Há quase 16 anos, o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) determinou a organização de redes
sociais para garantir os direitos de jovens e crianças brasileiras. Sua
efetivação, porém, depende de um grande esforço de articulação e do
combate à exclusão digital. Patrícia Cornils
Gincana RISolidária, promovida pela Fundação Telefônica, no Jardim Ângela, São Paulo.
Cinco anos antes da disseminação da idéia de trabalho em rede –
popularizada pela internet, que só foi lançada, comercialmente, no
Brasil, em 1995 –, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já
previa a articulação de organizações sociais e órgãos públicos para
formar redes de proteção a crianças e jovens. Porque, sozinha, nenhuma
dessas entidades poderia dar conta dos deveres estabelecidos no ECA,
que completou 15 anos em 2005. Essa atenção integral depende da
atribuição de múltiplas instituições, que precisam compartilhar dados e
informações em tempo real, e, por isso, dependem do uso de tecnologias
da informação e comunicação, explica Antônio Carlos Gomes da Costa, um
dos autores do ECA e presidente da Modus Faciendi, empresa de projetos
de desenvolvimento social.
Mesmo tendo surgido antes da disseminação das redes eletrônicas, o ECA
antecipou essa tendência, porque condiciona a boa realização da
proteção integral ao combate à exclusão digital. Nesse caso, apenas o
uso da tecnologia não resolve o problema – a rede precisa dar acesso à
informação sobre as crianças, suas famílias e a entidades parceiras,
mas também precisa atuar de forma conjunta, respeitando as diferenças
entre seus componentes, que podem ser desde uma secretaria municipal de
saúde até uma pequena creche. “Essa inclusão digital tem que ser
estrutural: não apenas para ensinar a usar os computadores, mas para
que as entidades dominem a forma de funcionamento, o pensamento de
atuação em rede”, observa Elvis Bonassa, da Kairós Desenvolvimento
Social.
São poucas, ainda, as redes eletrônicas de proteção à criança e ao
adolescente no Brasil. O portal RISolidária, da Fundação Telefônica,
conta somente 20 delas, normalmente coordenadas por Conselhos
Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente, em estágios
distintos de desenvolvimento. Todas as cidades que constituíram suas
redes têm portais, bancos de dados com informações sobre a infância e
adolescência, em diferentes níveis de desenvolvimento. Algumas têm
cadastros dos atendimentos, que permitem acompanhar a trajetória das
crianças pela rede de serviços da cidade – escolas, centros de
formação, centros de saúde. Quando funcionam, as redes sociais, com o
apoio das redes eletrônicas, conseguem mapear a situação das famílias,
propor políticas a partir de dados da realidade e acompanhar a evolução
dos índices da cidade.
Captando recursos
Cerca de 150 adolescentes
e crianças participaram das
atividades.A experiência mostra que o trabalho com esses dados facilita a
captação de recursos para projetos da infância e adolescência. Em
Sabará (MG), a rede colaborativa conta com o apoio da Belgo Mineira. Em
Barueri (SP), a primeira doação de uma empresa (a HP, em 2001) foi de
R$ 60 mil. A organização em rede permitiu captar R$ 800 mil, em 2005,
da HP e de outras empresas, como a Petrobras, a Visanet e a C&A.
Também permite acompanhar os resultados das políticas adotadas, como em
Caxias do Sul (RS), onde um cadastro que inclui 68% das famílias em
situação de risco mostra que das 326 crianças vivendo na rua, há quatro
anos, hoje, há apenas cerca de 30, conta Vanderlei Luz, do Conselho
Gestor da Recria, a rede de atenção do município gaúcho.
A articulação de uma rede social – que vai usar a rede eletrônica,
composta de computadores e conexões – é uma tarefa que sequer começou
em muitas cidades. Basta lembrar que providências básicas previstas no
ECA, como a criação de pelo menos um Conselho Tutelar por município,
ainda não foram concluídas. Levantamento divulgado em fevereiro, pela
rede Andi, mostra que dos 27 estados, 19 não contam com conselhos
instalados por município. Em 2005, o Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef) lançou o Selo Unicef Município Aprovado, para
incentivar os prefeitos a cumprir o ECA.
Os conselhos tutelares são responsáveis por assegurar os direitos da
criança e do adolescente, por meio de um conjunto de medidas de
proteção previstas em lei, como a matrícula e a freqüência obrigatória
à escola, a requisição de tratamento médico ou psicológico, a inclusão
em programa oficial ou comunitário de auxílio e o abrigo em entidade.
Também determinam medidas aplicáveis aos pais, que vão do
encaminhamento a programas de auxílio à família, até a inclusão em
programas de orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos. Para
realizar essa tarefa, necessitam de informações sobre o que cada
entidade faz. “Em um portal, pode-se conhecer as entidades, para
encaminhar o jovem. É parte do que o ECA chama de atendimento
complementar”, explica Sérgio Mindlin, presidente da Fundação
Telefônica, que, desde 1999, financia a formação de redes de atenção.
Os conselhos tutelares têm sua própria rede de informações, o Sistema
de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia), software
desenvolvido e implementado pela Subsecretaria de Promoção dos Direitos
da Criança e do Adolescente da Presidência da República. Nesse sistema,
são registradas as violações dos direitos, para a construção de
indicadores locais, estaduais e nacionais. O Sipia, no entanto, não é
usado pelos conselhos. Não é necessário usar o sistema online para
registrar os atendimentos – eles podem ser mandados em disquete, pelo
Correio, para a subsecretaria – mas a falta de formação dos
conselheiros não lhes permite, muitas vezes, sequer perceber que podem
trabalhar assim. O sistema é composto por arquivos pesados e as
entidades têm conexões discadas, lentas. Mesmo que funcionasse
efetivamente, em todo o país, o Sipia deveria contar com interfaces
para que parte das informações fosse usada pelos municípios sem, com
isso, violar o direito à privacidade dos envolvidos nas ocorrências. E
essas interfaces não existem.
Processando informação
Como prêmio da gincana,
oficinas de DJ, teatro e
fotografia com lata.Ao longo dos anos, os municípios que trabalham em rede perceberam
que seus projetos funcionavam melhor quando começavam por um
diagnóstico da situação local. Com isso, mapeiam as zonas críticas da
cidade e desenham o tipo de informação com a qual têm que lidar. E
montam bancos de dados específicos. Foi o que aconteceu em Barueri, que
concluiu, em 2004, um levantamento da situação da infância e
adolescência, no qual foi usada, pela primeira vez, uma metodologia de
diagnóstico da proteção integral. Foram criados índices de proteção
integral baseados em cinco dimensões dos direitos que têm que ser
garantidos a crianças e adolescentes: vida e saúde; educação, esporte,
cultura e lazer; profissão e proteção ao trabalho; liberdade, respeito
e dignidade; convivência familiar e comunitária. Os dados são
principalmente de fontes municipais, com levantamento bairro a bairro,
e demonstram os efeitos de políticas públicas.
O trabalho é resultado de uma articulação de rede social que começou em
2001, com os primeiros passos para a formação da Rede Criança,
incentivada pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do
Adolescente. Hoje, a rede eletrônica é composta por 40 entidades e
acaba de eleger um comitê que vai se responsabilizar pela atualização
dos dados. Um dos indicadores que o levantamento mostrou foi que a
mortalidade infantil da cidade, que era de 19 por mil crianças
nascidas, há cinco anos, hoje é de oito crianças em cada mil, um dos
índices mais baixos do Brasil. Em Caxias do Sul, o diagnóstico é
resultado dos dados recolhidos no cadastro das famílias. O uso dos
números provocou, por exemplo, a formação de um centro para atendimento
a autistas e de atendimento específico para meninas drogaditas.
Essas informações viabilizam outras idéias inovadoras do ECA, como a da
liberdade assistida, na qual crianças e jovens infratores não são
internados, mas acompanhados por orientadores em atividades de
ressocialização. Por exemplo: 80% dos jovens que estão na Febem, em São
Paulo, deveriam estar em liberdade, observa Givanildo Manoel da Silva,
coordenador do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente de São Paulo.
É importante acompanhar a experiência de cidades onde as redes já
funcionam, para copiar boas idéias e evitar armadilhas, diz Gabriella
Bigheti, gerente de projetos da Fundação Telefônica. O controle social
desses e de outros números, possível quando eles são gerados e geridos
em rede, colocaria no devido lugar as políticas para crianças e
adolescentes, diz Givanildo. “Essas informações deveriam subsidiar a
elaboração dos orçamentos, para que fosse cumprida a Constituição, que
determina que é dever da família, da sociedade e do Estado garantir,
com prioridade absoluta, os direitos das crianças e adolescentes”,
comenta. Esse raciocínio inverte o senso comum de que há, no Brasil,
crianças e jovens em conflito com a lei. “Quem está em conflito com a
lei é a sociedade, que não consegue assegurar os direitos com a
prioridade determinada pela a Constituição”, constata Givanildo.
• Em Trabalhando em rede, há um passo-a-passo para a construção de
redes e exemplos de várias cidades. Há links para redes já formadas.
www.unicef.org.br • Relatório A Situação da Infância Brasileira 2006
www.andi.org.br • Pesquisa sobre municípios onde há Conselhos Tutelares
www.redesabara.org.br • Rede colaborativa de Sabará (MG).