História que o povo conta
Longa-metragem produzido pelo Ponto de Cultura Acartes retrata
a questão do latifúndio e fortalece A ARTE popular
ARede nº69 Maio/2011 – Uma nova indústria audiovisual emerge das periferias do Brasil. É o cinema produzido e protagonizado pelo povo, que mostra um país bem diferente do que a grande mídia costuma apresentar. O longa-metragem Poço da Pedra, uma realização do Ponto de Cultura Academia de Ciências e Artes (Acartes), que fica no bairro Pirambu, região metropolitana de Fortaleza (CE), é um exemplo. Lançado em abril, o filme foi gravado em vídeo digital, tem uma hora e meia de duração e custou R$ 400 mil. A produção utilizou recursos do Programa Cultura Viva, da Lei Rouanet e teve patrocínio da empresa M. Dias Branco. O roteiro de Poço da Pedra é uma adaptação do romance, com o mesmo título, ainda não publicado, do diretor da Acartes e do filme, Gerardo Dasmaceno, em parceria com o dramaturgo Raimundo Cavalcante. Em 2002, eles também adaptaram a obra para o teatro.
Apesar de ser uma ficção, a história não está distante da realidade. O longa trata de temas recorrentes em alguns estados brasileiros, como o latifúndio e a disputa de interesses envolvendo terras pertencentes a minorias – em muitas histórias reais, motivos de crimes cujos responsáveis ainda não foram punidos. No filme, uma comunidade que vive no distrito de Poço da Pedra, município de Itaimbé da Serra, ambos fictícios, é alvo da ambição de políticos e empresários que pretendem transformar o local em um complexo turístico. Com a morte do líder da comunidade, Zé Capote, muitas verdades vêm à tona. De acordo com Damasceno, a proposta é fazer as pessoas refletirem sobre a política que elas querem para o Brasil: “A obra é uma releitura de acontecimentos políticos e econômicos do país, como algumas relações entre parlamentares e empresas, oligarquias que eliminam os opositores e o crime de pistolagem, que ainda é muito comum”, completa. A inspiração para o título veio das lembranças de./ infância. “Costumava passar as férias no distrito de Poço da Pedra, que hoje não existe mais, virou um açude”, relembra.
O elenco também revela um Brasil que pouco aparece no horário nobre da TV ou nas grandes salas de cinema. Poço da Pedra reuniu mais de cem profissionais. Personagens, figurantes e trabalhadores da área técnica foram selecionados entre moradores do município de Itaitinga e de Pirambu, onde está a favela de maior concentração urbana do Brasil, com cerca de 300 mil habitantes. Mais de 80% dos integrantes do projeto foram capacitados pela Acartes em oficinas de edição, interpretação e operação de câmera. Também participaram do projeto representantes de Pontos de Cultura de outras cidades, como Cascavel, Fortaleza, Guaramiranga, Missão Velha e Tauá. Uma das exceções é o ator pernambucano Aramis Trindade, profissional da Rede Globo, que interpreta Zé Capote. Alguns atores já tinham experiência com teatro, como Lucineide da Silva, 39 anos, que faz parte do Grupo de Teatro Acauã, de Itaitinga. Ela faz o papel de Mundica, uma parteira: “Foi uma grande honra participar do filme”.
As gravações aconteceram no ano passado, em Itaitinga, a cerca de 30 quilômetros do Pirambu, onde a Acartes construiu uma cidade cenográfica permanente, com 14 ambientes. Essa foi a saída encontrada para driblar os custos de locações, que geralmente são muito altos. “As construções foram feitas em alvenaria. Dessa forma, poderemos mudar a cor, as portas, as janelas e outros detalhes de cenário, para aproveitar melhor a estrutura”, conta Damasceno. A ideia é produzir outros trabalhos na cidade e utilizar o espaço para atividades de formação e para intercâmbio com outros projetos de cinema. Planejado já com esse propósito de se constituir em uma espécie de centro cultural, o local abriga um alojamento com capacidade para 60 pessoas.
Poço da Pedra estreou dia 14 de abril, no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, em sessão especial para a imprensa e convidados. Durante a cerimônia, a Acartes homenageou Célio Turino, um dos idealizadores dos Pontos de Cultura e ex-secretário da Cidadania Cultural do Ministério da Cultura (MinC). Na opinião de Damasceno, o programa Cultura Viva foi extremamente importante para os grupos artísticos atuantes no país. “Não tínhamos o reconhecimento do estado brasileiro. Realizar esse filme nos colocou em outro patamar”, comemora Damasceno.
O próximo passo é definir o esquema de distribuição. Uma das propostas é levar o longa-metragem aos Pontos de Cultura de todo o Brasil. “Além disso, fizemos uma proposta à CUT Ceará para que o filme seja exibido por meios dos sindicatos filiados, a preços populares, repartindo-se o lucro. E também procuramos o Conselho Nacional de Cineclubes (CNC)”, afirma Damasceno. A Acartes está aberta a parcerias para que Poço da Pedra ultrapasse as fronteiras do Ceará.
O processo de execução do filme daria outra história. Afinal, os desafios de fazer cinema independente no Brasil, sobretudo no Nordeste, e com poucos recursos, são muitos. Poço da Pedra é o resultado de um trabalho que tomou fôlego em 2005, quando a Acartes ganhou o edital do MinC para virar Ponto de Cultura e começou a ministrar oficinas permanentes de atores, cinegrafistas, som e edição. A Acartes é uma organização não-governamental que desde 2001 desenvolve um trabalho na área de linguagem audiovisual direcionado a jovens e adolescentes no Pirambu. “Pensamos a arte como um projeto de prevenção à violência”, ressalta Damasceno. O número de jovens atendidos no projeto passou de 40 para 150, depois do edital. Nos últimos cinco anos, a Acartes realizou uma série de curtas-metragem como O Filme, que fala das dificuldades de um cineasta independente e o Bota camisinha, que incentiva jovens a utilizar preservativos durante a relação sexual. Inicialmente, as gravações eram em VHS e às vezes com câmeras emprestadas. Com os recursos adquiridos como Ponto de Cultura, foram compradas câmeras digitais e ilha de edição.
Durante esse período de experimentação, a Acartes montou um elenco e uma equipe técnica profissionalizada. Anderson Ferreira, 25 anos, foi o responsável pela edição de Poço da Pedra, junto com o diretor. Hoje, ele vive de seus trabalhos com vídeo e está empenhado em montar sua própria produtora. Mas começou fazendo filmagens de casamento e festas. Morador do Pirambu, Ferreira ingressou na Acartes em 2002. Nessa época, ele já estava envolvido com arte por meio de outros projetos. “Ter sido selecionado pela Acartes para ser um dos editores do filme me valorizou muito como profissional”, reconhece.
Outro talento revelado pela ONG é Gleison Ramos, 24 anos, que ao iniciar os cursos de interpretação e produção audiovisual na Acartes fazia teatro no projeto 4 Varas, no Pirambu. Ele conta que nem todos os jovens ficam na Acartes porque não conseguem conciliar o emprego com o curso: “Alguns são cobrados pela família para que ajudem nos gastos da casa”. Ramos também passou por isso, mas arrumou um emprego como auxiliar administrativo que garante seu sustento e oferece flexibilidade para que ele continue a atividade artística. O jovem pretende seguir em frente na carreira de ator e quer conquistar o sucesso, mas sem esquecer as raízes: “Precisamos manter o foco na vida profissional, valorizar nosso bairro e tentar levar para outros, que não tiveram a mesma oportunidade, tudo que aprendemos”. Além de atuar no filme, Ramos dá aulas de interpretação para outros jovens do projeto.
Fábrica de sonhos
A equipe da Acartes vai além do plano da arte. O coletivo também tem visão de sustentabilidade e ganhou experiência na fabricação da sua própria “maquinaria” de cinema, como são chamados os equipamentos técnicos do grupo, feitos com material alternativo, para reduzir custos e tornar o sonho de fazer cinema possível. Uma das invenções de maior repercussão é a grua artesanal, que contém ferro de panela derretida moldado na base. Alumínio, madeira e outros materiais que podem ser aproveitados também são utilizados na confecção de objetos como travelling, banquetas praticáveis e equipamentos de luz. Existem planos para produzir esses materiais em quantidade e oferecer, em forma de kit, a Pontos de Cultura que trabalham com produções audiovisuais.
A grua é um dos equipamentos que mais chamam a atenção, e já foi comercializada em duas edições da Teia, evento nacional dos Pontos de Cultura. Em 2010, uma grua desse tipo foi deixada em Cabo Verde, na África, onde a Acartes realizou oficinas de audiovisual em uma parceria com o Centro de Juventude de São Vicente e a Universidade Lusófona de Cabo Verde.
Essa indústria alternativa funciona graças ao apoio de outro grupo de trabalho, composto por carpinteiros, eletricistas, pedreiros, soldadores e até um mecânico de automóvel. Alguns estavam desempregados quando foram chamados pela Acartes.
Trailer oficial do filme:
www.youtube.com/watch?v=r8kX9DteQts
http://academiadecinema.blogspot.com