Cultura

É o digital, ministra!

MinC promete pagar recursos atrasados. Mas Pontos de Cultura também querem formular as políticas do setor.

Patrícia Cornils

ARede nº67 – Março de 2011

“Precisamos arrumar a casa”, foi a mensagem do secretário executivo do Ministério da Cultura (MinC), Vitor Ortiz, aos representantes da Comissão Paulista dos Pontos de Cultura, em reunião realizada em Brasília, dia 22 de fevereiro. Dias antes, a secretária de Cidadania e Diversidade Cultural, Marta Porto, disse o mesmo. Trabalhando antes mesmo de ser nomeada formalmente, Marta compareceu a uma reunião com o Fórum de Pontos de Cultura do Rio. Nos dois casos, a iniciativa do diálogo partiu dos Pontos de Cultura, preocupados com o rumo que toma a nova gestão do MinC. “Arrumar a casa” significa acertar as contas do ministério com os pontos porque, no ano passado, poucos receberam os recursos previstos em seus convênios com o ministério. O acerto das parcelas atrasadas, de bolsas e de prêmios como o Griô, o Asas e o Mídia Livre, com editais encerrados e nunca pagos, é um dos temas em aberto entre a rede de pontos e o ministério.

O secretário Ortiz pediu prazo até 14 de março para propor formas de cumprir esses compromissos. Somente em 2010, do total de R$ 154 milhões de restos a pagar deixados pelo MinC, R$ 71,5 milhões são devidos pela Secretaria de Cultura e Cidadania, responsável pelos Pontos de Cultura. É um contrassenso um programa reconhecido como fundamental pelo governo Lula e pela então candidata Dilma Rousseff (que em sua propaganda eleitoral se comprometeu a ampliar o número de Pontos de Cultura), tenha, na prática, se tornado secundário no orçamento da pasta. Somente 1,36% dos recursos pagos pelo ministério em 2010 foram para Pontos de Cultura. E não há perspectiva de ampliação do programa. “Este ano será de ajuste, para arrumar a casa, saldar pendências e projetar os próximos quatro anos”, afirma Ortiz.

As demandas dos pontos, no entanto, vão muito além do acerto de contas. “Nosso intuito é cooperar com o processo de consolidação das políticas públicas para a cultura, iniciado nos últimos oito anos e em consonância com os compromissos de campanha da presidenta Dilma Rousseff”, diz a carta entregue pela Comissão Paulista dos Pontos de Cultura à ministra Ana. Representantes dos pontos alertam para uma ameaça de retrocesso no diálogo do ministério com a sociedade. “Hoje, aqui, estamos continuando um diálogo que existe há anos, e que resultou em decisões sobre a Lei de Direitos Autorais (LDA), a necessária Lei do Cultura Viva, as decisões da Conferência Nacional de Cultura”, ressaltou uma participante da reunião com Marta Porto, no Rio de Janeiro. “Queremos uma gestão de continuidade disso, queremos estabelecer agendas de debates”, concluiu.

Em seu discurso de posse, Ana de Hollanda afirmou que a principal característica da política cultural dos governos Lula talvez tenha sido a de “incorporar segmentos sociais até então desconsiderados” e “projetar, nas grandes e médias cidades brasileiras, o protagonismo colorido das periferias”. “É claro que vamos dar continuidade”, disse a ministra, “a iniciativas como os Pontos de Cultura, programas e projetos do Mais Cultura, intervenções (…) como as ações urbanas previstas no PAC 2 (…). Minha gestão jamais será sinônimo de abandono do que foi ou está sendo feito”.

Apesar disso, a gestão começou mal. O novo ministério parece desconhecer duas dimensões importantes do Cultura Viva. A primeira é que, na gestão anterior, foi aberto um canal de comunicação entre o ministério e uma rede de atores culturais que se tornou protagonista na definição de políticas, prioridades, linhas programáticas para a cultura nacional. A segunda é o reconhecimento e a valorização da cultura digital – que fundamentou muitas das decisões dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, e com a qual a ministra já demonstrou não ter familiaridade.

Antes da posse do novo ministério, ativistas publicaram uma carta aberta para chamar a atenção da presidente e de ministra para essa questão. No texto, explicam que os avanços das gestões anteriores se devem à compreensão, pelo MinC, da importância e da abrangência das mudanças que o mundo digital trouxe para a cultura. Citando os Pontos de Cultura, o Fórum da Cultura Digital, o Fórum de Mídia Livre, o desenvolvimento de softwares livres, a iniciativa de revisão da Lei de Direitos Autorais, a recusa a propostas de criminalização da rede e a construção do Marco Civil da internet, a carta afirma: “É um caminho sem volta. Cada vez mais o ambiente digital será determinante e influente, tanto do ponto de vista criativo quanto econômico, na formação da cultura. Dessa forma, é fundamental que o Ministério da Cultura esteja capacitado e atuante para lidar com questões como o software livre, os modelos de licenciamento abertos, a produção colaborativa do conhecimento, as novas economias derivadas da digitalização da música, dos livros e do audiovisual.”

O encontro de Brasília só aconteceu por pressão dos pontos paulistas, que alugaram um ônibus e enfrentaram 17 horas de estrada para expor sua pauta. Ao recebê-los, a ministra indicou sua disposição de diálogo. O problema é que política não se resume ao cumprimento dos convênios formais do MinC com a rede de pontos de cultura – se fosse assim, teria havido oposição à gestão anterior, que descumpriu esses contratos seguidas vezes.

O que os ativistas da cultura digital e dos pontos de cultura querem é continuar participando da definição da política cultural do país – inclusive com a elaboração de um marco legal que transforme o Cultura Viva em uma política de Estado. E o ministério, ao que tudo indica, vai seguir uma direção contrária a essa. Este ano, a “principal meta”, de acordo com Ana de Hollanda, são as Praças do PAC. Volta, portanto, uma política que foi aposentada em 2004 e substituída pelos Pontos de Cultura: a construção de Bases de Apoio à Cultura (BACs).

As BACs eram centros culturais modulares, cada um ao custo de R$ 1,5 milhão. Como afirmou Célio Turino, ex-secretário de Cultura e Cidadania, em entrevista à revista ARede (novembro) de 2008, as BACs foram abandonadas porque, sem ter a vitalidade dos movimentos de cultura, seriam inauguradas e provavelmente, com o tempo, abandonadas. Ao criar os Pontos de Cultura, o MinC inverteu a lógica de “levar a cultura para a periferia”, e adotou a política de reconhecer as iniciativas de produção cultural em todo o país como produtores de cultura, e não como “audiência”. As propostas do Cultura Viva são a interligação dos Pontos de Cultura em rede, o trabalho compartilhado e o desenvolvimento de atividades culturais respeitando a autonomia e o protagonismo das comunidades. Não havia precedente, no Brasil, de um projeto público de cultura que tenha reconhecido dessa maneira os responsáveis pela diversidade e pelo vigor cultural do país. E é isso que se reverte, ao eleger como prioridade para o MinC o investimento em infraestrutura.

Este ano, serão construídas 400 Praças do PAC. O programa vai consumir R$ 1,6 bilhão, entre 2011 e 2014, para a construção de 800 praças, o que significa um custo médio de R$ 2 milhões por praça. Será feito em parceria com os municípios, mas com um modelo centralizado: não há previsão de participação de pontos de cultura – ou mesmo da sociedade civil – na gestão dessa infraestrutura. Do orçamento de R$ 806,669 milhões (depois de um corte de 40%) que caberá ao MinC este ano, e que inclui o PAC, de acordo com informações divulgadas pelo Ministério do Planejamento, R$ 222 milhões serão usados nas praças. Segundo a assessoria de comunicação do MinC, parte desses recursos pode vir de outros ministérios, porque o programa é interministerial. Mas a maior parte será, mesmo, do MinC. A definição das praças como prioridade mostra que a mudança da política cultural do Brasil vai além do debate sobre direitos autorais.

Veja também:

O que significa uma licença?

Pontos à míngua, desde 2010.

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