Muito mais que um acervo de livros
Bibliotecas parque abrem espaço para convivência e atividades culturais em comunidades pobres do Rio de Janeiro
Áurea Lopes
ARede nº 89 – março de 2013
UMA BIBLIOTECA onde o visitante não precisa fazer “silêncio, por favor”. Ao contrário, pode conversar (mas não alto), pode deixar o celular ligado (com o som desativado), pode ouvir música e ver filme (com fones de ouvido), pode navegar na internet… e também pode fazer teatro, revista, reunião da ONG, oficina de poesia, festa do dia das crianças, curso de filosofia, encontro hip hop, entre tantas outras atividades que promovem a produção e a difusão da leitura e das expressões artísticas. Esse é o conceito de Biblioteca Parque, um espaço cultural e de convivência gratuito, para comunidades de baixa renda.
No Brasil, as primeiras bibliotecas desse tipo, inspiradas em experiências bem-sucedidas da Colômbia, foram implantadas na capital carioca pela Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro: em Manguinhos (2010), Niterói (2011) e na Rocinha (2012). Para este ano, está prevista mais uma, que deverá ficar na estação Palmeiras do Complexo do Alemão. Com visual arejado e colorido, espaços integrados e ambientes onde se percebe intensa atividade cultural, as bibliotecas parque conquistaram imediatamente crianças, jovens e adultos das regiões em que se inserem.
No início da subida da Rocinha, onde havia uma antiga clínica de saúde, a C4 – nome dado à biblioteca parque pelos próprios usuários, que entendem o espaço como Centro de Convivência, Comunicação e Cultura – contabilizou, em seis meses de funcionamento, um público de 45 mil pessoas. De terça a domingo, das 10h às 20h, recebe, em média, 400 usuários por dia. Além do acervo de 10 mil livros, mil DVDs e um milhão de músicas, oferece um telecentro com 30 máquinas, onde a conexão é de 10 Mbps – em algumas áreas, tem sinal Wi-Fi aberto. Dispõe ainda de teatro e cineclube, estúdio de gravação, estúdio audiovisual, brinquedoteca e uma cozinha escola onde, em parceria com o Sesi, acontecem cursos de gastronomia.
Um dos motivos do sucesso da iniciativa, diz a diretora Daniele Ramalho, é que os atores e agentes sociais locais foram chamados a se apropriar do equipamento público. A articulação, na Rocinha, envolveu coletivos como Fórum de Cultura, Museu da Rocinha, Pequenos Poetas da Rocinha, o grupo Acorda Capoeira, entre outros. Entre os 40 funcionários, apenas seis não são da comunidade. Nascida na comunidade, onde cria duas filhas, a educadora Cristina Martins, de 44 anos, é uma das responsáveis pelo telecentro. Formada em Pedagogia, ela já foi diretora de uma creche. Ela conta que 70% dos frequentadores do telecentro são crianças, que passam a uma hora a que têm direito de usar as máquinas jogando. Os adolescentes usam as redes sociais e fazem inscrições para escolas. Mas ela reconhece que o acesso livre não basta: espera em breve começar a ministrar cursos de informática, que acha importante para qualificar o acesso.
Em Manguinhos, a biblioteca foi instalada em um antigo galpão de armazenamento de 2,3 mil metros quadrados, todo reformado. Na área externa, com muito espaço e verde, uma bola rola solta nos pés da garotada, que lá de fora consegue ver as estantes onde se distribuem mais de 27 mil títulos. Já tem mais de 4,5 mil usuários cadastrados. Além dos espaços de leitura, salas para reunião de organizações da comunidade, dispõe de cinema com tecnologia 3D e teatro, onde acontecem exposições e oficinas de arte. A unidade de Niterói, onde o acervo é de 50 mil obras, tem mais de 2.500 usuários cadastrados. No espaço de 2,2 mil metros quadrados, funciona também uma sala de exposições.
As bibliotecas parque abrigam projetos mantidos em parceria com iniciativas privadas, contratadas pela Secretaria de Cultura do Estado. O Almanaque da Rede, uma rede social de aprendizagem, é uma opção para os usuários das três unidades. Consiste em um curso de escrita criativa por meio de jogos online. “É um método de aprendizagem gamificado e meritocrático, com o objetivo de motivar a leitura e a escrita”, explica a escritora Sônia Rodrigues, autora do projeto. A plataforma do Almanaque foi criada há cinco anos, voltada para alunos do ensino médio. É comercializada por meio de assinaturas. Os usuários das bibliotecas não pagam nada. Além de ter acesso aos jogos e ganhar prêmios ao final dos desafios, os estudantes cadastrados na rede pela biblioteca são acompanhados e avaliados pela equipe do Almanaque.
Setor X
Projeto que funciona apenas na unidade de Manguinhos, o Programa PalavraLab tem como foco estimular o desenvolvimento de linguagens nas várias formas de produção textual. Para isso, promove laboratórios de linguagens e produção de conteúdo digitais, de animação, de games, cursos e oficinas de escrita criativa.
Resultado dessa prática é o primeiro número da revista Setor X, feita por participantes do laboratório de Produção Editorial Multimídia. Coordenado pela editora Ana Dantes, o projeto, que também prevê conteúdos online e audiovisuais, começou em julho de 2010. Um ano depois, circulavam na comunidade 6 mil exemplares da publicação em papel – que traz um ensaio fotográfico de biquínis entre as prateleiras da biblioteca. A pauta e o processo produtivo foram feitos de forma colaborativa, em aulas semanais. A impressão da primeira edição foi bancada pela Secretaria de Cultura. Para a segunda, em produção, será preciso captar recursos.
Trabalhador da limpeza urbana da companhia pública Conlurb, Haroldo Cesar foi um dos primeiros a aderir ao projeto. Morador de Manguinhos, ele escreveu seu primeiro livro em 2008. Em 2012, com conhecimento renovado pela experiência no Setor X, lançou Vida de Gari, coletânea de crônicas sobre o dia a dia desses trabalhadores. Ele contou o que aprendeu, em entrevista ao site da Universidade das Quebradas (UQ) – projeto da Universidade Federal do Rio de Janeiro que atua junto às bibliotecas parque: “Entre cada crônica do livro tem um verso em sextilha totalizando 32 estrofes e assim formando um cordel. Cordel foi uma das coisas que eu aprendi na aula do Aderaldo Luciano, na UQ”.
Outro autor do projeto Setor X é Alex Sandro, também gari. “Nunca me vi como escritor. Achava que iam rir de mim”, conta o ex-serralheiro de Manguinhos, onde vive hoje com a esposa e uma filha de 7 anos. Animado pelo projeto da biblioteca, começou a escrever em janeiro de 2012. E conta que, hoje, tem “15 livros escritos, oito terminados”. Determinado a viver de sua obra, agora está produzindo um audiovisual e também compondo hip hop: “Eu não consigo parar de escrever, o que eu escrevo é para mim, é para você”, confessa o autor de Manual de Sobrevivência do Apocalipse, sua última obra “terminada”.