A cultura é milenar, mas segue marginalizada, seja nas ruas, seja nas
páginas dos dicionários. Os ciganos querem mudar esse estigma. Lino Bocchini
Os integrantes das entidades ciganas querem divulgar sua verdadeira cultura.
Nadjara é uma universitária de 20 anos. Chama atenção pela beleza
exótica dos olhos negros e longos cabelos e pelas notas no curso de
Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Em seu histórico
escolar raramente aparece um conceito abaixo de nove. Esforçada,
Nadjara gosta de legislação, livros e de estudar. Mas também gosta de
rodopiar sua saia colorida enquanto dança descalça. Afinal, Nadjara
Alves dos Santos é cigana, e orgulha-se disso. “Meus colegas de
faculdade ficam assustados quando revelo, mas não ligo”, conta,
tranqüila, sob a forte maquiagem característica das mulheres de seu
povo. “Perguntam se eu moro em barraca, se leio cartas ou mãos, essas
coisas”. Nadjara é exceção. Normalmente, os ciganos ocultam sua
identidade e mantêm uma vida convencional, ou seguem apegados às
tradições e dificilmente chegam, por exemplo, a uma Faculdade de
Direito.
“O que queremos é divulgar a verdadeira cultura cigana, a nossa dança,
música, costumes e língua”, diz Percínia Nicole Janovitch, que mantém,
em sua casa, em São Paulo, o Centro de Tradições Ciganas. “Se não
fizermos nada, vão continuar achando que ciganos são esses das ruas,
que pegam a mão das pessoas à força, muitas vezes para enganar. Já
sofremos muito preconceito, e esses só pioram nossa situação”. Segundo
Percínia, uma verdadeira cigana nunca lê a mão no meio da rua, mas,
sim, em sua casa ou tenda.
Brasileira, filha de ciganos iugoslavos, Percínia foi criada a vida
inteira dentro da tradição cigana. Sempre falou romani (a língua de seu
povo) em casa, e hoje ensina o idioma aos netos. Durante a entrevista,
por exemplo, só dirigiu a palavra em romani ao neto de 13 anos que, a
seu lado, “à paisana”, divertia-se com um videogame portátil. Aos 62
anos, já tem 23 netos e três bisnetos. Casou-se aos 12 – ”conheci meu
marido só no dia do casamento” – e teve o primeiro filho em seguida.
Depois, vieram mais quatro.
Tradição conservadora
Ao contrário do que muitos imaginam, ciganos têm uma moral conservadora
e um tanto machista. Casam-se cedo, muitas vezes em acordos firmados
entre famílias; a virgindade é exigida, e a função do sexo é procriar.
Usar decotes é permitido, mas nenhuma mulher pode mostrar as pernas,
daí a imposição das saias compridas e rodadas. Nas festas, há mesas
separadas para as mulheres. Muitas vezes, são elas que garantem o
sustento da família, com a leitura de mãos e cartas, por exemplo. Mas
quase sempre quem manda na casa é o marido.
O carioca Mio Vacite, 65 anos, também descendente de iugoslavos e líder
de um grupo de música típica, é outro que batalha pela cultura do povo.
“Quero tentar algo junto ao Ministério da Cultura. Temos de resgatar a
tradição, minha etnia está acabando. Estamos perdendo até a
auto-estima; os ciganos se escondem e mudam de casa por medo do
preconceito”.
Vacite, assim como Percínia, identificam dois momentos de grande
importância para a valorização cultural cigana no Brasil: o desfile da
escola de samba carioca Viradouro, em 92, com o samba-enredo “E a Magia
da Sorte Chegou”, e a novela da TV Globo “Explode Coração”, exibida
entre 1995 e 96. Escrita por Glória Perez, a trama, que contava com um
“núcleo cigano”, é considerada divisor de águas pelos ciganos
brasileiros.
Na mesma linha de combate, em 1990 Mio Vacite fundou, no Rio de
Janeiro, a União Cigana do Brasil. Uma das maiores brigas da entidade é
para mudar a definição da palavra “cigano” nos dicionários. Até 1988, a
definição do Aurélio continha sinônimos como “trapaceiro” e “velhaco”.
As edições seguintes foram amenizando as definições – segundo Vacite,
por pressão de sua entidade. Na edição corrente do Aurélio, após a
definição do povo cigano, o único sinônimo que pode gerar polêmica é
“negociante esperto, vivo”. Bem mais leve do que o dicionário Houaiss,
que, em uma de suas definições, classifica ciganocomo “aquele que
trapaceia; velhaco, burlador” ou ”agiota, sovina”. O dicionário
Michaelis, por sua vez, registra esses e outros termos ainda mais
pesados.
Por essas e outras, poucos assumem-se ciganos. Mas, garantem Vacite e
Percínia, há muitos ciganos famosos. Citam o palhaço Carequinha, a
cantora Rosana, o cantor Sidney Magal, o trapalhão Dedé Santana, o
músico Zé Rodrix e, fora do Brasil, o poeta Federico García Lorca e até
os astros hollywoodianos como Charles Chaplin e Rita Hayworth.
Nenhum citado assumiu-se cigano. Nem o mais poderoso deles, segundo os
entrevistados: Juscelino Kubitschek, que seria neto de ciganos
europeus. Dois estudiosos da cultura cigana, o historiador Rodrigo
Corrêa Teixeira, da Uni-BH, e o antropólogo holandês Frans Moonen,
afirmam que JK não só era cigano como chegou a ter encontros com
comunidades mineiras. “Lá em Minas, todos os ciganos sabem, é só ir lá
perguntar”, garante Mio Vacite.
Fato ou não, o mais importante para os ciganos, hoje, é mesmo conseguir
o respeito que nunca tiveram. “Eu só queria que o povo entendesse que a
cultura cigana é uma cultura séria, e não de gente que pega dinheiro
dos outros”, lamenta Percínia.
Não é simples precisar a origem exata do povo cigano, bem como sua
história. Um dos maiores entraves é o fato de sua língua, o romani, ser
ágrafa, ou seja, não tem versão escrita. Quase tudo o que se encontra
sobre ciganos em livros, na internet ou se ouve deles próprios, é
baseado na tradição oral. Diversas etnias são classificadas
genericamente como ciganos (Rom, Sinto, Calon, etc). A tese mais aceita
(Wikipedia, dicionários, artigos acadêmicos) é a de que tratam-se de
grupos nômades, originários do norte da Índia. Sua língua, o romani, e
suas variações são faladas por boa parte dos ciganos até hoje, e é
passada de pai para filho. O idioma é semelhante ao de outras línguas
indo-européias, como o Punjabi e Potohari, hoje faladas no norte do
Paquistão.
Acredita-se que os ciganos tenham ido da Índia para o Oriente Médio há
cerca de mil anos, e dali espalharam-se para a Europa. Hoje, apesar de
disseminados pelo mundo, a maioria dos ciganos permanece no chamado
velho continente, mas sempre como minoria étnica. Como praticam
quiromancia e adivinhação, foram historicamente repudiados pela Igreja
Católica e outras religiões cristãs. A partir daí, foi um passo para
que sofressem perseguições, muitas vezes brutais, principalmente na
Idade Média, na época das inquisições. Na Romênia, por exemplo, os
escravos ciganos só foram libertados no século XIX.
Há diversas estimativas do número de ciganos no mundo ou na Europa.
Diferentes fontes citam números entre 5 milhões e 15 milhões.
Impossível determinar qual o correto, seja pelo fato de estarem muito
espalhados, seja porque boa parte esconde sua identidade ou porque há,
ainda, muitos ciganos vivendo sem qualquer registo.
Milhares deles emigraram para o continente americano. Portugal foi um
dos países que deportou membros da comunidade para suas colônias, entre
elas o Brasil. Estimativas da União Brasileira dos Ciganos falam em
cerca de 800 mil ciganos e descendentes no nosso país, mas, novamente,
é um número impreciso. Restam duas certezas: há muito mais ciganos por
além dos que vemos na ruas, com suas roupas típicas. E sua cultura
está, de fato, morrendo.