Grupo Teatro Para Alguém produz e transmite espetáculos teatrais na web. Ao vivo e de graça.
Bárbara Ablas
ARede nº67 – Março de 2011
É como um teatro convencional. Há atores, plateia e um espetáculo ao vivo. Só que, em vez do palco tradicional, os atores interpretam diante de uma câmera. E a plateia é formada por internautas. Outra característica importante: não é preciso pagar ingresso. Assiste quem quer e na hora que puder. Após a exibição ao vivo, o espetáculo fica disponível no site do grupo. É assim que funciona o Teatro para Alguém (TPA), criado em 2008 com a proposta de democratizar o acesso à cultura e levar espetáculos de qualidade para todos via internet. A experiência está entre as 25 selecionadas pelo 2º Fórum de Cultura Digital Brasileira, realizado em novembro de 2010, em São Paulo, para integrar o projeto Retalhos – Coletânea de Experiências de Cultura Digital por seus Realizadores.
Idealizado pela atriz e diretora Renata Jesion e seu marido, o diretor de fotografia Nelson Kao, o TPA exibe peças teatrais escritas e produzidas para a internet. Até agora, o grupo já produziu mais de 40 peças, muitas inéditas, que estão on-line. A ideia surgiu a partir da frustração que ambos enfrentaram com a inconstância do público. “Tenho 20 anos de carreira, e inúmeras vezes encenei grandes produções com patrocínio. Mas às vezes, quando as cortinas se abriam, víamos cinco ou dez pessoas na plateia. No outro dia, apareciam duas mil. Outras vezes não tinha ninguém”, diz Renata.
Pela internet, o TPA alcançou um público além das fronteiras. O site do grupo recebe cerca de 30 mil acessos por mês que partem do Brasil e de outros países. Foi construído sob a plataforma livre WordPress, tem licença Creative Commons e está traduzido nos idiomas inglês, espanhol e francês por meio da ferramenta Google Translate. Algumas peças têm legenda em inglês. Em 2009, o site – que passou por uma reestruturação em 2010 – foi um dos finalistas do 22º Prêmio Shell de Teatro de São Paulo na categoria especial “pela iniciativa da criação cênica via internet”. Algumas estreias no site também são divulgadas em guias especializados como o Guia da Folha de São Paulo e o OFF, dedicado exclusivamente às artes cênicas.
Além do fato de oferecer conteúdo livre e gratuito, a audiência e o sucesso do projeto se devem à qualidade das produções que, embora caminhem em processo de experimentação, não têm nada de amador. Já passaram pelo TPA cerca de 150 profissionais, entre os quais Elias Andreato, Iara Jamra, José Mojica Marins (o Zé do Caixão) e Paulo César Pereio. Entre os autores, estão nomes que fazem a cabeça de muita gente como o quadrinista Lourenço Mutarelli (roteirista do filme O Cheiro do Ralo) e Mário Bortolloto.
Corpo Estranho, por exemplo, foi escrita por Mutarelli especialmente para o TPA. A série chamada de “anti-novela”, com 34 capítulos divididos em duas temporadas, inaugurou o palco do TPA. O autor participa do elenco contracenando com o Zé do Caixão, Paulo César Peréio, Renata e outros. Quem assiste ao espetáculo se depara com uma cena inusitada: o Zé do Caixão usando roupa branca. É que ele interpreta um médico envolvido em uma sinistra história de clonagem e conspiração alienígena.
Outros exemplos de produções são as peças Cansei de Tomar Fanta, de Alberto Guzik, que morreu no ano passado, Feliz Aniversário, Fabinho, de Sergio Roveri, e O Arthur, de Antônio Prata, interpretado por Iara Jamra. Na média, os espetáculos têm entre dez e 30 minutos de duração.
O TPA também abriu caminho para a estreia de novos dramaturgos. É o caso de Lucimar Mutarelli, mulher de Lourenço Mutarelli, que lançou seu primeiro texto de dramaturgia Nunca feche o cruzamento.
Com o Núcleo de Dramaturgia do SESI-Bristish Council, o TPA estabeleceu em 2009 uma parceria para apresentar textos inéditos e aproximar alunos do núcleo da realidade do mercado de trabalho. Anualmente, o núcleo seleciona autores teatrais de todo o Brasil que passam pelo programa de formação coordenado pela dramaturga paulista Marici Salomão. O TPA convida esses autores a escreve um texto para a web. Além disso, eles têm que escolher o elenco e o diretor para montar a peça, pois é assim que funciona na prática. “Sempre digo a eles: se o seu texto é bom, faça tudo ficar melhor ainda”, diz Renata, referindo-se à escolha dos profissionais que darão vida às peças.
Sapato e Porta Retrato, uma das peças mais vistas do site, foi escrita por uma dramaturga que integrou o núcleo, Luise Cohen: “Tentei fazer de um jeito que me desse orgulho. Chamei atrizes e uma diretora que considero boas profissionais”. Para ela, essa é uma oportunidade de conquistar visibilidade para o seu trabalho, sem a necessidade de um local restrito ou uma data definida, como acontece em uma casa de espetáculos. “A internet é um veículo que alcança muitas pessoas e chega a lugares que eu nunca chegaria, até em outros países”.
Textos literários e poesias também foram adaptados para a internet em uma parceria do TPA com o Portal Cronópios, dedicado a literatura e arte. O projeto Teatro 1 1/2 teve o objetivo de apresentar em um minuto e meio textos selecionados entre autores do portal. Uma das produções que teve grande repercussão foi As mulheres gozam pelo ouvido do cineasta e poeta Sylvio Back.
Mix de linguagens
Apesar de toda essa vitrine, por enquanto o TPA toca o projeto sem patrocínio. Usa recursos próprios, uma boa dose de ousadia e outra de improviso – características típicas dos artistas. É na sala da casa de Renata, em São Paulo, que acontecem as montagens. O ambiente de pé direito alto, vedado por cortinas pretas e com 12 refletores, remete a uma mistura de palco de arena com set de filmagem. As peças são filmadas por uma câmera de alta definição em plano sequência, sem cortes e sem edições. “Misturamos a linguagem do teatro com a do cinema”, completa Renata. Mas ela ressalta que o TPA não usa o registro teatral: “A brincadeira é fazer de uma forma que a câmera funcione como um meio entre o espectador e o ator”. Ela também avisa que o TPA não tem a pretensão de substituir o teatro tradicional: “Queremos mostrar que existe um novo veículo”.
Inicialmente, a proposta de fazer um teatro virtual, com produções que chegam até o público mediadas pelo computador, causou estranhamento e dúvida. Mas tanto os patrocinadores quanto a classe artística já estão acolhendo a ideia. De acordo com Renata, muitas companhias procuram o TPA para oferecer peças e alguns patrocinadores já demonstram interesse pelo projeto. O problema é que falta visão de futuro e de negócio quando se trata de democratizar o acesso a bens culturais. “Eles ainda não entendem de que forma patrocinar e nem quantas pessoas serão alcançadas”, lamenta Renata. É que nem todo mundo descobriu que a internet é para todos os públicos que tenham conexão e se interessam por cultura gratuita. O TPA oferece cotas de patrocínio e cogita a possibilidade de incluir merchandising nas peças. Só não estão abertos a cobrar pelos espetáculos.
Ainda que não exista a garantia de conseguir lucro direto com a exposição na web, a mensagem do artista chega até o público. E é por isso que outras artes como o cinema, a fotografia e a música utilizam largamente as possibilidades oferecidas pela web. Nesse território, as artes cênicas avançam mais devagar. Um dos motivos é que, entre as tradições do teatro, estão a relação presencial entre o ator e o público. E a efemeridade do momento em que a cena acontece. Porém, também está na natureza da internet quebrar conceitos como a noção de espaço, tamanho, tempo e presença. “A era digital e o trabalho em rede abarcam todas as artes. Com o surgimento do Ipad e a popularização do uso, por exemplo, em breve teremos livros digitais, quel poderão ser mais baratos, divertidos e ocupar menos espaço”, diz Kao.
“O TPA é um outro lugar que não é o da TV nem o do cinema. É o lugar do teatro, só que tem uma câmera”, comenta Silvio Restiffe, que participa da peça Vício. O ator conta que a sensação de atuar no TPA é a mesma do palco. “Existe o frisson e o mesmo frio na barriga”, brinca. Da mesma forma que acontece no teatro presencial, os atores ensaiam e fazem toda peça sem pausa ou cortes. “O ao vivo me remete à época da TV Tupi, que não tinha video tape e tudo acontecia com a possibilidade de erro”, lembra Restiffe.
Quem não viu a estreia, assiste depois uma versão sem edições. “Fica registrado na filmagem a nossa incerteza, como o vacilo de um erro de foco. Isso faz parte da estética que buscamos. É a emoção do momento”, diz Kao.
Para o ator Heitor Goldflus, que participa das peças Anúncio e Corpo Estranho, a questão da presença não interfere no envolvimento do ator com a peça. “Quantas vezes não fazemos uma apresentação para uma plateia mínima? Mesmo assim temos de nos apresentar com a mesma intensidade e colorido”, diz. Mas ele acredita que a experiência representa uma outra relação com o teatro: “No começo eu tive dúvidas se era cinema e TV, ou só teatro, como é no palco. O TPA tende a ficar no meio do caminho, em uma linguagem que não é só teatro, mas também não é cinema, nem televisão”.
Seria uma linguagem diferente para fazer teatro? “Não temos como rotular o que é. Mas a gente acha que é uma nova forma de se fazer teatro”, acrescenta Renata. “Talvez, o movimento que estamos fazendo com o teatro ajude a tirá-lo da caixa preta e a levá-lo a outros lugares que ainda não sabemos quais são”, acrescenta Kao. Em sua opinião, uma vez que tudo passa pela telinha do computador “não faz mais sentido pensar se estamos assistindo uma peça no teatro ou na sala de casa”.