Cinema de alta qualidade. Com alta liberdade
Um curta metragem brasileiro – produzido em software livre e hardware aberto – aponta caminhos para a
nova era da arte digital
Denise Lima
ARede nº 96 – janeiro/fevereiro de 2014
Dessa vez, não bastaram a ideia na cabeça e a câmera na mão. Foi preciso muito mais. Porém, nada que desanimasse os profissionais das áreas de audiovisual e tecnologias para uso de softwares livres e hardwares abertos, envolvidos na produção do curta metragem Floresta Vermelha. Eles se lançaram ao experimentalismo, enfrentaram desafios com equipamentos e inovaram até na arrecadação de recursos: promoveram oficinas sobre o projeto e, com apoio do site Catarse, conseguiram financiamento colaborativo (crowdfunding, em inglês). O principal mérito do filme é o de provar que é possível fazer cinema de qualidade, por baixo custo, com o uso de ferramentas livres.
O paulistano Flávio Soares criou o roteiro em 2010 e responde também pela direção e pela montagem de Floresta Vermelha. À frente da equipe de cerca de 30 pessoas, ele pôs em prática o sonho de fazer um filme em Linux, com resoluções acima de 2K RAW (formato de arquivo que contém a totalidade dos dados da imagem tal como foi captada pelo sensor da câmera), a partir de roteiro, trilha sonora e arte originais. Depois do pré-lançamento, em São Paulo, em novembro de 2012, o filme foi atração, ano passado, em outros estados brasileiros e em mostras na Espanha, na Alemanha e no México.
Em pouco mais de 18 minutos, conta a volta do jovem Nikolai para a casa dos pais, em uma vila que, segundo Soares, poderia estar em qualquer lugar do mundo. O roteiro, entretanto, remete a Pripyat, a cidade fantasma no Norte da Ucrânia, que se tornou zona de exclusão depois do acidente na usina nuclear de Chernobyl. Nikolai percebe que muitas coisas mudaram desde que partiu há alguns anos, junto com quase todos os habitantes da região. Mesmo considerado um fugitivo pelo pai, o jovem espera voltar a fazer parte da família até o final do dia, convivendo junto a uma floresta que brilha, vermelha, no escuro. A linha narrativa é cercada de certo suspense, sob um clima sombrio. A abordagem, na concepção do diretor, abre espaço para os atores – Clara Almeida, Lais Blanco, Flávio Kage e Gustavo Canovas.
O filme foi gravado no mesmo processo do cinema tradicional, quadro a quadro. Mas, em vez de utilizar película, as imagens foram convertidas em bits e bytes (dados digitais), uma solução de menor custo. Com a captura de imagens em formato RAW, a equipe teve mais liberdade para manipulações na pós-produção. A opção foi fruto de experiências que o diretor vinha acumulando durante dez anos.
Em parceria com colegas de faculdade, Soares já tinha no currículo Gamer BR, um documentário sobre ciberatletas editado em Adobe Premiere (com montagem de Pedro Bayeux) que se tornou o primeiro material do gênero licenciado em Creative Commons no Brasil – quando passou a editar vídeos em Linux e ficou mais próximo da comunidade do software livre. Depois de trabalhar como pesquisador de multimídia no Ministério da Cultura entre 2005 e 2007 e ter a oportunidade de se aprofundar no assunto, Soares fez, em 2009, a montagem do documentário Olhar Contestado, uma iniciativa de audiovisual livre no Paraná, com direção de Fabianne Balvedi e roteiro de Fernando Severo.
“Então eu achei que era hora de fazer algo mais ousado e acabei criando o roteiro do Floresta Vermelha”, lembra Soares. O primeiro desafio foi a comunicação entre as comunidades de multimídia e de software livre, ao constatar que uma tinha muito a colaborar com a outra. “Tem tudo a ver, é uma vertente interessante, que está crescendo”.
O passo seguinte foi a escolha da câmera. Foi assim que entrou na história a Elphel 353, modelo que pode chegar a resoluções de até 2592 x 1944 pixels, a 18 quadros por segundo. Conhecida por ser usada na captura de imagens do Google Street View, a câmera Elphel tem um sensor equivalente ao de um filme Super 8 de película. “Na prática, rodamos um filme digital Super 8 mm”, explica o diretor, que passou um ano e meio estudando, pela internet, o que fazer para tudo funcionar.
UComo um teste, antes da filmagem de Floresta Vermelha a equipe gravou o mini-curta Cada sorriso é um flash. Testaram a câmera e identificaram as dificuldades a serem superadas. “A própria equipe resolveu todos os problemas e tudo foi divulgado para que várias pessoas pudessem utilizar a mesma solução”, conta o diretor. Para ele, essa também é uma das vantagens do uso de ferramentas livres. “O projeto foi criado de uma maneira em que o produto final pudesse contribuir o máximo possível com quem precisar, oferecendo todas essas ferramentas em código aberto, livre”, reitera Soares.
Hardware aberto
Desenvolvidas pelo físico russo Andrey Filipov e licenciadas como hardware aberto, as câmeras Elphel têm o código acessível e livre na internet (GPL – General Public License) para que qualquer pessoa possa consultá-lo ou modificá-lo sem pagar royalties. Essas câmeras não foram criadas para fazer cinema, e sim para projetos científicos. Mas uma comunidade internacional de desenvolvedores e artistas, a Apertus – Open Source Cinema, nascida na Europa, se reuniu para pesquisar o uso do equipamento na produção de filmes com qualidade profissional. Os vídeos Romain sur Meuse, de Oscar Spieremburg (2007), Open Land, de Sebastian Pichelhofer (2011) e os testes 3D realizados por Nathan Clark (2011) foram rodados com câmeras Elphel. Flávio Soares se envolveu de tal forma com a proposta da Apertus que acabou convidado para participar do Conselho Administrativo.
A empresa fabricante, pelo programa Elphel Development Camera Pool, emprestou um de seus modelos para o projeto Floresta Vermelha. Em troca, pediu que todo o conhecimento de campo gerado pela equipe, em especial sobre os processos de edição e de scripts de automação, fosse documentado e postado na internet, sob as licenças GPL ou Creative Commons.
Por ter sido usado um sistema pioneiro, sem qualquer parâmetro no mundo, a equipe teve de superar muitos problemas. Pra começar, a câmera não tinha tecla Rec e chegou sem lentes. Era uma caixa preta com entrada para um cabo que deve ser ligado a um computador, que controla tudo. Foi preciso adaptar uma lente para a câmera – que, por estar sempre ligada a um computador, levou a mudanças no roteiro. Por causa da quantidade de fios, Soares fez o curta apenas com cenas internas.
“Tem uma parte nesse projeto que é uma ‘roubada’, ninguém vai fazer isso de novo, pelo menos não da forma que fizemos”, arrisca o diretor, justificando que desde a gravação até agora surgiram novos recursos tecnológicos, incluindo câmeras que também gravam em RAW e têm preços acessíveis. A própria comunidade Apertus já iniciou o desenvolvimento de uma câmera, chamada Axiom, com resolução muito melhor que a do modelo mais recente da Elphel, e própria para o cinema.
Soares reitera a importância das tecnologias livres, que têm como ponto forte a inteligência coletiva, permitindo que todos colaborem para a melhoria das ferramentas. Esse potencial faz com que muitos processos sejam infinitamente eficazes quando realizados em Linux. “A gente sabe que o software livre funciona e, se você tiver visão de longo prazo, vai reunir soluções automatizadas que poderão ser adequadas a incontáveis trabalhos”, ensina.
Outro diferencial de Floresta Vermelha é ter marcado a estreia de toda a equipe. Foi a primeira vez que Soares dirigiu, a primeira vez que a fotógrafa Ana Rezende fotografou para cinema e também a primeira direção efetiva de arte de Claudia Rodrigues. A trilha sonora original ficou por conta da banda paulistana Mamma Cadela, que fez a apresentação ao vivo na primeira exibição do filme, em São Paulo, e só depois entrou em estúdio, um processo nada comum nesse meio.
Ana Rezende apresenta-se como “fotógrafa, cinegrafista, perna-de-pau, que encara o que estiver sonhando ou precisando”. Com sua câmera, já captou cenas de casamentos pelo mundo, acompanhou um circo e atualmente filma partos. Considera Floresta Vermelha é um marco em sua vida profissional. Sem nenhuma experiência em direção de fotografia, mas acreditando no potencial das mídias livres, ela enfrentou logo de início as limitações da câmera Elphel, com lentes adaptadas que não captavam a luz necessária nas gravações em ambiente interno. Aos poucos, e sempre experimentando, as cenas tomaram forma e cor.
A diretora de fotografia garante que é incomparável a experiência de trabalhar com software livre. “Nada vem pronto, não é cortar e colar, é entender o porquê de cortar, pensar em como executar determinada ação e depois desenvolver a ferramenta do colar”, explica, atribuindo a esse processo a melhoria contínua.
Financiamento colaborativo
A opção por um processo de baixo custo não livrou o Projeto Floresta Vermelha de gastos com objetos de cena, iluminação, transporte e alimentação, entre outros. O orçamento só não cresceu mais porque todas as pessoas da equipe, exceto o pessoal que fez o trabalho braçal de preparar a locação, participaram como voluntários. O grupo decidiu trabalhar em duas frentes: oferecendo oficinas relacionadas ao projeto; e lançando uma campanha de crowdfunding.
A entrada no site Catarse só aconteceu quando a equipe já se preparava para gravar. “De início, pensamos em fazer uma campanha para juntar fundos, mas pouca gente entendia o projeto. Então, quando entramos no Catarse, resolvemos pedir um valor baixo”, conta Soares. O mecenato colaborativo teve a adesão de cem doadores e rendeu R$ 8 mil. O restante foi coberto por oficinas ministradas pela equipe.
Em dezembro de 2013, o diretor deu por encerrado o projeto. Postou na rede o filme, o making of e a trilha sonora, com acesso liberado. “A vantagem do código aberto é que permite que outras pessoas melhorem as coisas”. Ele acredita que a revolução do software já aconteceu, e que agora estamos vivendo outra: “Chegou a vez do open hardware”.
Como fazer
Para a montagem do filme, em 2012, foi usado o Cinelerra-CV. Em 2013, migraram para o Blender. Os plugins da série Blender Velvets, desenvolvidos pela equipe, tornam o Blender uma suíte completa também para edições complexas em 2D (somando às suas funções principais de animação 3D e tratamento de cores). Para quem for gravar no formato RAW, Soares alerta que também é indispensável usar scripts de automação junto com o movie2dng, programa desenvolvido pelo brasileiro Paulo Henrique Silva para a Elphel e para a comunidade Apertus.