O artista plástico Cirilo
Quartim reuniu, em exposição, fotos de trabalhos feitos ao longo de dez
anos, por artistas de rua da cidade. Fernando Couto
Grafite produzido por Amo, no Lago Norte, 2005
Há quatro meses, o Espaço Cultural Renato Russo, de Brasília, amanheceu
com suas fachadas grafitadas com imagens gigantes e coloridas. Era a
exposição “Um olhar sobre a arte digital e o graffiti”, que ficou em
cartaz por quase um mês. Do lado de dentro, 45 fotos, escolhidas entre
1,5 mil imagens de painéis em paredes e muros da cidade. A façanha foi
articulada pelo artista plástico Cirilo Quartim, de 28 anos, depois de
uma longa negociação feita nas ruas, muitas vezes de madrugada, com os
artistas do grafite. Deu certo: nomes como DF Zulu, Mello, Ônio, Ogro,
Amo, Skate e Drão assinaram um painel coletivo de 200 metros quadrados,
pintado na fachada do prédio.
Salvador Dali, Sul
A identificação com a arte de rua começou em 2003, quando Cirilo,
formado pela UnB e especializado em arte digital, começou a fazer uma
pesquisa antropológica sobre o grafite no Distrito Federal. Hoje, ele
tem uma preciosa coleção de fotos de trabalhos feitos por vários
autores, ao longo da última década, nas paredes e muros do Plano
Piloto, das cidades satélites e do entorno do DF. “Trabalho com arte
digital. Tanto a arte feita no computador quanto a realizada nas ruas
sofrem preconceito no meio acadêmico”, explica o curador da exposição,
que pretende levá-la a outros lugares, como Ouro Preto (MG), no
Festival de Inverno. E também prepara uma monografia sobre o tema, que
vai virar livro, em 2007. A exposição foi uma forma de homenagear seu
pai, o pintor Gabriel Quartim, já falecido, de quem herdou a paleta de
cores fortes. “As cores que ele usava eram luminosamente chocantes, de
arder o olho”, diz.
ARede – Como foi sua formação artística?
Quartim – Tive a sorte de nascer em uma família de artistas. Estudo
Artes Visuais na UnB e trabalho com programação visual desde os 16
anos. Aos 15 anos, já ficava entusiasmado com as possibilidades da arte
computacional. No vestibular, optei por Artes Plásticas, hoje Artes
Visuais. E, na UnB, fui fisgado pela liberdade do mundo das artes.
Grafite de Fokker, Snupi, SKB e Turko, em Taguatinga, 2005
ARede – E o grafite?
Quartim – Percebi que a intervenção urbana era a minha praia. Interagir
com o visual da cidade engloba todas as linguagens. Mais
rotineiramente, o grafite. É a grande arte de rua. É importante tirar a
arte de dentro das galerias, onde o acesso é restrito, e levar para as
ruas, onde não há como não vê-la. Além disso, moro em Brasília, cidade
muito fértil artisticamente. E o contraste social da cidade me fez
enxergar as manifestações de arte pública com olhos dedicados. Trazer o
grafite para o discurso acadêmico é, de certa forma, validar a produção
artística que acontece fora dos espaços de arte tradicional, e mostrar
a cidade como suporte de expressão.
ARede – Existe um código de ética entre os grafiteiros?
Mello, Asa Sul, Brasilia, 2006
Quartim – Eu diria que sim. Há um sentido ético, que já se manifesta
por normas cada vez mais bem definidas. Os pichadores, em geral, não
observam essa ética, promovem uma espécie de subversão da ordem
estética. Mesmo eles, no entanto, já começam a respeitar essas
diferenças. É cada vez mais raro encontrar pichações em paredes
grafitadas. A pichação é uma espécie de doença infantil do grafiteiro.
Mas essa evolução não pode ser imposta. Em relação ao grafite, diria
que, se institucionalizar, estraga. Ele tem o caráter de ser uma
expressão fundamentalmente livre. Associar o grafite ao hip hop, por
exemplo, pode induzir a uma leitura enganosa da proposta aberta dos
artistas de rua. O que não se pode admitir é a lei caduca (de 1998) que
coloca no mesmo saco a pichação e o grafite, taxando-o de “vandalismo”,
“depredação do patrimônio público” e “crime ambiental”.
ARede – Sem suportes “móveis”, como o grafite poderia circular? Pela internet?
Quartim – A arte contemporânea é efêmera por natureza e o grafite não
foge disso. O registro, seja com vídeo, fotográfico ou por meio das
novas tecnologias, é fundamental, sendo muitas vezes o próprio
resultado artístico a ser apresentado. Um bom exemplo é o artista
paulistano Alexandre Derion, que faz uma espécie de pré-grafite, ao
expor as fotos de suas intervenções urbanas em galerias. Tais imagens
trazem a relação entre o público passante e a obra “efêmera”. E que se
perpetua com o registro.
Da esq. para dir. DF Zulu, personagens, por Snupi, Ceilândia, 2006; Snupi, DF Zulu na 508 Sul; grafite de Onio, Asa Sul, 2005
ARede – Como medir a recepção dos grafites?
Quartim – Basta ligarmos a TV, para nos depararmos com imagens
associadas ao grafite. Na maior página de pesquisa da internet,
encontram-se 56,8 milhões de aparições da palavra “grafite”, para 12,6
milhões da palavra “igreja”, e 25,2 milhões, em “pintura”.
ARede – Que futuro se projeta para o grafite?
Quartim – O grafite, ou muralismo contemporâneo, como gosto de chamar,
tende a se desprender de movimentos e ideologias. Com isso, passa a ser
um ato estético, político ou não, com liberdade de linguagem; e
assimila teses regionais. Por mais que seja uma vertente artística
mundial, as apropriações culturais criam particularidades
interessantes, além de abrir o horizonte da arte para fora das
galerias, tornando-a mais próxima da vida. Virar a galeria do avesso e
iluminar as ruas com arte é motivador. Dilui-se a autoria, ela torna-se
coletiva, por estar em constante re-significação, com a participação
direta das comunidades. A obra deve se completar no olhar do outro.