A Conferência mostrou que é preciso, sim, debater a democratização das comunicações e aprovou resoluções importantes. Lia Ribeiro Dias
ARede nº55 feveiro de 2010 – O mais importante feito da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que aconteceu entre 14 e 17 de dezembro de 2009, em Brasília, foi a sua própria realização. Essa avaliação é consenso entre os 1.400 delegados que representaram o governo, a sociedade civil e o empresariado. Afinal, quebrou-se um tabu de mais de 30 anos, pelo qual se considerava que qualquer discussão relativa à democratização dos meios de comunicação significava um atentado à liberdade de imprensa, tese sempre defendida pelos proprietários de empresas de comunicação. A vitória foi dupla: não só foram vencidos anos de silêncio, mas a Confecom aconteceu à revelia de seis entidades patronais (dos radiodifusores, dos jornais das capitais e do interior, das editoras de revistas, dos provedores de internet), que se retiraram de sua organização acreditando que com isso iriam inviabilizar o grande debate.
Enganaram-se. A panela de pressão foi destampada. Discutiu-se tudo: do inventário das concessões de radiodifusão e novas condições para a sua renovação à criação de um Conselho Nacional de Comunicação efetivo, vinculado ao Executivo; da descriminalização das rádios comunitárias ainda sem efetiva autorização à obrigatoriedade do diploma de jornalista; da separação estrutural das redes das operadoras de telecomunicações à reestatização da Embratel; da aplicação dos recursos do Fundo de Universalização das Telecomunicações à desoneração dos serviços de telecomunicações, especialmente os oferecidos às famílias de baixa renda; do fortalecimento do Sistema Público de Comunicação à proibição de emissoras alugarem espaço na grade a terceiros; da destinação de um terço do espectro para emissoras públicas ao fortalecimento do conteúdo nacional; da convergência dos meios de comunicação ao fim da discriminação na programação contra as minorias.
Mea culpa
É claro que nem todas as teses foram aprovadas, especialmente as mais polêmicas e sectárias. Houve muita polarização, mas prevaleceu a negociação. E os resultados, aplaudidos por todos os setores – e todos os setores tiveram parte de suas teses derrotadas –, foram tão positivos que levaram o professor Marcos Dantas, da área de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, representante da sociedade civil pela Conferência Estadual do Rio de Janeiro, a fazer um mea culpa. Ele foi contra a decisão da comissão organizadora da Confecom de conceder igual representatividade ao empresariado e à da sociedade civil – cada um desses setores ficou com 40% dos delegados e o governo com 20%. Porém, reconheceu que a estratégia deu certo: “Entendi que era uma concessão desproporcional ao peso do empresariado na sociedade. Mas foi a forma encontrada pelo governo para manter setores do empresariado na Conferência. E a fórmula deu certo”.
Celso Schroeder, presidente do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação – uma das mais importantes entidades setoriais da sociedade civil – também avaliou que a presença dos empresários, mesmo que de apenas duas entidades, foi muito importante para dar legitimidade à Confecom. Participaram a Telebrasil, representante de toda a cadeia da indústria de telecomunicações, e a Abra, uma dissidência dos radiodifusores que tem à frente o Grupo Bandeirantes e a Rede TV!
Empresários militantes
Os delegados do setor empresarial participaram ativamente da Conferência. Foram alvo de vaias e também vaiaram. Viram-se obrigados a negociar pontos importantes e sentaram-se à mesa, com a participação de representantes do governo, com entidades como CUT, FNDC, Intervozes. “Nos fizemos respeitar”, comemora César Rômulo, secretário executivo da Telebrasil, e chefe de uma delegação de mais de 400 representantes.
“A partir de agora, a discussão se coloca em outro patamar”, observa Laurindo Leal Filho, professor e ombudsman da TV Brasil. Têm a mesma opinião César Rômulo, da Telebrasil, e Walter Ceneviva, vice-presidente do Grupo Bandeirantes e representante da Abra. Marcelo Bechara, consultor jurídico do Ministério das Comunicações e secretário executivo da comissão organizadora, registra que a Confecom foi um marco na história do setor. Shroeder concorda mas lembra que, como as teses aprovadas na Conferência não são terminativas, apenas indicativas de políticas a ser implementadas pelo Congresso Nacional e pelo Executivo, há ainda um longo caminho a ser percorrido.
O que fez os trabalhos da Confecom avançarem foi a negociação madura entre os segmentos envolvidos. A discussão do regimento interno, aprovado pela comissão organizadora e motivo de longos embates, abriu a Conferência em clima tenso e polarizado, quando os representantes do empresariado, especialmente da Abra, queriam pedir questão sensível também para as deliberações dos 13 grupos de trabalho.
À polarização de uma lado seguiu-se a polarização do outro, da sociedade civil. “Como pela primeira vez houve entidades não ligadas à comunicação discutindo comunicação, como grupos de mulheres, negros, o que foi um grande salto da Conferência, pedia-se questão sensível para tudo. E eram delegados sobre os quais as entidades mais representativas do movimento de comunicação social não tinha nenhum controle”, lembra Dantas. O impasse foi superado com muita negociação, com a retomada do regimento que remetia os temas sensíveis para o plenário. As questões sensíveis foram reduzidas efetivamente ao que era mais relevante.
O fato de existir o recurso da questão sensível – uma reivindicação do empresariado que praticamente garantiu a participação dos dissidentes quando a Abert e mais cinco entidades abandonaram a organização da Confecom – impediu a vitória de algumas teses importantes para parte da sociedade civil. A mais relevante foi a não aprovação da obrigatoriedade da separação estrutural das redes, mecanismo que obrigada as operadoras de telecomunicações detentoras de infraestrutura a abrir suas redes para terceiros. A obrigatoriedade da oferta de multiprogramação pelos canais digitais também não foi aprovada, mas essa tese não era consensual nem mesmo entre a sociedade civil e o governo, pois muitos consideram que a emissora comercial não pode oferecer quatro programações uma vez que sua concessão se refere só a uma faixa de espectro.
O voto sensível também prejudicou os setores empresariais, que não conseguiram aprovar o uso Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) para a ampliação da infraestrutura de telecomunicações, como banda larga, nem a desoneração fiscal dos serviços de telecomunicações.
Caminhando junto
Mas nem tudo foi embate na Confecom. Todo o bloco de resoluções relativo à democratização do sistema de concessões e outros de serviços de radiodifusão teve apoio de todos os setores. Além da necessária atualização do Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, que trata da radiodifusão, as resoluções determinam o equilíbrio no uso do espectro eletromagnético entre o setor privado, público e estatal; pedem critérios democráticos e não discriminatórios (em relação a raça, religião, opção sexual etc.) para as concessões e outorgas, com a proibição de sublocação da programação, concessão de canais a parlamentares e parentes até terceiro grau; sugerem definição de critérios para cassação de concessões e outorgas que não obedeçam aos critérios fixados e realização de audiências e consultas públicas no processo de renovação das outorgas e concessões.
Aos critérios sugeridos para dar maior transparência ao processo de concessão de canais, com prioridade aos segmentos da sociedade que ainda não tiveram acesso a meios de comunicação, soma-se, como maior ganho da Confecom, a criação do Conselho Nacional de Comunicação Social. O órgão deverá ter poderes deliberativos para sugerir políticas públicas, realizar audiências e consultas públicas e opinar sobre os rumos da política de comunicação social no país. Além do Conselho Nacional (o que existe hoje é um Conselho de Comunicação Social, como órgão consultivo do Congresso Nacional), há indicações para a criação de conselhos estaduais e municipais, com o mesmo objetivo.
Também as resoluções relativas ao fortalecimento do Sistema Público de Radiodifusão não foram alvo de disputa entre sociedade civil e empresariado. Todos caminharam juntos, ainda, em um tema que é sensível à indústria de telecomunicações: a transformação do serviço de banda larga, hoje enquadrado como serviço privado pela legislação, em serviço público. Por que a Telebrasil apoiou a tese dos movimentos sociais? “Votamos pelo bem do Brasil”, resume Rômulo. Transformar a banda larga em serviço público significa que o serviço só poderá ser prestado por empresas concessionárias (hoje, por exemplo, a Net, empresa de TV a cabo e as celulares, que não são concessionárias, prestam o serviço); terá metas de universalização a serem cumpridas; terá tarifas fixadas pelo órgão regulador.
Para virar serviço público, a banda larga depende de decisão do Executivo. É preciso um decreto com o novo enquadramento e a definição das regras do serviço. O Brasil terá de ser dividido em áreas (as atuais ou outra divisão territorial) e essas áreas terão de ser leiloadas entre os interessados na concessão. Um processo mais rápido do que as medidas que dependem da aprovação do Congresso Nacional, como a atualização do Código Nacional de Telecomunicações, mas mesmo assim de grande complexidade. Como os dirigentes das entidades dos diferentes setores envolvidos têm insistido, a grande importância da Confecom foi definir a pauta, estabelecendo as prioridades dos embates que a sociedade vai enfrentar.
Aprovações de peso
• Criação do Conselho Nacional de Comunicação Social (e de conselhos estaduais e municipais, no âmbito público), com poderes deliberativos, para propor e debater políticas públicas, realizar audiências e consultas.
• Revisão do Código Brasileiro de Telecomunicações, para ter critérios transparentes e não discriminatórios (em termos de raça, religião, opção sexual etc.) para concessões, outorgas e autorização de canais de radiodifusão, com equilíbrio entre o setor privado, o setor público e o estatal.
• Proibição de sublocação da programação e de atribuição a parlamentes e seus parentes de até terceiro grau de concessões, outorgas e permissões.
• Regulamentação do artigo 221 da Constituição Federal, que trata das finalidades educativas e culturais da programação, e do artigo 223, que trata da complementariedade entre o setor privado, o público e o estatal.
• Definição de critérios para a cassação de concessão e outorgas que não cumprirem os preceitos da concessão ou outorga. Estabelecimento de critérios transparentes, com audiências públicas, para a renovação das concessões.
• Fortalecimento do Sistema Público de Radiodifusão, com a criação de mecanismos de financiamento e garantia de acesso ao espectro radioelétrico.
• Adoção de medidas visando a convergência digital, para que as diferentes redes possam oferecer serviços de voz, vídeo e dados, com a unificação das regulamentações relativas à TV por assinatura.
• Obrigatoriedade de as empresas de TV por assinatura carregarem os canais abertos e públicos e de valorizarem o conteúdo nacional.
• Definição do serviço de banda larga como direito fundamental do cidadão, o que exige seu enquadramento como serviço prestado em regime público, e não mais privado, como é hoje.