conexão social
O doutor do lado de lá
Cidades do Sergipe usam telepresença para
ampliar acesso a atendimento de saúde especializado
Áurea Lopes
ARede nº 97 – março/abril de 2014
A questão da saúde é um dilema, em Lagarto, desde 1645, antes mesmo de o município existir oficialmente – quando uma epidemia dizimou o povoado pioneiro que se formava na região. Mas a brava gente sergipana resistiu. E voltou, criando um distrito, em 1703. Hoje, com cerca de 100 mil habitantes, a terceira maior cidade do estado ainda apresenta um quadro preocupante. Tanto que, só para lá, foram enviados dez profissionais do programa Mais Médicos, de acordo com a secretária municipal de Saúde, Tânia Cristina Prado Corrêa.
Na rede pública, ela conta, há apenas três pediatras para um contingente de cerca de 25 mil crianças até 14 anos. Cada um atende durante onze meses por ano. No mês de férias, o atendimento é suspenso – pelo menos é o que se pode concluir pelas informações do cartaz grudado na porta de uma clínica conveniada com o programa Saúde da Família: “O ginecologista está em férias”. Consultas, diz o aviso, só dentro de um mês. A falta de especialistas – problema que não é privilégio de Lagarto, mas atinge grande parte das cidades interioranas brasileiras – se estende por uma longa lista de áreas médicas.
Nesses casos, assim como em ocorrências que exigem intervenção mais complexa, os pacientes são transportados para Aracaju. Na clínica mencionada acima, a diretora contabiliza uma média de dez viagens por semana. São 78 quilômetros para ir e o mesmo tanto para voltar, a bordo de uma das cinco ambulâncias da rede municipal. Todas “sucateadas”, em “más condições de conservação”, nas palavras da própria secretária de Saúde, durante uma conversa em que pede recursos a um deputado para renovar a frota.
É nesse contexto de precariedade que se inicia um experimento de ponta, com foco inicial na pediatria, constituído a partir do estado da arte da tecnologia aplicada à saúde: aquela mesma clínica recebeu um sistema capaz de conectar médicos e pacientes, em diferentes locais, em tempo real, com imagem em alta definição. O médico generalista da clínica de Lagarto pode, por exemplo, fazer uma consulta junto com um especialista de Aracaju, que interage com o paciente por telepresença, como se estivessem no mesmo ambiente. O médico remoto pode ainda compartilhar com o colega local a visualização de exames. Ou ter acesso ao estetoscópio digital acoplado ao equipamento da clínica, durante o exame do médico local ao paciente. Se o problema for uma lesão de pele, o generalista local pode focalizar o ferimento, que o especialista vê, do lado de lá, ampliado e em detalhes, esteja a 78 quilômetros de distância… ou a qualquer distância. Basta estar conectado ao sistema por qualquer tipo de dispositivo – computador, tablet ou celular.
O projeto de telemedicina com telepresença, uma parceria entre a Universidade Federal de Sergipe (UFS) e a Cisco, que doou os equipamentos e os softwares (ver página 26), foi implantado também na cidade de Tobias Barreto. Em cada um dos dois municípios, uma clínica de Saúde da Família se conecta aos campi de saúde da universidade – o campus de Aracaju, onde funciona o Hospital Universitário, que atende 100% o Sistema Único de Saúde (SUS), e o de São Cristóvão. Profissionais foram capacitados para operar os equipamentos e trabalhar com os softwares e com o banco de dados que vai suportar os aplicativos de gestão e análise de informações.
Além de criar uma alternativa para atenuar gargalos cotidianos, como o transporte de pacientes para a capital – o que significa mais agilidade e qualidade no tratamento, menos gastos públicos –, a proposta é utilizar a solução em três frentes: para diagnósticos colaborativos, com os especialistas da universidade trabalhando em conjunto com os generalistas locais; para promover a troca de conhecimentos entre profissionais da capital e do interior; para a produção e a distribuição de conteúdos de saúde.
Mas não só. Como teste, já foi realizada, por exemplo, uma defesa de tese no campus de Aracaju, com integrantes da bancada sediados em Recife (PE). Com as unidades móveis, as possibilidades se ampliam: alunos de um campus afastado podem, em tempo real, assistir a uma necrópsia ou acompanhar uma visita a um paciente internado no HU. O professor Mario Adriano dos Santos, um dos idealizadores da iniciativa, acredita que, nas consultas, a sensação de telepresença pode fazer toda a diferença. No programa federal Telessaúde, compara ele, as câmaras são de baixa resolução, a conexão não é alta e os hardwares são limitados.
“O que a gente sabe fazer na universidade é pesquisa. E é isso que vamos fazer. Testar e avaliar a solução, para dizer se serve ou não. Qual a aplicabilidade, qual a replicabilidade, qual o benefício econômico”, afirma o alergista, explicando que serão monitorados dados como a quantidade de saídas evitadas, número de aulas que as crianças perderiam com os deslocamentos, redução de gastos públicos. “Acima de tudo, vamos verificar qual o ganho de qualidade de vida nos casos de crianças com doenças crônicas”, acrescenta.
O cubano Yoel Angel Arano, do programa Mais Médicos, desembarcou na clínica de Lagarto há dois meses. Clínico geral, foi ele que intermediou a primeira teleconsulta, feita em janeiro, com o especialista no campus da UFS de Aracaju. “Fiquei impressionado com a qualidade do sistema, acredito que vai ser de grande ajuda para agilizar os atendimentos”, disse ele. Por enquanto, estão disponíveis dentro do projeto especialistas nas áreas de gastroenterologia e alergia e imunologia, que estão entre as ocorrências mais frequentes em lagarto. Mas a ideia é diversificar gradativamente essa oferta.
A pequena paciente, Bruna, de 10 anos, já vai para o 5º ano do ensino básico. Mas estudar não é fácil, quando se sofre de alergia respiratória. “A menina vive doentinha, o pediatra da clínica não conseguia fazer a pobrezinha melhorar”, diz a mãe, Josefa Elizabeth Faria dos Santos. Dona de casa, ela cuida da caçula e mais dois adolescentes, de 16 e 18 anos. Nas horas vagas, vê televisão. E tem celular. Ou seja, está acostumada com as telinhas. No entanto, estranhou a consulta em que, além do doutor Arano, recebeu orientações de outro médico pelo computador.
A garota, até a data em que esta reportagem foi feita, não tinha melhorado. Pudera… dona Josefa não deu o remédio que foi receitado. Por que, mãe?! Ela responde, balançando a cabeça: “Não confiei. O doutor estava do outro lado…!” Primeira lição aprendida com o Programa Avançado de Colaboração e Educação em Saúde, que integra a ação internacional da Cisco Connected Healthy Children: o ser humano precisa de alta tecnologia, mas a alta tecnologia só dá certo se fizer sentido para o ser humano. Técnicos da empresa e acadêmicos concordam: Lagarto tem muito a ensinar.
Consulta conectada
O programa piloto em Sergipe utiliza o serviço de videoconferência Cisco TelePresence e tecnologias de colaboração baseadas em rede, como Show and Share, WebEx e Jabber. Foram montadas quatro salas de telepresença – nas clínicas de Lagarto e Tobias Barreto, nos campi da Universidade Federal de Sergipe de Aracaju e de São Cristóvão.
A Cisco forneceu também duas unidades móveis, que podem ser levadas para salas de aula, leitos hospitalares ou para casas de pacientes. Os carrinhos levam os dispositivos para a telepresença e têm entradas para dispositivos móveis como tablets e celulares, ou equipes médicos com conexão digital.