Marco Civil da Internet. Movimentos sociais e especialistas na web consideram essa exigência uma invasão da privacidade. Os provedores reclamam que a guarda por tanto tempo aumenta os custos das empresas.
A Oi e a Telefônica criticaram o artigo que trata da neutralidade de rede. Defendem que a Anatel permita que as operadoras cobrem mais dos usuários que demandam mais capacidade da rede. Do contrário, argumentam, a conta será paga também pelos usuários do serviço popular, no Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). Afirmam que a Anatel deve oferecer incentivos para que invistam em redes robustas. E lembram que os reguladores europeu e estadunidense permitem a gestão do tráfego para garantir a viabilidade financeira das operadoras. Pela proposta da Anatel, as operadoras só podem fazer gestão da rede para garantir a estabilidade do serviço e a segurança da rede – e não para priorizar o tráfego de pacotes dos clientes que paguem para que suas informações trafeguem mais rapidamente. {jcomments on}