conexão social
Uma multidão de professores
A proposta do crowdlearning é democratizar a transmissão de conhecimento,
especialmente do que não se aprende no ensino formal.
Rafael Bravo Bucco
ARede nº 97 – março/abril de 2014
Qualquer pessoa que saiba muito de uma coisa pode ser professor, ao menos por um dia. E mesmo que não saiba tanto assim, pode organizar um encontro onde os participantes vão trocar ideias e compartilhar conhecimento. Isso é crowdlearning, fenômeno recente, mas que já tem uma horda de militantes. Crowdlearning é o mesmo que aprendizado coletivo. Se traduzido literalmente do inglês, significa aprendendo com a multidão. É a transmissão do que funciona na sabedoria popular – não crenças infundadas, como “não pode tomar leite com manga”; mas receitas da “melhor” muqueca da cidade.
De onde vem a desigualdade? Meritocracia existe? Feminismo é papo de homem? Essas perguntas são tópicos de eventos, aulas ou reuniões organizadas por meio do Cinese.me, plataforma nacional online que intermedeia uma iniciativa de crowdlearning. No site, os usuários organizam eventos, encontros presenciais, palestras ou bate-papos. Quem tem a ideia se vira para arranjar local e professor. Em compensação, tem a liberdade de cobrar quanto quiser dos participantes. Os eventos têm sempre número limitado de inscrições. As criadoras do site, as irmãs Ana e Camila Haddad, sugerem que os preços sejam baixos, para o conhecimento fluir democraticamente.
O Cinese.me foi fundado em agosto de 2012. As irmãs largaram suas profissões para abrir a empresa. Ana queria trabalhar com educação; Camila, com colaboração. “Comecei a pesquisar colaboração como paradigma de uma nova economia. Uma distinção entre colaboração e competição, e como isso gerava interesse humano”, conta Camila.
Desde então, foram 344 encontros marcados pelo site, aos quais compareceram 2.397 pessoas. Há 5.620 usuários cadastrados. Quem promove um encontro é chamado de revelador. Quem participa, é descobridor. “O que a gente quer é prover alternativas para as pessoas se encontrarem e ajudarem umas às outras. É um pontinho dentro desse grande movimento de colaboração”, diz Camila.
A inspiração teve influências de fora. Em Londres, na Inglaterra, onde fez seu mestrado, Camila conheceu iniciativas como a Be Amazing (seja incrível), em que idosos são convidados a transmitir o que sabem aos mais novos, e a Trade School (escola de trocas), em que aulas são ministradas em troca de algo, nunca por dinheiro.
O Cinese.me também tem como viés a descoberta da cidade. “O que a gente faz é mapear espaços, principalmente em São Paulo”, conta. Além de locais para eventos, casas de gente disposta a receber desconhecidos, rolam encontros em praças e pontos ao ar livre. “A troca presencial é mais transformadora. Novas parcerias e projetos nascem porque pessoas diferentes se encontram”, explica.
A plataforma, construída em Ruby on Rails, tem código aberto e pode ser livremente reutilizada. “Se a ideia é estimular o conhecimento livre, tem que compartilhar. Pode copiar e fazer outro empreendimento. Mais importante que o conhecimento em si, é o uso que a gente faz dele”, reflete Camila.
Um dos eventos mais legais divulgado no site foi um encontro gratuito sobre como criar sites. Outro, ensinou a preparar moqueca. Ambos reuniram pessoas muito diversas. A moquecada fez sucesso, tanto que se repetiu mais duas vezes. “A gente critica muito o papel da escola como único julgador do que é conhecimento válido e a avaliação dos estudantes sem considerar a diversidade”, diz a empreendedora.
Por isso o Cinese.me não tem curadoria. Qualquer aula, sobre qualquer assunto, pode ser proposta. “A gente só não deixa conteúdo ilegal”, observa.
Outros sites brasileiros de crowdlearning são o Nos.vc e o Iscola.cc. O primeiro é o maior do Brasil, com cerca de 11 mil cadastrados, metade tendo participado das 360 atividades realizadas. A galera fica no mesmo espaço que as meninas do Cinese.me, em São Paulo, divide eventos e o interesse em fazer as pessoas se verem. “Hoje, o Nós.vc não é um site para fazer cursos. Nem só pra aprender. É uma comunidade aberta para fazer encontros de todos os tipos, compartilhar o que a gente ama e viver o calor do encontro. Já tivemos encontros com cara de festa, com cara de imersão, jantares etc.”, diz Daniel Barros, um dos fundadores.
O Iscola.cc, com “i” mesmo, foi criado em 2013 pelos sócios da Perestroika, uma escola de atividades criativas, na qual especialistas selecionados dão aulas, em parceria com a agência de conteúdo digital W3Haus. No Iscola.cc, porém, qualquer um é o mestre. “Achamos que esse é o caminho natural da educação, que cada vez mais não educadores se sintam convidados a participar de processos de ensino”, diz Tiago Mattos, sócio da Perestroika.
Os resultados da plataforma ainda são acanhados, tanto que Mattos nem divulga números. “Nunca teve uma grande campanha de divulgação, e com isso não houve a procura que poderia ter. Estamos repensando para ver o que pode ou não melhorar para ganhar tração”, observa. Por isso, Mattos cogita levar a plataforma a escolas, e propor que os alunos compartilhem entre si o que sabem sobre as disciplinas cotidianas.
Rever a metodologia tradicional de ensino motivou a criação do Iscola. “No crowdlearning a gente permite que a aprendizagem parta da base para cima. Parte do pressuposto de que o conhecimento está em qualquer lugar”, opina. O site também não tem seleção de conteúdo ou encontros. “Só faríamos a curadoria se existisse algo muito absurdo, mas até coisas mais engraçadas, como aprender a assoviar, a gente encara numa boa, permite que tenha seu espaço”, diz.
Como olhos nos olhos são fundamentais no crowdlearning, há quem se preocupe em criar o ambiente físico onde o saber pode ser trocado, sem restrições. O TIP é um espaço localizado em Santos (SP). Ludmilla Rossi de Oliveira, que fundou o local, explica que no começo o objetivo era facilitar a formação profissional na cidade. “Santos é carente de atividades voltadas à tecnologia, à educação em geral. Aqui tem muito estudante e um êxodo profissional grande. Por conta disso, criamos uma forma de o pessoal acelerar o conhecimento e preservar um pouco do mercado aqui”, explica.
Desde a criação em 2010, o TIP (acrônimo para Tecnologia, Inovação e Pesquisa) recebeu 80 eventos, pelos quais passaram 1,5 mil pessoas. Foram 360 horas de conteúdo. Houve eventos gratuitos, beneficentes e pagos. Segundo Ludmilla, o TIP só não é mais crowdlearning por ser destinado a eventos, na maioria das vezes, para os santistas: “Mas na nossa multidão local a gente consegue bons resultados. A gente espera expandir. Estamos pensando em gerar mais conteúdos grátis”. Como nos demais casos, qualquer assunto pode virar evento. Só uma coisa é proibida. “A gente não permite palestras sobre marketing multinível”, observa.
Sem fronteiras
Lá fora, o crowdlearning chama a atenção de pequenos empreendedores e de grandes empresas. O desenvolvedor Jared Cosulich criou há alguns anos a UpsideDown Academy. O princípio por trás do site é permitir que qualquer estudante compartilhe o que aprendeu, como solucionar problemas. “É um ambiente em que a pessoa pode ensinar outras, e no processo aprender em conjunto, servindo de recurso para pessoas com nível similar de conhecimento”, explica.
O Google também acredita na ideia. Criou duas plataformas. Uma, chamada Helpouts, abriga ofertas de aulas online a qualquer preço, sobre qualquer assunto. Cristiane Belize Bonezzi é uma das usuárias do Helpouts. Ela vive no Canadá e usa a plataforma para dar aulas de português a estrangeiros. “Passei inclusive por uma entrevista com um especialista da Google antes de ter meu perfil publicado. Então percebi que a plataforma é bem organizada”, diz.
Em fevereiro, o Google lançou outra ferramenta para troca de conhecimento entre usuários. O Oppia, um site em que qualquer um pode criar atividades interativas e compartilhá-las. O projeto tem o código aberto. Um mentor constrói os exercícios, enquanto os estudantes interagem para resolver as questões. Segundo a empresa, o foco do site está na exploração.
A ferramenta coleta informações sobre como as pessoas interagem com os exercícios, quando são estimulados ou perdem interesse, e repassam os dados aos mentores. Além disso, a comunidade pode contribuir, sugerindo melhorias em atividades para garantir maior eficácia. Como no YouTube, as atividades podem ser construídas e depois “embedadas” em qualquer outra página na web.
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