cultura
Assim começa o espetáculo
Cooperativa viabiliza profissionalização de coletivos artísticos e amplia formação e produção em arte popular, na periferia da capital paulista.
Áurea Lopes
ARede nº 99 – julho/agosto de 2014
O GALPÃO ONDE funcionava o supermercado Tatá, na Cidade Tiradentes, a 35 quilômetros do centro da capital paulista, pegou fogo três vezes. Na última, Rafael Pantoja era um garoti-nho e viu o incêndio muito de perto – ele mora praticamente ao lado. Algum tempo depois, o terreno abandonado onde havia ruínas de uma construção queimada ganhou cores e vida. Transformou-se no animado Centro Cultural Arte em Construção (CCAC), criado pelo Grupo Teatral Pombas Urbanas. “Depois de reformar o prédio, o pessoal abriu as portas e fez uma apresentação com fantasias coloridas, bichos que cantavam, números de circo… fiquei fascinado”, conta Rafael. Era 2004 e ele tinha 8 anos. Idade suficiente pra saber bem o que queria: fazer o curso de teatro gratuito oferecido por aquela trupe divertida no novo espaço. Desde então, não saiu mais de lá. Hoje, Rafael dá aulas de circo e teatro para jovens e integra o Filhos da Dita.
Esse é um dos quatro grupos que compõem a cooperativa de artistas viabilizada pelo Projeto Cooperativa de Artistas: Produzindo Caminhos Sustentáveis para a Vida, patrocinado pela Petrobras. O projeto, iniciado este ano, prevê o lançamento, até 2016, da cooperativa que tem por objetivo a emancipação e a profissionalização de coletivos artísticos do bairro Cidade Tiradentes. Também estão previstas, no projeto, ações de democratização de acesso à cultura, como oficinas artísticas, e um curso de gestão cultural. Além do Filhos da Dita, são abrigados pelo projeto o Circo Teatro Palombar, o grupo de teatro Aos Quatro Ventos e o trio musical Três Marias, o sol e a lua. Os integrantes desses coletivos estão passando por capacitações sobre políticas públicas, leis de incentivo, mercado cultural, crowdfunding, entre outros temas.
“Mas tudo isso não é só pra nós. É aberto à comunidade, a quem queira participar. Porque entendemos que esses recursos do projeto são para que a gente se fortaleça e articule outras ações”, conta Ellen Rio Branco, de 29 anos, atriz do Filhos da Dita desde 2009. Ao longo desses dois anos do projeto, estima-se que 3 mil pessoas serão beneficiadas, participando de oficinas – artísticas, cursos ou assistindo aos espetáculos gratuitos. No galpão onde hoje funciona o teatro Ventre de Lona (com cadeiras que pertenceram ao histórico Teatro Cacilda Becker) e uma biblioteca com 3,3 mil moradores cadastrados, as melhorias já começaram a aparecer. “Com recursos do projeto, construímos o segundo andar, com salas de ensaio para os grupos, sala de comunicação, administração. Também estamos montando um estúdio multimídia que vai ser aberto a toda a comunidade. Quem quiser pode vir gravar aqui”, diz Ellen.
Rafael confirma o espírito comunitário do CCAC: “O ator de periferia é diferente. O que vivemos é para a comunidade, a comunidade tem que se refletir em nosso trabalho, como num espelho”. E a galera que frequenta as atividades do Centro durante a semana, assim como as apresentações nos finais de semana, comprova que essa estratégia funciona.
Jeniffer, de 16 anos, não tinha coragem de entrar para o curso de teatro. Com apoio de uma amiga, matriculou-se em 2012. Em 2013, já fazia aulas de circo, capoeira, violão… “Eu vivia aqui, era minha segunda casa”, conta. No 2º ano do ensino médio, ele já decidiu qual faculdade quer fazer: artes cênicas.
Guilherme, de 17, começou a frequentar o Centro em 2012, no curso de capoeira. Está terminando o ensino médio e o curso técnico de veterinária. Mas quer fazer faculdade de teatro. Tainá, de 17, já fazia teatro em um projeto da prefeitura quado entrou no curso do CACC. Ainda não sabe o que vai fazer no próximo ano, quando terminar o ensino médio. “Vou deixar a vida me levar. Mas vou continuar aqui”, diz.
FILHOS DA DITA Hoje com seis integrantes, o Filhos da Dita foi o primeiro grupo de teatro jovem do CCAC, formado por meninos e meninas que participaram das oficinas ministradas pelo Pombas Urbanas, desde 2004. “A Dita representa todas as mulheres guerreiras do bairro de Cidade Tiradentes, mães e arrimos de família, que lutam para levar a vida com dignidade”, explica Ellen. Em 2010, recebeu um prêmio do Minstério da Cultura pelo espetáculo Os Tronconenses, de autoria de Lino Rojas. |
CIRCO TEATRO PALOMBAR O Grupo de Circo Teatro Palombar nasceu em 2012, com jovens que iniciaram sua formação ainda crianças, no projeto Somos do Circo (2005 a 2010). Em 2013 , o grupo estreou o espetáculo Nós da Lona-Uma Arriscada Trama de Picadeiro e Asfalto, feito a partir de uma pesquisa realizada pelo grupo sobre a história do circo desde a antiguidade. Os jovens do grupo também se dedicam a multiplicar sua experiência em oficinas para crianças e jovens de Cidade Tiradentes. |
AOS QUATRO VENTOS Fundado em 2010, a Cia. Teatral Aos Quatro Ventos resultou do primeiro trabalho de teatro com crianças no CACC. Hoje com quatro integrantes, apresenta o espetáculo infantil A Gata Ingênua em intervenções nas ruas e nas escolas. O grupo pesquisa a linguagem lúdica e a manipulação de bonecos, promovendo grande interatividade com as crianças. |
O direito à arte Uma formação teatral com adolescentes de São Miguel Paulista, zona Leste de São Paulo, foi a origem do Grupo Teatral Pombas Urbanas. Há 25 anos, o diretor de teatro, peruano, Lino Rojas (falecido em 2005) começou a trabalhar com jovens atores o reconhecimento de suas raízes étnicas e culturais. Lino assinava os textos e direção, mas tudo era discutido e produzido coletivamente, a partir da ideia do “ator orgânico”, que, além de interpretar, cria, produz e administra. Um conceito que, para Rojas, era a base para a manutenção do grupo. Ao apontar a arte como “necessidade orgânica e como complemento do crescimento”, Rojas defendia o direito de todos à arte: “Todos os seres humanos, sem distinção de classe e de raça, crescem criando suas carcterísticas individuais de expressar-se, de comunicar-se. Portanto, todos podem ser atores e fazer arte, independente de suas individualidades”. Em 2002, o grupo funda o Instituto Pombas Urbanas. Em 2004, o Instituto se instala no Centro Cultural Arte em Construção, na Cidade Tiradentes, em São Paulo – espaço que já atendeu milhares de pessoas em cursos de formação artística, espetáculos, saraus, shows, eventos e festivais. |