Novas tecnologias mudamm a qualidade de vida nas comunidades.Patrícia Cornils
ARede nº50,agosto 2009 – Dona Marta é o morro. Santa Marta é a comunidade, primeira favela Wi-Fi do Brasil, onde vivem cerca de dez mil pessoas. A rede pública sem-fio foi implantada em maio, no contexto de dois grandes projetos do governo do estado do Rio de Janeiro. Um deles, iniciado no Dona Marta em novembro de 2008, é a ocupação de comunidades dominadas pelo tráfico. A novidade é que a ocupação não é somente a polícia instalada na comunidade, mas uma oferta de serviços públicos essenciais. O outro projeto é um plano de conectividade para todo o estado, com banda larga gratuita a partir do backbone da Rede Rio, mantida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
A notícia de que haveria uma rede sem-fio disponível para todos os moradores da Santa Marta chegou no final do ano passado, conta José Mário Hilário dos Santos, o Zé Mário, presidente da associação de moradores da comunidade. “Veio com a informação de que a Polícia Militar ocuparia o morro, para não mais sair”. Morro ocupado, traficantes expulsos, o cotidiano começou a mudar. Foram desligadas as redes de “gatos” de TV a cabo e de internet. Em março, as 16 antenas Wi-Fi começaram a funcionar.
A rede de energia elétrica, instalada pelos moradores há mais de 40 anos, está sendo substituída por uma nova, da Light. Barracos estão sendo substituídos por novas casas e pequenos prédios, uma quadra de esportes foi inaugurada e o Plano Inclinado – bonde
que transporta as pessoas morro acima e abaixo – entrou em operação no final de maio. Antes, quem mora na parte mais alta do morro tinha que enfrentar, à pé, quase um milhar de degraus para chegar em casa. Além disso, serão construídas 64 moradias e realizadas melhorias em outras 265, com recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), do Ministério das Cidades, e do Governo do Estado do Rio de Janeiro.
A rede sem-fio custou R$ 496 mil (inclusive manutenção por um ano) e foi financiada com recursos da Faperj. A linha de financiamento é a APQ1. O acesso a esses recursos é condicionado à existência de um projeto de pesquisa – neste caso, a cargo do Centro de Telecomunicações da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Cetuc). O planejamento e a execução são feitos pela Mibra Engenharia, parceiro de soluções Motorola no Brasil. O sinal é liberado para toda a comunidade, mas ainda há áreas de sombra no morro, uma geografia acidentada e tomada por casas dos mais variados formatos e tamanhos. A pesquisa do Cetuc é exatamente sobre isso: propagação em terrenos acidentados.
Uma equipe da comunidade, treinada pela Mibra, se encarrega de dar a primeira consultoria aos moradores, a fim de fazer a medição do sinal em cada local e ajudá-los a escolher a antena/modem mais apropriada. Na maior parte dos casos, basta comprar um modem de cerca de R$ 60,00. Em locais mais complicados, são necessárias antenas externas, de cerca de R$ 200,00. Comprar esses equipamentos é, agora, a principal barreira para o uso da rede. Além, claro, da necessidade de ter um computador. Uma pesquisa feita antes da implantação da rede mostrou que havia 1,5 mil computadores no morro – a maior parte, na época, sem conexão à internet. De acordo com o professor Marco Antônio Grivet, coordenador, no Cetuc, do projeto Dona Marta Digital, o tráfego gerado pelo morro oscila em torno de 3Mbps e a capacidade da rede é suficiente para acomodar a demanda por anos. Na opinião de um jovem usuário da comunidade, a rede é ótima. Dá para baixar música? “Dá para baixar jogo de futebol!”, responde o garoto.
Zé Mário tem uma conexão de 3G em seu celular, pela qual paga R$ 70,00 por mês. Mas de vez em quando usa a rede do morro, ligada no computador da filha. “É mais rápida”. Desde a ocupação, conta ele, os moradores têm tranquilidade. Não há mais ninguém com granadas ou fuzis nas vielas – a não ser a polícia –, pode-se dormir sem medo de invasão de traficantes ou incursão policial. “Meu trabalho, agora, é garantir que o estado cumpra tudo o que prometeu”, diz. A presença do estado na comunidade, neste caso, inviabilizou a permanência do tráfico, seja por meios militares – há um batalhão da PM e soldados com presença permanente na comunidade –, seja pela garantia de direitos aos seus cidadãos. Uma nova cultura está em formação na comunidade, acredita Zé Mário.
A energia elétrica é um exemplo: ninguém pagava conta de luz, agora os hábitos de consumo de energia precisam ser revistos. Tudo está em construção, literalmente: cabos e transformadores da nova rede elétrica sobem o morro. As pessoas têm medo, ainda, de que uma eventual saída da polícia resulte em um novo ciclo de violência. Por enquanto, as ruas da Santa Marta estão em paz. E ali, para dez mil pessoas, o acesso à internet é um direito, um serviço público como outro qualquer. “Internet é a ferramenta do mundo, quem não tem acesso está fora do planeta”, avalia Zé Mário. “Por isso é tão importante”.
A segunda rede sem-fio pública implantada em comunidades no Rio de Janeiro foi a da Cidade de Deus, que começou a operar em maio. Doze vezes mais populosa que a Santa Marta, a Cidade de Deus ainda não está totalmente pacificada. Em localidades como o Karatê e a Rocinha 2, a polícia não entrou e ainda há tiroteios. A rede segue a ocupação da polícia, e o ritmo de sua expansão é ditado pela Secretaria de Segurança Pública, explica o professor Flávio Hasselman, responsável, no Cetuc, pela rede da Cidade de Deus. Implantar as redes nas áreas pacificadas garante a integridade da operação, diz ele. “Integridade” quer dizer equipamentos em funcionamento, condições de segurança para os técnicos trabalharem.
Assim como aconteceu no Dona Marta, um aquário da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec), com dez computadores, foi instalado na praça Padre Júlio Groten, na comunidade, para oficinas de internet com os moradores que nunca usaram computadores. O aquário ficará na praça até outubro, quando os cursos deverão passar para o Centro de Vocação Tecnológica a ser inaugurado na Cidade de Deus. “Já havia computadores e internet na Cidade de Deus, então o impacto dos cursos é maior para as pessoas mais pobres, que não têm recursos para obter nem um nem outro”, explica Luiz Roberto Baptista Nunes, coordenador de turno do Cidade de Deus Digital.
A rede da Cidade de Deus tem 36 antenas instaladas, mais quatro rebatedores. Foi implantada da mesma maneira que a do Dona Marta: a iniciativa é da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia, com projeto de pesquisa do Cetuc e equipamentos e projeto de rede da Mibra. No caso da Cidade de Deus, os monitores das oficinas são da Central Única das Favelas (Cufa), pagos pela Faetec. A rede ainda é instável – nas duas visitas da revista ARede à Cidade de Deus, a internet estava fora do ar – mas tem uma capacidade grande de transmissão. De acordo com o professor Hasselman, há 7 Mbps disponíveis para a Cidade de Deus, em ampliação. A capacidade de transmissão deverá chegar a 45 Mbps em setembro.
A rede vai continuar crescendo. O professor Grivet anuncia: o próximo projeto, que ainda aguarda sinal verde dos órgãos de segurança pública, vai abranger os morros Cantagalo e Pavão/Pavãozinho.
Além da Cidade de Deus e do Dona Marta, as orlas de Copacabana, Ipanema e Leblon também contam com redes sem-fio, dentro do projeto Iluminação Digital. No dia 10 de agosto começaram as obras para a implantação da rede na Baixada Fluminense, cuja primeira etapa englobará o 1º Distrito de Duque de Caxias, São João de Meriti e Belford Roxo. Na Baixada, serão investidos R$ 3,1 milhões para instalar 500 antenas e serão beneficiadas, de acordo com a Secretaria de Ciência e Tecnologia, 2,7 milhões de pessoas na região. Será a maior cobertura desde que o programa Iluminação Digital começou a ser implantado.
A cobertura em cada localidade vai variar de acordo com fatores como áreas de sombra e rural. No primeiro distrito de Caxias, por exemplo, a abrangência será de 100%. No segundo distrito, de 70%. Em São João de Meriti, será de quase 100%. O projeto da Baixada é desenvolvido pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com apoio da Faperj. Segundo o secretário estadual de Ciência e Tecnologia do Rio, Alexandre Cardoso, a implantação de redes Wi-Fi nas comunidades de baixa renda “possibilitará a criação de programas de ensino técnico à distância. Com isso, promoveremos a inclusão social dessas pessoas. O estado já tem programas de ensino à distância e a internet vai ajudar nesse processo. Além disso, estamos produzindo conteúdo”, diz ele. Um dos conteúdos em desenvolvimento é um portal de empregos.