Lições baianas
Projeto inovador e estruturante, Tabuleiro Digital retoma atividades
em Irecê e busca financiamento no MEC.
Áurea Lopes
ARede nº 84 – setembro de 2012
O ROTEIRO é bastante comum nas histórias de projetos sociodigitais: faz-se um grande esforço para desenvolver uma iniciativa de real impacto na comunidade, os resultados superam expectativas, mas a ação desanda por falta de meios para se sustentar ou por mudanças nas rotas políticas. O que não é comum é quando um projeto que enfrentou dificuldades dessa ordem consegue virar o jogo, voltar a funcionar e ainda batalhar alternativas para corrigir rumos e crescer.
A virada do Tabuleiro Digital na cidade de Irecê (BA) foi comemorada com festa. O telecentro foi reinaugurado dia 18 de maio, após passar cinco meses desativado. Reabriu as portas reformado, com ar condicionado, equipamentos e móveis novinhos em folha. Foram preservados as mesas e os bancos inspirados nos tabuleiros usados pelas baianas para vender acarajé. Mas, o mais importante, também foi mantida a proposta de acesso livre à cultura digital, que é a base do projeto – gerido pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Faced-UFBA) e implantado em parceria com a prefeitura do município, no ano de 2005. Assim, por definição conceitual, nos 36 computadores conectados à internet por uma banda de 2 Mbps roda o sistema operacional Linux. E a produção dos usuários não fica armazenada nas máquinas, mas na nuvem, de forma que todos tenham acesso a tudo.
O Tabuleiro foi instalado em um ambiente público, onde há também o Ponto de Cultura Ciberparque Anísio Teixeira – conquistado a partir do trabalho de alunos de pedagogia da Faced –, uma biblioteca e uma extensão acadêmica da faculdade. É frequentado por moradores da cidade e da área rural, de segunda a sexta-feira, das 8h às 12h e das 14h às 18h. Além do acesso livre, de uma hora por pessoa, oferece cursos de informática básica. Desde a reabertura, foram montadas duas turmas de 30 alunos cada, uma no período da manhã e outra à tarde. Os conteúdos abrangem conhecimentos que vão desde a manutenção e a montagem de máquinas até a utilização de softwares para edição de áudio e de imagem.
Os monitores, chamados de agentes de inclusão, são jovens integrantes do Ponto de Cultura, que faz produção de vídeos para a comunidade e mantém uma radio na internet. E não é por acaso ou por comodidade. A articulação entre os diferentes equipamentos públicos de educação e cultura é outra característica intrínseca à concepção do projeto. “O fundamental é a capacidade do Tabuleiro de articular políticas públicas de educação, tecnologia e cultura”, avalia o professor Nelson Pretto, diretor da Faculdade de Educação da UFBA, um dos idealizadores da iniciativa. O coordenador Ariston Eduão Pereira explica que, no início, o Tabuleiro era usado para a parte prática de formações dos professores da rede municipal de ensino, que faziam aulas teóricas nas salas da Faced.
Mas se foi elaborado com uma receita repleta de ingredientes de qualidade, que razões levaram o Tabuleiro a ser descontinuado? O primeiro desafio, diz Pretto, foi que as máquinas vieram de um patrocínio, da Petrobras, com data para terminar. “Um projeto desse tipo precisa de estratégias de continuidade”, alerta. Pereira lembra que a procura “caiu porque os computadores ficaram ultrapassados, não abriam nem e-mail”. Apesar dos apoios isolados recebidos – do Serpro e da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia –, no final de 2011 restavam apenas duas ou três máquinas. Então o espaço foi fechado. Até que a prefeitura de Irecê resolveu assumir o Tabuleiro e bancar a reforma.
Em paralelo, a Faced busca fontes de financiamento para o projeto original Tabuleiro Digital: formação para a cidadania (ver página 29), do qual se originou o telecentro de Irecê. A faculdade submeteu ao Ministério da Educação (MEC), dentro do edital Proext, uma proposta para ampliação das ações. “Queremos expandir a formação de professores e criar mais um Tabuleiro, na cidade de Arataca”, conta Nelson Pretto. De acordo com o MEC, o resultado do Proext 2013 só será conhecido quando o orçamento da União para o próximo ano for definido.
Espaços livres só para alguns?
Com o propósito de promover a inclusão sociodigital, o Tabuleiro Digital foi criado, em 2005, por um grupo de pesquisa da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Na época, funcionava em duas unidades. Uma no campus da universidade, em Salvador, para atender a comunidade acadêmica e a população do entorno. Outra no município de Irecê, onde foi firmada uma parceria com a prefeitura.
Ganhador do Prêmio ARede 2007, na categoria Setor Público Federal, o projeto foi desenvolvido em software livre e teve como premissa difundir o livre acesso à cibercultura. Por isso, os espaços físicos eram públicos e liberados ao público – o que levou o Tabuleiro instalado na UFBA a conquistar rapidamente a população local – 42,4% dos usuários eram da comunidade, enquanto 57,6% eram da universidade.
Deu-se, então, uma verdadeira “disputa” pelos equipamentos, gerando tensões que resultaram em debates e dinâmicas, conta Nelson Pretto, diretor da Faced. Os alunos da faculdade achavam que tinham prioridade pois usavam o telecentro para “atividades educacionais” e criticavam a comunidade, que usava para jogar, navegar na internet ou se comunicar em redes sociais. “Eles não percebiam o telecentro como um espaço democrático. Os próprios alunos da Pedagogia, que serão os futuros professores, se mostraram preconceituosos em relação ao uso das TICs na Educação”, relata Pretto. A professora Maria Helena Bonilla, da Faced, explicava, em um vídeo produzido a partir das discussões, que a finalidade do Tabuleiro é cultural, o que inclui o aspecto educacional: “Nós não reduzimos a educação a trabalhos escolares; o espaço é para a formação da cultura e é muito salutar que o telecentro permita que a população frequente o ambiente da faculdade”. A polêmica, tema de reflexões em aulas e no site do projeto, estimulou a realização de semanas de software livre na faculdade.
O terreno é fértil. Mas Falta infra
No sertão da Bahia, o município de Irecê é conhecido pela produção de feijão. O que poucos sabem é que essa pequena cidade de 66 mil habitantes não aposta apenas em agricultura. Investe também no desenvolvimento gerado pelo acesso às novas tecnologias. Não só por ter abrigado o Tabuleiro Digital e assumido a continuidade do projeto, este ano. Mas por outras ações, como a Rede de Intercâmbio de Produção Educativa (Ripe). O programa, que utiliza recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), oferece um acréscimo de 1% no salário do professor que desenvolver, em sala de aula, um projeto registrado e socializado na web, sob licença Creative Commons.
A proposta, embora inovadora e arrojada, não teve adesões significativas. De acordo com a secretária de Educação municipal, Margareth Dourado, uma avaliação mostrou que não basta dar estímulos para que os professores se apropriem das TICs. “Faltou formação”, reconhece ela, anunciando que a Ripe será retomada, mas com cursos para os docentes. A confiança da secretária no sucesso da nova investida vem da comprovada vocação tecnológica da comunidade educacional da cidade: todas as escolas da rede municipal têm blogs; cerca de 300 pessoas participam da rede social criada em 2004 por conta das formações feitas pela Universidade Federal da Bahia; e está em pleno vigor a rede dos educadores envolvidos no programa Um Computador por Aluno (UCA).
A grande batalha, no momento, é convencer a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia a colaborar para a consolidação de todas essas iniciativas. “Precisamos apenas de R$ 400 mil para implantar uma rede sem fio”, diz Margareth. O sinal, que seria aberto a uma parte da comunidade, é fundamental para viabilizar o principal objetivo do UCA, que é fazer a inclusão sociodigital dos estudantes e de suas famílias. “Hoje, eles levam os computadores para casa mas não têm internet. É uma pena”, lamenta a secretária.