Conexão Social – Voz para os povos indígenas

Povos nativos se apropriam de mídias como o rádio e a internet para criar canais de comunicação e de difusão de suas culturas


Povos nativos se apropriam de mídias como o rádio e a internet para criar canais de comunicação e de difusão de suas culturas  Leandro Quintanilha



Eliane Potiguara,
militante da web
Uma escritora potiguara que tem seu próprio site na internet. Um
videomaker guarani que filmou um documentário sobre o contato de sua
comunidade com o mundo virtual. Um radialista terena que montou uma
programação radiofônica no idioma nativo. Aos poucos, os povos
indígenas nacionais apropriam-se da mídia para avançar da condição de
personagens estereotipados para a de autores-personagens. Esse
processo, ainda incipiente no Brasil, embora promissor, foi o tema I
Seminário de Mídias Nativas, realizado pela Universidade de São Paulo
(USP), de 17 a 19 de outubro.

O evento foi idealizado pelo Cepop Atopos – Centro de Pesquisa sobre a
Opinião Pública na Época Digital e pelo Núcleo de Estudos sobre
Etnicidade, Racismo e Discriminação do Departamento de História da USP.
O objetivo era abrir um ciclo de debates entre autores indígenas e
especialistas de diversas áreas, diante da produção e da veiculação de
imagens, textos e sons por nativos, para afirmar sua identidade e se
inserir em novos espaços sociais.

“Por que querem nos manter na Idade da Pedra?”, pergunta o escritor e
documentarista guarani Carlos Fernandes Papá. “Nós queremos e
precisamos participar dessa forma de conhecimento que é a mídia”,
acrescenta. Entre os trabalhos apresentados por Papá no evento,
destaca-se o documentário “Manuá”, que mostra índios do interior
paulista usando programas de bate-papo online e sites de
relacionamento, como o Orkut.

Recado do vento

Obras como as de Papá inspiraram os idealizadores do evento. “Nas
fotografias do século 19, os índios eram retratados ou por sua
ausência, em fotos de ocas e aldeias vazias, ou pelo exotismo de sua
apresentação, como figuras ilustrativas de cartão postal”, diz a
historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do núcleo de
estudos. Ela identifica um novo momento: “Os índios agora tornam-se
porta-vozes de seus próprios projetos, de suas próprias vidas”.

Entre os especialistas convidados, estava o filósofo e doutor em
antropologia social Sérgio Domingues, da Universidade Estadual de São
Paulo (Unesp), que passou a década de 80 em uma comunidade Krahó, no
norte do Tocantins. Ele afirma que os indígenas percebem as tecnologias
de comunicação não como a ameaça colonizadora sugerida pelo senso
comum, mas como um meio de contato e informação.

“Os indígenas não querem voltar à vida primitiva”, relata. “Eles
acreditam, por exemplo, que o rádio pode viabilizar o religamento entre
parentes de uma mesma família cultural ou de um mesmo tronco
lingüístico. Um ancião indígena que conheci disse uma vez que o rádio
faz do vento um grande mensageiro”, conta Sérgio.


Pesquisa da FGV aponta
significativa participação
indígena na rede nacional

Os povos nativos, segundo afirma o antropólogo, só desejam usar a
técnica com base nos seus pressupostos filosóficos. “Eles têm uma
semiótica própria”, ressalta o filósofo. A semiótica pode ser entendida
como o conhecimento que analisa símbolos e significados dentro de uma
determinada cultura. Sérgio lembra com indignação a proibição de que
idiomas nativos fossem veiculados via rádio durante os governos
militares: “A ditadura civilizatória impõe o mutismo das línguas
indígenas”. E acrescenta que houve sanções similares contra os
japoneses assim que foram derrotados na Segunda Guerra Mundial.

O tempo do mutismo passou. O radialista terena Emídio Pereira Neto
trabalha em uma rádio na aldeia do Bananal, que fica na Reserva
Taunay/Ipegue, no Mato Grosso do Sul. “Toda a programação, inclusive a
musical, é apresentada no idioma nativo”, orgulha-se. O terena é como
se fosse a “língua oficial” da região. Em Campo Grande, o jornalista
João Felipe Gomes Marcos, também terena, trabalha no jornal da
Universidade Católica Dom Bosco, para o qual elabora matérias de
temática indígena, em português, vídeos e presta assessoria de imprensa
para eventos  indígenas. “A imprensa quase nunca aparece”,
lamenta-se. “Um amigo publicitário sugeriu uma vez, por brincadeira,
que simulássemos uma invasão para atrair a atenção da mídia”, diz.

A historiadora Eliete Pereira está mapeando a presença indígena
nacional na internet para o  mestrado da Universidade de Brasília
(UnB). “O foco da pesquisa não são sites sobre índios, mas aqueles
feitos por eles”, relata a pesquisadora, que catalogou 31 sites, entre
blogs, portais e comunidades virtuais.

Os conteúdos desses sites são escritos basicamente em português, que

funciona como uma língua coringa para contato com o “branco” e entre as
diferentes culturas indígenas. Entre os temas abordados, explica
Eliete, destacam-se a defesa dos direitos dos índios, aspectos de suas
tradições artístico-culturais e informações sobre o comércio de
artesanato.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) em 2000 apontou que 12,46% da população brasileira
estavam incluídos digitalmente. O Mapa da Exclusão Digital, traçado
pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), três anos depois, mostra que apenas
3,72% dessa fatia (não do total) eram indígenas. Para a historiadora
Eliete, por mais que soe inexpressiva a porcentagem, é importante
observar a qualidade da presença indígena nacional na rede.

Entre os sites analisados na pesquisa, figura a página pessoal da
escritora e ativista Eliane Potiguara, uma das indígenas brasileiras
mais atuantes da internet. Além do site que leva seu nome, Eliane
mantém um fotolog e o blog da Grumin, sua Rede de Comunicação Indígena.
Seu objetivo é difundir informações sobre os direitos dos índios,
abordando questões raciais e de gênero, entre outras. A rede propõe o
que Eliane chama de “cosmovisão indígena”, olhar que abrange a cultura,
a biodiversidade, a espiritualidade e a ancestralidade inerentes à
autêntica representação dos povos nativos.

A aldeia onde viviam os antepassados da escritora no Pará foi dizimada
durante a neo-colonização do algodão, no começo do século passado.
“Hoje, somos quatro pessoas”, conta Eliane Potiguara, que foi trazida
para o Rio de Janeiro pela avó, aos sete anos. Cresceu na boca do lixo
carioca, onde viviam outros refugiados, da Segunda Guerra Mundial. A
história de seu povo, a infância pobre, a passagem transformadora pela
universidade e seu engajamento na causa indígena estão hoje na
internet.

Enquanto isso, nos jornais…


No dia 17 de outubro, a data da abertura do I Seminário de Mídias
Nativas, os noticiários nacionais informaram que índios Xicrin
invadiram as instalações da Companhia Vale do Rio Doce, na região de
Carajás, no Pará, para solicitar um reajuste no valor repassado
mensalmente pela empresa, R$ 200 mil. Mas os jornais não explicaram por
que a Vale faz esses repasses, nem discorreram sobre as tentativas de
diálogo previamente realizadas pela comunidade indígena.

A Resolução 331, de 1989, definia que a Vale teria de pagar uma
compensação aos indígenas de Carajás, pela proximidade da extração de
minerais em relação às aldeias, como explica o administrador da
Fundação Nacional do Índio (Funai) em Marabá, Raulien Queiroz. Em maio,
representantes dos Xicrin, da Funai e da Vale reuniram-se para que a
empresa assinasse um termo de compromisso, que previa a construção de
seis casas e 120 quilômetros de estrada na reserva.

Ficou definido também que haveria uma nova reunião em setembro para que
fosse discutido um possível reajuste para o repasse mensal. O encontro
não aconteceu. “Foi um problema de comunicação”, analisa Raulien. “Acho
que os índios teriam ficado menos ofendidos com uma recusa conversada
do que com a inexplicada falta de respostas para suas reivindicações,
como aconteceu.”

O líder da Associação Xicrin Catetê, Bep-Karoti, afirma que os índios
queriam apenas conversar com funcionários da Vale, mas teriam ficado
ofendidos com o fato de a empresa ter bloqueado, com máquinas, a
estrada de acesso aos locais de extração.

Em nota publicada sobre o caso, no dia 19 de outubro, a Vale do Rio
Doce afirma que os recursos repassados pela empresa às comunidades
indígenas são uma “contribuição ao trabalho dos órgãos públicos”, já
que esta seria “uma responsabilidade do Estado”. A empresa afirma,
ainda, que utiliza apenas 2% dos 400 mil hectares da Floresta Nacional
de Carajás e que obedece “aos mais elevados padrões internacionais de
gestão ambiental”.

E também: “Esses invasores promoveram ações que podem ser
caracterizadas como crimes de cárcere privado, roubo, extorsão, dano,
invasão de estabelecimento industrial, formação de quadrilha, perigo de
desastre ferroviário e desobediência.” A nota da Vale termina com a
declaração de que a empresa “não cederá a chantagens de qualquer
espécie”.

Os manifestantes Xicrin desocuparam as instalações da Vale no dia 19 de
outubro, antes que fossem realizadas as ações de reintegração de posse,
com a promessa de que poderiam se reunir com autoridades da Vale, em
Brasília, no dia 31 de outubro.
Na reunião, os Xicrin foram avisados por diretores da Vale que os
recursos não seriam reajustados, mas cancelados, como informa o líder
Bep-Karoti. A decisão também foi explicitada numa segunda nota
publicada pela companhia.

O texto apresentado à imprensa no dia 31 diz ainda: “Nos próximos dias,
a Vale ingressará com uma ação indenizatória por conta dos prejuízos
causados pela invasão. Nos dois dias de paralisação, deixaram de ser
embarcadas cerca de 650 mil toneladas de minério, prejuízo de cerca de
US$ 10 milhões, além de danos materiais causados nas instalações da
CVRD em Carajás.” Em seguida, prossegue: “A Vale também vai denunciar o
caso à Organização dos Estados Americanos (OEA).”

Bep-Karoti avisou que os Xicrin fariam uma nova ocupação no dia 8 de
novembro. ARede procurou a Vale para maiores esclarecimentos, antes do
fechamento desta edição, mas foi informada de que a empresa estava
fechada por conta do feriado prolongado de Finados.

www.funai.gov.br – Fundação Nacional do Índio (Funai)
www.cvrd.com.br – Companhia Vale do Rio Doce


www.indiosonline.org – Índios Online

www.grupoatopos.blogspot.com – Grupo Atopos

www.fflch.usp.br – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

www.elianepotiguara.org.br – Site pessoal de Eliane Potiguara

www.grumin.blogspot.com – Grumin – Rede de Comunicação Indígena