Piratas da arte
Brasil produz livro para projeto mundial que tem como proposta disseminar a arte por meio de produção coletiva e livre
Carmen Nery
ARede nº73 setembro de 2011 – Resultado de uma criação coletiva e com a proposta de liberar o conteúdo para quem queira copiar, o Livro Pirata do clássico A História da Arte, de E. H. Gombrich, é uma iniciativa brasileira dentro do Piracy Projetc. Esse projeto, idealizado por Lynn Harris, artista multimedia estadunidense radicada em Londres, está reunindo um acervo para a montagem de uma Biblioteca Pirata em Byam Shaw, na capital inglesa.
A convite de Lynn, a artista plástica brasileira Beatriz Bittencourt organizou o trabalho coletivo em torno do clássico de Gombrich, que consiste em uma livre interpretação da obra, por cerca de 300 artistas, entre músicos, ilustradores, poetas e escritores. O trabalho foi viabilizado a partir de mecanismos de crowdfunding.
A ideia de Lynn, com os livros piratas, é ir além da criação de reproduções não licenciadas – mas também interferir nos conteúdos. De acordo com a proposta do Piracy Project, gêneros inteiros de versões “improvisadas” estão surgindo e se transformando em versões “legítimas”. Lynn também corre o mundo reunindo histórias e fazendo trabalhos colaborativos de obras que “nunca serão realizadas” (www.unrealisedprojects.org), mas que merecem ser registradas e expostas.
Há dois anos, esteve no Brasil para um trabalho nessa linha, na Galeria Vermelho, em parceria com o Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. Beatriz participou dessa iniciativa. E assim surgiu o convite, no início deste ano, por meio de uma chamada de Lynn para artistas do mundo inteiro. Beatriz decidiu “funzinear” o livro de Gombrich, originalmente publicado em 1950, que classifica como “a mais tradicional, imponente, porém entediante, obra de 600 páginas”.
O resultado são 112 paginas do conteúdo original, reinterpretadas por artistas que desenvolveram trabalhos visuais e sonoros a partir das austeras páginas do livro original. O texto de abertura do livro pirata explica: “Gombrich colocou que A História da Arte é a história de ‘criar boas imagens’ e esta edição leva essa perspectiva ao extremo. Aqui, encontramos uma montagem de estilos, abordagens e práticas que nos oferecem leituras baseadas em imagens, coleções e novas criações. Interpretações inesperadas nos obrigam a voltar ao livro original, exigindo indas e vindas entre os textos, em busca das fontes. Formatado para ser impresso digitalmente em branco e preto, como arquivos sonoros e disponível na internet, o livro é acessivel e móvel”.
A proposta de Beatriz foi repensar o objeto livro, seu conteúdo e sua história, de forma que fosse viabilizada sua reprodução por meio da fotocópia, download, scanner. Então convocou inicialmente amigos do universo da arte, repassando para eles 20% das páginas do livro. Para o restante da obra, foi feito um edital no portal de curadoria Ideia Fixa, dirigido a artistas, poetas, desenhistas, professores, escritores e ilustradores de todo o Brasil. Dos 500 interessados que se apresentaram, foram selecionados cerca de 200.
Diversidade
Cada colaborador recebeu uma página do livro e a refez segundo seu estilo. Por isso, cada página teve uma diferente maneira de interpretação da obra. Eles tiveram o prazo de um mês para a recriação. O material resultante é multimedia e incluiu poemas, ilustrações, fotos, vídeos, músicas, pinturas, textos, entre outros formatos. “A minha ideia inicial era algo simples como um fanzine, mas, como o material estava muito bom, decidi imprimir em pequena quantidade na Editora Prol, especializada em pequenas tiragens de livros de artistas. A questão é que o orçamento incluiu R$ 2,5 mil para a impressão de 100 livros e mais R$ 1 mil para a prensagem dos 200 CDs. Eu não conhecia o crowndfunding mas o Ideia Fixa me recomendou usar o processo e submeter o projeto à plataforma Movere.me”, conta Beatriz.
Fundos coletivos
O Movere.me é um site que recebe projetos que desejam captar de fundos coletivos (ver ARede, ed. 69, maio de 2011). O responsável apresenta a proposta, estabelece um valor estimado para realizar o projeto e tem um determinado tempo para que as pessoas façam suas contribuições online. Como o tempo era curto, o projeto do Livro Pirata ficou no ar apenas por 20 dias e, faltando três dias para o encerramento do prazo de captação, a meta ainda não havia sido alcançada. Aí Beatriz partiu para a mobilização boca a boca, apostando nas mídias sociais, como o Twitter. O site Ideia Fixa também ajudou. Deu tão certo que a meta não só foi alcançada como superou o valor inicial, arrecadando mais do que o necessário.
O livro ficou pronto em meados de junho. Está na internet, livre e gratuito não só para baixar. No menu, o visitante pode escolher o que deseja: versão para ver / versão para roubar / mídias para ouvir e baixar / crítica pra ler / livro pirata no jornal / Byam Shaw para espiar / compre para ter.
Mais da metade do material foi enviada aos que colaboraram com o financiamento coletivo. Os artistas ganharam o CD que reúne o livro inteiro, incluindo os vídeos e as músicas A sobra da arrecadação foi usada para pagar o envio dos livros a todos os participantes. Os 40 livros que restaram foram vendidos no dia do lançamento, em junho, na Galeria Choque Cultural, pelo preço de custo de R$ 20. E o Livro Pirata também ficou disponível para quem quisesse tirar sua cópia.
Agora será editado o “livro gringo”, a versão em inglês e em outros idiomas, que irá para o acervo da Biblioteca Pirata de Londres. O livro será produzido pela não-editora AND Publishing, criada no início do ano por Lynn Harris, para editar obras de artistas sob demanda, imprimindo cópias únicas para quem compra.
“O trabalho envolveu um grande esforço de gerenciar tanta gente sozinha. Mas o mais importante não é o produto final, e sim o processo e a história do livro”, diz Beatriz. Aos 26 anos, ela é formada em artes plásticas e atualmente faz mestrado em áudio visual na Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo.
www.livropirata.com
www.andpublishing.org {jcomments on}