Em Salvador, a Eletrocooperativa usa a tecnologia para ensinar jovens a
produzir música e colocá-la no mercado, criando um arcabouço para a
primeira gravadora livre do Brasil. Patrícia Cornils
Tecnologia, generosidade e groove. Essas foram as três palavras usadas
pelo DJ Dolores, sergipano que vive em Pernambuco, para descrever a
Eletrocooperativa, um instituto criado em 2003, em Salvador, para fazer
inclusão musical usando recursos eletrônicos. Tecnologia porque a
Eletrocooperativa oferece cursos de informática básica e de produção
digital, além de equipamentos e programas para que jovens dos blocos e
grupos afro da cidade registrem sua produção musical, independente do
gosto e exigências de grandes gravadoras. Treinam a moçada em software
de edição de música, ensinam teoria musical e, ao longo de um processo
de aprendizado que dura, no mínimo, um ano e meio, também discutem
temas transversais como cidadania, empreendedorismo (como se empregar,
ganhar dinheiro, empreender a vida), sexualidade, paternidade
responsável, relação com drogas. Hoje, 47 jovens, de 14 a 24 anos,
compõem as turmas do instituto, instalado em um prédio restaurado pelo
Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), no
Terreiro de Jesus, Pelourinho, Salvador.
Generosidade porque toda a atividade da Eletrocooperativa pressupõe o
acesso livre a conhecimentos, a equipamentos e também à produção
cultural que resultar dessa interação. O instituto oferece seus
recursos tecnológicos aos músicos da cidade – não apenas aos alunos. O
repertório da casa também estará à disposição do público, com licenças
Creative Commons, por meio de um portal a ser lançado até março. Ou em
sete CDs lançados em novembro, quando o instituto completou dois anos e
meio de atividades. Os CDs são vendidos por R$ 5,00, em tabuleiros nas
ruas de Salvador, para quem não tem acesso à internet. A produção
também é generosa: um dos discos é um banco de mais de 300 loops
(frases musiciais) de percussão criados em Salvador, gravados por
alunos da Eletrocooperativa e por músicos convidados. Os loops são
essenciais na produção digital e há carência de frases brasileiras no
mercado. No portal da Eletrocooperativa, poderão ser baixados
livremente. Os loops foram usados na produção do Eletro Erê, CD de
cantigas populares infantis revisitadas desenvolvido nas aulas das
quatro turmas de 2005, desde a seleção do repertório até o resultado
final. O Boi da Cara Preta diz: “dorme nenén, prá você conseguir, prá
amanhã acordar cedo e vender o amendoim. Acorda nenén, que o dia vai
começar. Em vez de trabalhar, é melhor ir estudar”.
O groove, só ouvindo, nesse e nos demais discos, que unem a cultura
tradicional dos tambores de Salvador à linguagem global do hip hop. Um
deles é da Eletropercussiva, banda que nasceu dentro do projeto. Outros
dois do Império Negro e do Afrogueto, grupos de hip hop formados por
alunos, e outro, “O Folclore, a Alma dos Povos”, CD do DJ Mário,
instrutor de DJ do instituto. “O Folclore, a Alma dos Povos” é um disco
literalmente caseiro: foi feito por Mário em sua casa, sem computador,
somente com um rádio AM/FM, dois toca-discos e um sampler simples.
Todas as faixas foram gravadas ao vivo. Para compor esses discursos
musicados, ele criou batidas no sampler, sintonizou um programa de
rádio evangélico, usou um vinil de piadas do Ari Toledo, colocou
depoimentos sobre homosexualismo em uma faixa chamada “Somos Todos
Livres. Será?”. Usou também, entre muitos outros, sons de Paulo Moura,
Tom Zé, Charles Mingus, e da tribo Bororo. E canetas Bic para fazer a
capa.
Quando foi à Eletrocooperativa pedir ao músico Gilberto Monte,
coordenador artístico do instituto, dicas para trabalhar as
composições, tinha um disco pronto na mão. “Chegamos a gravar outras
idéias que ele tinha, mas decidimos guardar para um novo disco, para
não quebrar a unidade do CD”, conta Gilberto. Faixas do CD foram usadas
em filmes, como trilhas. Uma delas no documentário Cinema
Transcendental, do Coletivo Mote. Mario diz que seu trabalho é mesmo
isso: uma espécie de documentário sonoro, um repertório experimental de
trilhas para fazer sentir e pensar. “Não é um CD para bombar; é para
mexer mais com o sentimento, mesmo que mexa menos com o corpo, e
mostrar a possibilidade que os DJs têm de mixar sons ao vivo”, explica.
“Ele superou a dependência do ter, de ter que comprar para fazer
coisas”, admira-se Gilberto.
As aulas, a produção musical, os CDs, o Portal Eletrocooperativa e a
Rádio Digital Eletrocooperativa são o arcabouço da primeira gravadora
livre do Brasil, afirma Reinaldo Pamponet, presidente do instituto.
“Somos um grande laboratório de referências do que pode ser feito para
criar um novo tipo de gravadora”, diz ele. Laboratório, porque o que a
Eletrocooperativa procura não é uma fórmula, mas novas possibilidades.
Possibilidade, diz ele, é melhor que solução, porque traz em si a idéia
do próximo passo. “Não adianta ter a visão voltada para criar um
domínio”, diz ele. A Eletrocooperativa mostra que várias possibilidades
desdenhadas pelas grandes gravadoras são realizáveis. A primeira é
estimular uma produção cultural local, que reflita a comunidade onde
circula e seja acessível, em termos econômicos, a essa comunidade. A
segunda é a relação, sem intermediários, entre os artistas e o público:
o portal será alimentado pelos próprios músicos, que também vão
escolher que tipo de licença Creative Commons (saiba mais)
usar, no momento de carregar suas faixas no site. A forma de produzir
também é importante, observa Gilberto: as músicas não são gravadas e
maquiadas, porque a idéia é não distanciar as pessoas do processo de
produção e nem de seu próprio processo de descobertas e
aperfeiçoamento. “Os alunos já gravaram ensaios e depois chamaram
músicos de fora para incrementar o som. Isso criou novas possibilidades
de olharem a própria música e concluir em que ela é bacana e em que não
é”, conta ele.
Outra possibilidade é criada com a oferta de um equipamento cultural
para que os artistas independentes façam sua produção – caso do próprio
Gilberto, que gravou seu disco, o Caçuá Eletrônico, no estúdio da
Eletrocooperativa. Um dos motivos para colocar tudo isso à disposição
dos artistas e do público, de forma livre, é a não-apropriação de
recursos que a Eletrocooperativa recebe do patrocinador. “Se temos um
projeto social, com financiamento, não há outra forma de lidar com o
resultado além de gerar possibilidades”, diz ele. Mesmo porque,
ressalta, a grande pauta da casa é criar novas formas de trabalhar a
indústria cultural brasileira.
A Eletrocooperaiva também dá aulas na escola Kabum!, do Beco da
Cultura, em Nordeste de Amaralina, em parceria com o Instituto Telemar.
Com os 47 alunos, eles somam mais de 400 jovens envolvidos nas
atividades do instituto. Essa metodologia de inclusão musical será
replicada nas outras escolas Kabum! e, a partir de março, na cidade de
Arcoverde, em Pernambuco, onde a Eletrocooperativa vai instalar outro
ponto de capacitação e produção musical.
www.djdolores.blogspot.com/ • Blog do DJ Dolores.
A coluna sobre a Eletrocooperativa foi publicada em dezembro de 2005.