Projeto de lei do governo acaba com prisões em rádios comunitárias, mas recrudesce as penas administrativas.
Áurea Lopes
Militares continuam fechando rádios comunitárias país afora, enquanto a presidência da República propõe a descriminalização da radiodifusão. No dia 9 de fevereiro, por exemplo, cinco emissoras foram lacradas, na Cidade de Deus (RJ), por fiscais da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), com apoio de equipes do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Também seguem as condenações a emissoras sem licença de funcionamento, mesmo que tenham pedido de outorga (Veja o texto na página 34) em andamento no Ministério das Comunicações (Minicom). Espera-se que esse cenário mude, com a aprovação de um projeto de lei do Executivo, enviado ao Congresso Nacional no dia 15 de janeiro. Atendendo a uma reivindicação antiga dos setores da sociedade civil ligados à comunicação social, o texto — escrito em conjunto pela Casa Civil e pelo Ministério da Justiça — retira o caráter criminal do ato de operar serviço de radiodifusão sem concessão. Somente continuará prevista no Código Penal, sujeita a cinco anos de prisão, a operação de estação de serviços de radiodifusão que expõe a perigo a segurança de serviços de telecomunicações de emergência, de segurança pública ou de fins exclusivamente militares, ou, ainda, o funcionamento de equipamentos médico-hospitalares.
As outras infrações, como o uso de equipamentos fora das especificações autorizadas pela concessão e a operação de estação de radiodifusão sem concessão deixam de ser crimes e passam a ser consideradas infrações administrativas grave e gravíssima, respectivamente, sujeitas a apreensão de equipamentos, multa e até suspensão do processo de autorização de outorga.
A iniciativa do governo de enviar o projeto foi aprovada pela quase unanimidade dos atores desse segmento — as poucas vozes dissonantes foram de alguns parlamentares sintonizados com o ministro das Comunicações, Hélio Costa, e do presidente da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão, Daniel Pimentel Slaviero, que considerou o projeto um “retrocesso”. Retrocesso, na opinião dos militantes sociais de radiodifusão, são as sanções administrativas previstas no documento, que se tornaram mais pesadas.
Do jeito que foi escrito, o projeto de lei também cria uma distorção que fere os princípios constitucionais, na opinião de Gabriel de Carvalho Sampaio, do Escritório Modelo D. Paulo Evaristo Arns, e especialista em Ciências Criminais. “O PL equipara situações diferentes. O responsável administrativo pela rádio comunitária está sujeito à mesma pena do que quem opera os equipamentos. Isso é desproporcional, do ponto de vista jurídico”, alerta o advogado, para quem essa incoerência não é casual, mas “decorrente de pressões das corporações da mídia contra um real avanço na democratização da comunicação social”.
Moeda de troca
João Brandt, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, questiona: “Se a intenção era descriminalizar, por que utilizar o projeto para tratar de sanções? A impressão que dá é de que a descriminalização foi usada como moeda de troca. Tira-se o crime, colocam-se penas mais pesadas”.
Apesar desses problemas, o coordenador-executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), José Sotter, admite que a proposição traz avanços, como a possibilidade de cassação da autorização da rádio comunitária quando houver transferência a terceiros dos direitos de execução do serviço, prática de proselitismo ou quando a rádio permanecer fora de operação por mais de 30 dias. Porém, a questão do proselitismo, cuja pena prevista é de cassação e de retenção do equipamento, é polêmica. “Vamos ficar à mercê de interpretações subjetivas de cada juiz. É muito difícil definir exatamente o que é proselitismo”, adverte Brandt.
O presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, deputado Walter Pinheiro (PT-BA), acha que a proposta poderá propiciar a limpeza da base das rádios comunitárias hoje em funcionamento. “De cada dez rádios comunitárias, oito não atendem as especificações”, diz. Sotter confirma: atualmente, são 3.652 rádios autorizadas, mas apenas 20% desse número são realmente comunitárias. “As outras são ligadas à igreja, a políticos e a empresários de publicidade”, acrescenta.
De acordo com o coordenador da Abraço, outras 12 mil rádios funcionam clandestinamente. Inclusive a dele, a Rádio Comunitária Esplanada, que tenta autorização desde 1998. “O problema maior é a burocracia”, diz Sotter, que defende a reabertura das delegacias regionais do Minicom. Brandt concorda e também defende que não haja punição para rádios que estejam buscando a regulamentação: “O processo é absurdamente demorado, leva anos”, reforça.
Todas essas questões poderão ser analisadas e modificadas durante a tramitação do projeto de lei no Congresso, garante Pedro Abramovay, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. “O fato de o presidente da República ter assinado o projeto já deixa claro qual é a prioridade desse assunto no governo. O projeto está no Congresso, e isso é um avanço inegável. Agora, está aberto a discussões, ajustes”, diz Abramovay. Assessor especial da Casa Civil, André Barbosa acrescenta que “o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumpriu o que prometeu e estabeleceu um novo patamar para a comunicação pública”.
(Colaborou Lúcia Berbert)
infrações como a operação de estação de radiodifusão sem concessão deixam de ser crime
Dia 4 de fevereiro, a rádio da Comunidade Novo Ar (Comnar), em São Gonçalo (RJ), foi condenada a fechar as portas e prestar serviços comunitários, por falta de licença do Ministério das Comunicações para funcionamento. De fato, a outorga ainda não foi concedida, apesar dos mais de dez anos de esforços para regularização da emissora. O pedido de legalização foi feito em 1998, assim que foi criada a lei que regulamenta as rádios comunitárias – mesma época em que a Novo Ar, já com dois anos de atividade, realizava oficinas financiadas pelo próprio governo federal para capacitação de jovens em produção, operação e locução. “Até o momento não tivemos resposta, nem sabemos como está o processo”, conta Graça Rocha, coordenadora da Comnar.
A rádio tem um alvará, expedido pela lei municipal 019/2001. Mas isso não evitou o fechamento. A decisão do 1º Juizado Especial Federal de São Gonçalo, com base no artigo 70 da lei 4117/62, determinou a interrupção de um trabalho que foi considerado de utilidade pública. A rádio faz campanhas para vacinação, em favor do aleitamento materno, pelo combate à violência infantil e à violência contra a mulher – em 2005, o programa “Mulher em ação” ganhou um prêmio do Fundo Ângela Borba.
A sentença também pôs fim a uma iniciativa reconhecida até por instituições internacionais, como a Unicef, que, em 2003, junto com o Banco Itaú, concedeu um prêmio à Novo Ar pelo “Herdeiros do Futuro”, um programa de rádio para crianças e adolescentes. Um ano antes, a rádio comunitária Novo Ar ganhou outro prêmio, Experiência Inovadora, do Banco Mundial, pelo projeto de inclusão do primeiro telecentro com foco em radiodifusores locais. Na lista de conquistas, estão ainda moções na Câmara dos Vereadores do município e na Assembléia Legislativa do Rio, em 1998 e em 1999. A condenação à rádio comunitária Novo Ar representa uma severa punição. Que será imputada à comunidade de São Gonçalo.