Conexão Social – O mapa da disputa

Comunidades tradicionais se apropriam de ferramentas de geoprocessamento em defesa de seus territórios Patrícia Cornils


Comunidades tradicionais se apropriam de ferramentas de geoprocessamento em defesa de seus territórios Patrícia Cornils

O governo do Pará
vai determinar, nas próximas semanas, o destino de 1,3 milhão de hectares de terras públicas estaduais, nos municípios de Aveiro, Santarém e Juruti. A decisão é especial, por dois motivos. O primeiro é o grau de preservação da área. Em um estado onde vastas florestas foram derrubadas e transformadas em pastagens, a mata desta região ainda é densa. Além disso, está em debate uma proposta formal das comunidades tradicionais locais para que a exploração não destrua esse patrimônio, do qual eles também fazem parte. Mais que isso, foi seu modo de se relacionar com a terra que garantiu a preservação da área, enquanto a Amazônia segue sendo destruída. Geralmente invisíveis nos debates sobre o uso do território, os povos tradicionais do Brasil estão aproveitando seus conhecimentos, aliados a sistemas de informação geográfica e receptores GPS, para se automapear. E transformam esses mapas em instrumentos de disputa política. Foi o que aconteceu no Pará, onde a apresentação da proposta pelos habitantes da área obrigou os demais interessados a formalizarem as suas.

O método de mapas participativos foi usado na criação de assentamentos coletivos, áreas de proteção integral e terras indígenas. “Esse grupos sociais estão documentando uma realidade que sempre passou desapercebida pelos mapas e documentos oficiais, tornando visíveis os conflitos e reivindicações envolvidas no uso da terra”, explica Ricardo Folhes, consultor do projeto Saúde e Alegria, uma das organizações que apoiou a elaboração da proposta. Os mapeamentos participativos estão sendo usados por um número cada vez maior de comunidades tradicionais para afirmação de sua identidade — o caso, por exemplo, de índios e quilombolas — e posse de seus territórios.

Os mapas participativos foram usados na criação de assentamentos coletivos, áreas de proteção integral e terras indígenas.


Historicamente, o monopólio de produzir mapas pertenceu a militares e cartógrafos a serviço de governos e empresas. Seu objetivo era a conquista de territórios e o domínio dos recursos naturais. Quem não aparecia no mapa não conseguia provar sua existência.

Há vinte anos, eram necessárias imensas e especializadas equipes de geógrafos e cartógrafos para fazer um mapa preciso. Com o desenvolvimento dos sistemas de informações geográficas e dos receptores de GPS, outros grupos da sociedade passaram a ter o poder de fazer mapas. De acordo com o professor Alfredo Wagner Berno de Almeida, coordenador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, a idéia de mapeamentos participativos se alastrou no final dos anos 1990, quando instituições como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento passaram a enfatizar experiências em parceria com as comunidades, e as empresas passaram a incorporar práticas de organizações não-governamentais e o discurso da responsabilidade social e ambiental.

Na primeira geração de mapeamentos participativos, a comunidade era convocada no momento de fazer os mapas, mas não tinha aceso à informação gerada no processo. Hoje, existem experiências variadas. “É incrível ver os múltiplos usos que as comunidades fazem das ferramentas de geoprocessamento e dos mapas”, afirma o professor Aurélio Vianna Jr., assessor da Fundação Ford. Ele observa três usos distintos dessas tecnologias. Um, em planos de manejo ou no zoneamento de comunidades tradicionais e indígenas. “Esses mapeamentos contam com a participação da comunidade, mas são realizados por governos, pesquisadores ou organizações não-governamentais”, constata. Outra maneira de usar os mapeamentos participativos é na definição e implantação de políticas públicas, com a população colocando suas demandas em bases geográficas. Um terceiro uso, para ele bastante inovador, é o da população que faz seu automapeamento. “Mesmo que seja em processos relacionados a outros atores, como nas definições governamentais ou disputas judiciais, essas iniciativas trazem uma forte de afirmação de identidades territorializadas”, explica ele. Essa autoafirmação pode gerar demandas claras de demarcação de terras ou contra empresas.

Neste terceiro caso, está o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), que tem o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e da própria Fundação Ford. O PNCSA atende a demandas de povos e comunidades tradicionais e propicia condições para que as comunidades tenham acesso a noções elementares de GPS ou que alguns de seus integrantes tenham noções de ArcGis (grupos de programas de sistema de informação geográfica) e de outras ferramentas tecnológicas para se autocartografar. O projeto promove “oficinas de mapas” para disseminar esse conhecimento. “Mas quem define a elaboração do mapa, quando e como, selecionando o que é relevante para ser inserido nele, são os participantes das oficinas”, ressalta o professor Alfredo Wagner.

Em cinco anos, foram elaborados, com o apoio do PNCSA, 13 livros, 80 fascículos (com mapas e depoimentos sobre a formação das comunidades, o uso do território, os conflitos existentes), duas exposições de fotos. Uma série de DVDs do projeto foi lançada na 3ª Mostra Amazônica do Filme Etnográfico, em outubro do ano passado. De acordo com o professor Alfredo Wagner, as maiores dificuldades do projeto são as ações de capacitação de agentes sociais para o monitoramento dos territórios em situação de conflito.

A experiência do PNCSA é replicada em outros estados. A Universidade Estadual da Bahia (Uneb) está montando um laboratório de pesquisas cartográficas no campus de Paulo Afonso, com 20 pesquisadores. Eles vão observar as oficinas de mapeamento, farão cursos específicos de domínio dos GPSs e dos programas que trabalham com mapas (ArcView e ArcX), além do uso das câmeras de vídeos e fotografias e edição de documentários. “Ao nos instrumentalizarmos com essas ferramentas, usamos os procedimentos semelhantes para capacitar as comunidades”, explica o professor Juracy Marques dos Santos, diretor do Departamento de Educação da Uneb. A Universidade Federal da Bahia também está montando um laboratório, para pesquisa —, revela o professor Franklin Plessmann de Carvalho.

Softwares proprietários
O irônico é que projetos comprometidos com a produção de informações coletivas são usuários de softwares proprietários de processamento geográfico. Quando o monopólio de produção de mapas foi quebrado, se estabeleceu um mercado de equipamentos para cartografia e mesmo órgãos governamentais passaram a pagar serviços de consultoria diversos. “Com as empresas produtoras de software, há uma convergência para uma nova forma de monopólio, da propriedade intelectual de programas e equipamentos, não atrelada aos Estados mas às empresas privadas”, raciocina o professor Alfredo Wagner. “Os conflitos são permanentes e são muitas as indagações. Paga-se a licença de uso ou se incorre em atos de uso ilegal, a pirataria? Recorre-se aos softwares livres ou se tem uma marginalização permanente?” O PNCSA comprou as licenças dos softwares que utiliza. “Adquirimos para evitar a ilegitimação do que estamos produzindo e nos inserimos em uma discussão crítica por dentro dos circuitos de mercado. Ao mesmo tempo, indexamos a produção via ISBN, e apenas deixamos em alguns casos aberta a possibilidade do creative commons”, conta. Ele constata que a instituição está a meio caminho de uma passagem que não é fácil de ser feita.

Na área em disputa do estado do Pará, as glebas Mamuru, Nova Olinda, Nova Olinda II e Curumucurihá, há madeireiros de olho nas árvores ainda em pé, mineradoras interessadas no ouro e na bauxita da região e grileiros atrás de terras que hoje são baratas mas podem passar a ser bastante disputadas. Há também o interesse de parte do governo em oferecer concessões florestais à iniciativa privada. Os moradores, cerca de 80 comunidades ribeirinhas e proponentes da criação da terra indígena Maró, elaboraram coletivamente uma proposta de ordenamento territorial para explorar a floresta sem destruí-la. Resta ao governo do Pará decidir o que fazer.