Cultura – Conte-me de você

Conte-me de você
Projeto Olhares Cruzados conecta crianças brasileiras com latinoamericanas e africanas para que compartilhem suas histórias   Mariana Lacerda

Já são 1.104 crianças e adolescentes. Elas moram em lugarejos como o bairro de Hulene, em Maputo (Moçambique); em Cabinda (Angola); no bairro de Bel Air, em Port au Prince, capital do Haiti; no bairro de Kimbanseke, em Kinshasa (República do Congo); em Challappampa, na Ilha do Sol (Bolívia); na Aldeia de Songho, em Dogon (Mali). Moram também na Vila dos Papeleiros, em Porto Alegre (RS); no Morro do Chacrinha, no Rio de Janeiro (RJ), no Quilombo do Frechal, no Maranhão; em Diadema, em São Paulo (SP); na Aldeia Mãe Terra, no Mato Grosso do Sul; e em São Raimundo Nonato, no Piauí. Em comum, essa garotada tem suas trajetórias de vida, suas heranças culturais e a exclusão social. E trocam tudo isso entre si, por meio de cartas, fotografias, desenhos, brinquedos e outros objetos.

O intercâmbio entre crianças latinoamericanas, africanas e brasileiras é o cerne do projeto Olhares Cruzados, criado em 2004 pela arquiteta Dirce Carrion, à frente da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Imagem da Vida, sediada em São Paulo (SP). A iniciativa leva em consideração que essas populações têm histórias passadas e presentes que se encontram, se misturam e se traduzem em traços próximos, como povos “irmãos”.

Olhares Cruzados surgiu quando Dirce viajou pela primeira vez à África e compreendeu que aquilo que o Brasil percebia do continente, apesar de 50% da população brasileira ser afrodescendente, dizia respeito a escravidão, guerras civis, pobreza, Aids. “Os africanos têm muito mais do que isso”, conta ela.  Ao retornar de sua viagem, ela, então proprietária da agência de fotografias Reflexo, mudou radicalmente sua vida para se dedicar ao projeto. A princípio, com recursos próprios — chegou a vender o carro do filho para bancar as despesas. Hoje, crianças de nove estados brasileiros se comunicam com crianças de sete outros países: Angola, Moçambique, Haiti, Senegal, República Democrática do Congo, Bolívia e Mali.

E a rede não para por aí. Vai crescendo, quando surge uma nova comunidade a ser trabalhada – sempre uma localidade que preserva traços da cultura local e que esteja enfrentando uma situação de exclusão social. Dirce tem uma equipe: Aline Magna, Nilton Pereira e o fotógrafo José Bassit. O grupo visita a comunidade, faz contato com escolas, associações e estabelece interlocutores locais. Documentam tudo o que encontram. E aí começam a realizar oficinas com a garotada. Além de participar da produção de fotografias e desenhos, “porque é a forma mais direta de mostrar o cotidiano vivenciado”, os alunos são estimulados a recolher e trazer para o grupo objetos que simbolizem o lugar onde vivem. O material selecionado, resultado do “olhar das crianças, que é muito livre, descomprometido, verdadeiro, real”, é então levado para crianças de outro país.

Contar para se ouvir
“O diálogo entre crianças e adolescentes facilita a percepção das semelhanças e das diferenças, fazendo despertar o respeito pelas diversidades”, conta Dirce. Mas isso não é tudo. As fotografias, cartas, pinturas, brinquedos, instrumentos musicais, cerâmicas produzidas nas oficinas de arte do projeto, antes de tudo, levam a meninada a perceber suas vidas, conhecer as comunidades nas quais estão inseridas.

Com isso, eles valorizam a cultura da qual fazem parte. “Aumenta a auto-estima das crianças e dos adolescentes que participam dos encontros, assim como das comunidades a que pertencem”, diz Dirce. Como aconteceu uma vez, no final de 2005. O Olhares Cruzados promoveu o diálogo entre crianças brasileiras e do Haiti, país escolhido pela sua herança africana comum ao Brasil e por sua história de luta (a independência foi deflagrada por escravos). Aqui, as oficinas do projeto foram realizadas no Quilombo do Frechal, no Maranhão, uma reserva extrativista onde vivem 180 famílias. Do lado de lá, foi escolhida a favela Cité Soleil, na cidade de Port ao Prince — onde as atividades tiveram de ser feitas rapidamente e acompanhadas pela força de paz da ONU, pois havia, na região, uma ação guerrilheira que apoiava o então presidente exilado Jean Bertrand Aristide. 

Não foi por acaso que o projeto realizou as oficinas em um lugar sitiado. “Nossa intenção foi promover a cidadania e resgatar a cultura, expressões da dignidade humana”, explica Dirce. Faz todo sentido. Certa vez, a escritora americana Susan Sontag aceitou o convite de produzir e dirigir a peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, em Sarajevo, na Bósnia, em plena guerra civil. Sobre a experiência, escreveu: “Não é verdade que todos querem um entretenimento que lhes ofereça uma fuga da sua realidade (…), há um bom número de pessoas que se sentem revigoradas e consoladas quando o seu sentido de realidade é sustentado e transfigurado pela arte”.

Todo o material produzido nas oficinas do Olhares Cruzados é editado em livros, distribuídos às comunidades envolvidas. “O projeto gera, por fim, um objeto que coloca as crianças na posição de protagonistas, de serem elas as responsáveis por fazer e contar as histórias de suas comunidades. Quando podemos agir assim, somos mais respeitados”, conta Dirce. Já são seis livros editados e mais um em produção. No Brasil, Olhares Cruzados conta com os apoios federais das Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e do Ministério das Relações Exteriores.

www.olharescruzados.org.br