Criador da web confirma ataque à rede

Quem controla A infraestrutura não pode controlar os fluxos de informação    SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA

ARede nº 65 novembro de 2010 – A revista Scientific American Magazine publicou um artigo do criador da web, Tim Berners-Lee. O título “Long live the web: a call for continued open standards and neutrality” pode ser traduzido como “Vida Longa à web ou Viva a web: a defesa dos padrões abertos e da neutralidade”. Mas, por que uma das figuras mais importantes do mundo das redes digitais, no dia em que a web completou 20 anos, escreveria um texto convidando todos a lutar para manter os princípios que caracterizaram a web até hoje? Exatamente pelo fato desses princípios estarem atualmente sob um múltiplo e contundente ataque.

Aqui, trago alguns argumentos de Berners-Lee, para quem a web tem uma configuração tão simples que permitiu e permite, a qualquer um, compartilhar informações com qualquer outra pessoa, em qualquer lugar. A web evoluiu para se tornar uma ferramenta poderosa e onipresente, pois foi construída colaborativamente. Nessa construção coletiva, um dos princípios dirigentes foi o de que todos os usuários deveriam ter igualdade de tratamento. Contudo, Tim Berners-Lee percebe que, hoje, a web está sendo ameaçada de diferentes maneiras. Depois de viabilizar grandes negócios a partir do espaço aberto e comum da web, alguns empresários querem atacar os princípios fundadores da rede.

Berners-Lee aponta três graves ataques. Primeiro, grandes redes sociais estão emparedando as informações, impedindo que seus usuários as enviem para outras áreas. Segundo, alguns provedores de internet sem-fio buscam diminuir a velocidade de tráfego para os sites que não fizeram acordos comerciais com os mesmos. Terceiro, governos totalitários e democráticos estão monitorando os hábitos on-line dos seus cidadãos, em um claro risco para os direitos humanos.

Berners-Lee alerta que essa tendência pode dividir a web em ilhas isoladas, criar áreas descontínuas e fragmentadas. Toda a energia e a vitalidade nascida da liberdade dos fluxos, da interatividade podem ser profundamente afetadas pela lógica dos smartphones e dos aplicativos que só permitem acessar os produtos autorizados por suas empresas. Para o criador da web, quando não utilizamos padrões abertos, criamos mundos fechados. Sistemas como o iTunes tiram a liberdade de acessar e compartilhar músicas que estão em outros repositórios que não os da Apple. Quando enviamos um link de música do iTunes não estamos mais na web, estamos em um espaço murado, uma fortaleza erguida contra a diversidade cultural.

Universalidade
Vários princípios são fundamentais, mas o da universalidade foi o que permitiu o estrondoso crescimento da web. Berners-Lee explica que o funcionamento da rede foi pensado e estruturado para assegurar nosso acesso a qualquer parte da mesma. Além disso, qualquer pessoa pode subir qualquer conteúdo, formato ou tecnologia imaterial para a rede, independente do software que usa, da marca do seu computador, da língua que fala, das crenças que defende e até da forma como está se conectando, com fio de cobre, fibra óptica ou roteador sem-fio. As pessoas devem ser capazes de colocar qualquer coisa na internet. E a web deve funcionar muito bem, seja para o Departamento de Estado, ou para uma garota que quer enviar sua foto para o namorado.

Tim Berners-Lee também advoga que a descentralização é outra característica importante do projeto original da web. Segundo ele, ninguém precisa obter a aprovação de qualquer autoridade central para criar uma página ou um link. A possibilidade de total descentralização, para Berners-Lee, é sinônimo da inovação generalizada na rede. É importante lembrar Lawrence Lessig, que diz que é a cultura da liberdade que garante a enorme criatividade na internet.

Várias ameaças à universalidade da web têm surgido recentemente. Berners-Lee aponta que as empresas de televisão a cabo estão vendendo conectividade à internet com mecanismos de restrição de navegacão e permitem baixar apenas os conteúdos definidos pela empresa de entretenimento. Sites de relacionamento apresentam outro tipo de problema. Facebook, LinkedIn, Friendster e outros extraem valor por meio da captura de informações digitadas por seus usuários: data de aniversário, endereço de e-mail, preferências, links que indicam quem é amigo de quem e até quem está em uma fotografia. O problema é que esses sites desenvolvem muralhas digitais para manter essas informações em bancos de dados protegidos e que somente podem ser usados dentro de suas cercas.

Outro ponto essencial do artigo de Berners-Lee trata da separação das camadas ou das partições que compõem a internet. Ele esclarece que a web é uma aplicação que roda na internet, uma rede eletrônica que transmite pacotes de informação entre os milhões de computadores, de acordo com alguns protocolos abertos. Uma analogia adequada da relação entre a web e a internet, para ele, ocorre quando pensamos nos aparelhos domésticos que funcionam na rede de eletricidade. Uma geladeira, um rádio, um forno de microondas ou uma impressora podem funcionar usando a mesma rede elétrica. Da mesma forma, qualquer aplicação – como a web, o e-mail ou as mensagens instantâneas – podem rodar na internet, desde que utilizem os seus protocolos padrão, tais como o conjunto TCP/IP.

Repare que, na analogia empregada por Berners-Lee, os fabricantes podem melhorar as geladeiras, os aparelhos de rádio, os microondas e as impressoras sem alterar o modo como a rede elétrica funciona. Da mesma forma, essa rede pode ser aperfeiçoada sem alterar a forma como os aparelhos operam. As duas camadas de tecnologia trabalham juntas, mas podem avançar independentemente. O mesmo fenômeno ocorre na relação da web com a internet. A separação das camadas é crucial para a inovação. Em 1990, a web foi implementada na internet sem qualquer alteração na própria internet. De lá para cá, segundo Berners-Lee, as conexões de internet aceleraram de 300 bits por segundo para 300 milhões de bits por segundo, sem que a web tivesse que ser redesenhada devido às mudanças na infraestrutura da rede.

O que Tim Berners-Lee está defendendo de modo brilhante é o princípio da neutralidade da rede. Isso que dizer que uma camada da rede deve ser neutra em relação às outras. Dito de outro modo, quem controla a infraestrutura de telecomunicações não pode controlar os fluxos de informação, nem deve ter o direito de definir quais aplicações poderão passar em sua rede física. O artigo de Tim Berners-Lee está disponível, na íntegra, em www.scientificamerican.com/article.cfm?id=long-live-the-web