cultura

De todos, para todos

Festival BaixoCentro leva arte e práticas de compartilhamento às ruas de região de alta vulnerabilidade social.
Patrícia Benvenuti


ARede nº 79 – abril de 2012

Um movimento “de ocupação civil que pretende fissurar, hackear e disputar as ruas” agitou o velho centro da capital paulista, entre 23 de março e 1º de abril. Com o slogan “As ruas são para dançar”, 1ª edição do Festival BaixoCentro uniu diferentes pessoas e organizações com um mesmo objetivo: ocupar, com arte, cultura e gente, a área do entorno do Minhocão, na cidade de São Paulo. Diversas atividades públicas e gratuitas aconteceram, durante esses dez dias – e noites adentro – nos bairros de Santa Cecília, Vila Buarque, Campos Elíseos, Barra Funda e Luz. O público pode escolher entre uma extensa programação que incluiu exibição de filmes, apresentações musicais, espetáculos teatrais, oficinas, performances, intervenções e caminhadas.

A ideia do BaixoCentro surgiu inicialmente na Casa da Cultura Digital. Um dos organizadores do festival, Leonardo Foletto, conta que a motivação para criar o movimento partiu de inquietações dos próprios frequentadores da Casa, que se situa na área do baixo centro. Caracterizada por muitos prédios vazios e pelo abandono da administração pública, a região abriga pessoas em situação de rua e dependentes químicos da chamada “Cracolândia”.
“Essa área de São Paulo, em volta do Minhocão, é muito maltratada. Por isso, ficou com essa sina pesada de ser um lugar cinza, feio, perigoso”, explica Foletto. Pensando em ajudar a reverter esse quadro, surgiu a possibilidade de realizar ali um festival de cultura. “Quando um lugar está vazio ou cheio de coisas vazias, a gente tem de ocupar. Então vamos pegar essa rede toda da qual fazemos parte e mudar aquilo lá”, afirma Lucas Pretti, outro integrante da organização do BaixoCentro.

O passo seguinte foi levar a ideia para além da Casa da Cultura Digital, agregando coletivos, organizações e centros culturais da própria região. “Começamos a nos articular com essas pessoas, fazer reuniões abertas, e foi juntando mais gente, bem espontâneo mesmo”, relata Foletto.

Formada uma rede para criar o Festival, os ativistas saíram em busca de recursos para concretizar a proposta. A alternativa – totalmente de acordo com o espírito de compartilhamento da iniciativa – foi a captação por crowdfunding, o financiamento coletivo. A aposta no crowd-
funding, diz Foletto, era essencial para garantir não somente a realização do evento, mas o caráter aberto e participativo do projeto. “O Festival deveria começar pelas pessoas, a gente não queria marcas. As marcas até poderiam aparecer, mas nessa ideia de tudo ser aberto, todas as atividades serem gratuitas, qualquer um poder aparecer”. A primeira tentativa de arrecadar recursos foi em novembro do ano passado, quando a proposta foi inscrita no site Catarse. A intenção, naquele momento, era promover atividades durante 30 dias, com um custo de R$ 56 mil. No entanto, a proximidade com o final do ano prejudicou as doações, e o projeto foi retirado do site.

Em fevereiro, o projeto retornou para o Catarse, mas reformulado: em vez de 30, o Festival duraria dez dias,  com custo de R$ 13,4 mil. Desta vez, a meta não apenas foi atingida como ultrapassou o pedido, chegando a R$ 17 mil. Um leilão colaborativo de 45 obras doadas por artistas de São Paulo também ajudou na arrecadação de fundos. As perspectivas de trabalho colaborativo e participação orientaram ainda a escolha da programação, feita em cima de sugestões inscritas pelos próprios artistas em uma chamada pública na internet.

Piquenique
O BaixoCentro também foi uma oportunidade para promover a cultura livre. Em todas as atividades, as pessoas eram estimuladas a registrar as ações com celulares e outros aparelhos eletrônicos, e a postar suas gravações e opiniões na internet e em redes sociais. Para dar ainda mais força a essa mobilização, no dia 24 de março aconteceu o “Piquenique do compartilhamento”. Durante toda a tarde, os participantes do festival ocuparam o Largo do Arouche com comidas, bebidas, livros e pen drives para compartilhar músicas, filmes, arquivos digitais… e comidinhas. “A gente achou que seria um retrato legal do que queríamos dizer, uma ironia e uma provocação em cima da cultura e do entretenimento. Todo mundo que já compartilha na internet loucamente e em muito maior grau se reunir para fazer isso fisicamente”, afirma Pretti.

O Ônibus Hacker, da Comunidade Transparência Hacker, estacionou no pedaço. Serviu de base para uma rádio livre e itinerante que transmitia o piquenique em tempo real. Apresentações musicais animavam o sábado, enquanto eram ministradas oficinas sobre práticas de compartilhamento.

Ao saber do Piquenique pelo Facebook, o diretor de arte Alberto Zanella, de 43 anos, levou alguns de seus arquivos ao Largo do Arouche: “Sou absolutamente partidário do compartilhamento. A possibilidade de as pessoas mexerem, modificarem e publicarem um conteúdo de outra forma é espetacular, muito bacana”.

Zanella também elogiou a adesão dos artistas ao Festival e o fomento à cultura livre. Para ele, é preciso que mais integrantes do meio artístico entendam as vantagens da cultura livre em comparação com a indústria do copyright: “O dinheiro fica na mão das corporações, não vai para os artistas. E o compartilhamento ainda vai desenvolver uma forma de fazer com que se ganhe dinheiro também. Não adianta, as coisas estão mudando”, diz.

A união entre tecnologia, arte, cultura e ocupação do centro também foi simbolizada pelo carrinho multimídia. Com um bagageiro na frente, o triciclo foi utilizado, durante todo o Festival, para transportar equipamentos de áudio e vídeo, como caixas de som, projetores e o que mais permitisse reproduzir filmes e músicas. A troca de informações foi ainda o mote da oficina de utilização da plataforma MapasColetivos, que reúne cartografia digital, compartilhamento de dados e jornalismo-cidadão. O resultado foi a cobertura do BaixoCentro por meio de um mapa que traz fotos, vídeos e relatos sobre as atividades, permitindo que cada pessoa acrescentasse informações.

A discussão sobre o uso do espaço público tem semelhanças com a questão da cultura livre na internet. Pretti lembra que, enquanto a cidade assiste tentativas de cerceamento da vida nas ruas, a internet é alvo de ataques por parte da indústria do copyright, que quer impedir a prática do compartilhamento. Tanto em um caso como em outro, o que está em jogo é a questão da liberdade da população. “A gente quer que as pessoas olhem para o seu cotidiano de um jeito crítico. Por que eu preciso pagar R$ 80 pra ir ao teatro financiado pela [lei] Rouanet? Por que todos os ‘noias’ ficam embaixo do Minhocão e a gente não passa um filme ali?”, questiona.
A ação de utilizar o espaço público de outras formas ganhou a simpatia das portuguesas Sofia Santos, 24 anos, e Carolina Bagulho, 22 anos, ambas estudantes de intercâmbio na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo. Há oito meses em São Paulo, Sofia conta que se sentiu atraída principalmente pelo site da programação do BaixoCentro, um mapa interativo que permite ao usuário explorar as atrações a partir de diferentes critérios. “Gostei do mapa e da ideia de ser uma organização cultural pró-centro. Precisa de mais organizações desse tipo”, afirma. Carolina, que reside há um ano e oito meses no Brasil, também elogia a proposta do Festival: “Tudo o que incentiva a ocupação do espaço público é uma boa iniciativa, principalmente aqui no centro”.

Em todas as ações do BaixoCentro, para Pretti, ficou evidente a necessidade de compartilhar não só o espaço, mas, em especial, as experiências: “É a questão do aberto, do open source,
do software livre, da cultura livre… todos podem. A gente acredita nisso”.

baixocentro.org

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