Helio Mattar*
Sinto um desalento quando me dou conta da enorme confusão dos dias de hoje. Parecemos esquecer que, a cada segundo, vivemos um novo e único momento do universo, e que não existirá novamente. Esquecemos de viver o milagre cotidiano. Tratamos o mundo como se fosse algo evidente, sem mistério.
Glenn Gould, pianista canadense, nos anos 70, apontava a indiferença a esse milagre. Alertava para o que ensinamos aos nossos filhos: matemática, geografia… Mas deveríamos também lhes ensinar o que eles de fato são. Sabem o que vocês são, meu filhos? Vocês são um milagre, uma maravilha! Em todo o mundo, não há outro ser exatamente como cada um de vocês! Se tivéssemos consciência do milagre que somos, talvez deixássemos de subordinar tão fortemente a felicidade aos bens materiais, que nos alienam da beleza das pessoas e do mundo, colocando-nos em uma competição sem fim, como se o consumo pudesse nos dar uma identidade diferente de nossos semelhantes.
Essa competição coloca em risco a todos nós, sem exceção. Na situação atual, 1,7 bilhão dos 6,6 bilhões dos habitantes do mundo consomem muito mais do que precisam, enquanto os demais consomem o mínimo ou abaixo disso. O uso de recursos naturais — ar respirável, água limpa, terras agricultáveis — já se encontra em um nível 25% acima do que a Terra é capaz de repor. E, se todos os habitantes viessem a consumir como os mais ricos, precisaríamos de quatro Terras para suprir esse consumo.
O mundo está se tornando cada vez mais interdependente. O aquecimento global é um emblema disso, ao levar seus efeitos perversos a todos os cantos. Demonstra, cotidianamente, a correção de Mariana Botta em artigo para o jornal “Folha de S.Paulo”: “cada movimento nosso, por menor que seja, estabelece uma relação de causa e conseqüência com a vida de todas as pessoas”. E nos lembra que, se a vida no planeta vier a perecer, nenhum de nós terá qualquer privilégio. Portanto, deveria ser parte da educação mostrar que é preciso inverter a lógica da competição pelo consumo, e começar a consumir com a consciência voltada para os outros, como um ato cotidiano de solidariedade.
Parece estranho relacionar consumo e solidariedade? Mas não é solidário economizar os recursos naturais para a geração atual e as futuras? Limitar a emissão de gases de efeito estufa causado pelo consumo, evitando que as mudanças climáticas se aprofundem? Escolher produtos não só pela qualidade e preço, mas levando em conta as boas ações das empresas produtoras sobre a sociedade e a natureza? Ao repensar o que realmente precisamos, reutilizar os produtos até o final de sua vida útil, reciclar o que não pode mais ser utilizado, e, especialmente, ao escolher produtos e serviços de empresas social e ambientalmente responsáveis, estaremos levando nossa solidariedade às pessoas e ao planeta por meio de nosso consumo. Teremos então consumido solidariamente, com a consciência voltada para os outros e não somente para nós, contribuindo para dar significado a nossas vidas e para reconhecer o privilégio que nos é dado pelo milagre de existir, celebrando a vida e tudo de bom que ela pode trazer a nós, apenas passageiros desta extraordinária nave terrena.
* Diretor-presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente (www.akatu.org.br)